Origem: Livro: DISCIPLINA CRISTÃ

1. Um irmão pecando contra outro irmão.

Quanto a este caso, as instruções de nosso Senhor são simples e claras: “Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o [reprova-o – JND ou conta-lhe sua falta – KJV] entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão. Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que, pela boca de duas ou três testemunhas, toda palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja [assembleia – JND] e, se também não escutar a igreja, considera-o [que ele seja para ti – JND] como um gentio e publicano” (Mt 18:15-17).

Nestas palavras de nosso gracioso Mestre, não podemos deixar de notar imediatamente o cuidado especial que Ele toma para nos lembrar que este não é um caso de disciplina da assembleia, mas de ofensa pessoal de um irmão contra outro, alertando-nos contra confundir as duas coisas que tem causado grande tristeza e prejuízo na Igreja. Sempre foi o esforço de Satanás (ao qual a carne em nós está muito disposta a ajudá-lo) rebaixar as questões da assembleia tornando-as em questões pessoais, ou elevar assuntos pessoais tornando-os em questões da assembleia, usando assim o nosso orgulho natural para produzir o cancer do espírito partidário na Igreja de Deus. A história da Igreja desde os tempos dos apóstolos até agora contém a triste confirmação disto.

Se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o [reprova-o – JND ou conta-lhe sua falta – KJV] entre ti e ele só”. O que nosso manso e humilde Mestre pretendia com essas palavras? Simplesmente isto, que o irmão que foi injustiçado vá até seu irmão no espírito daquele amor que “cobre uma multidão de pecados”, e com a intenção de que o pecado de seu irmão não seja apenas coberto, isto é, que permaneça em segredo para todos os outros, mas sim, que seja confessado e julgado como na presença de Deus, ser assim totalmente posto de lado, entre Deus e o irmão que pecou, e entre os próprios dois irmãos, à maneira de nosso amoroso e gracioso Deus, de Quem devemos ser “imitadores”. Ele “dá liberalmente e não censura” (Tg 1:5 – AIBB), e Ele perdoa liberalmente e não censura, dizendo: “jamais Me lembrarei de seus pecados e de suas iniquidades” (Hb 10:17). Este último é muito mais difícil para nós do que dar e não repreender. A intenção é que o pecado do irmão seja mantido em segredo, ou melhor, totalmente eliminado, antes que possa chegar aos ouvidos de uma terceira pessoa, e muito menos da Igreja. Mas se o irmão não te ouvir, leva contigo um ou dois. Uma testemunha no sentido do amor e da graça, mas duas no sentido da sabedoria, de acordo com o caráter individual do irmão que errou e o resultado mais ou menos esperançoso da sua primeira conversa privada com ele. Neste último caso, seria mais provável que duas testemunhas impressionassem a consciência do irmão que havia falhado, e em certos casos seria sensato não comparecer perante a Igreja como testemunha em sua própria causa, caso o assunto tivesse que ser levado perante a Igreja.

Mas se o errante não ouvir a Igreja. (ou assembleia), e então? Ele endureceu seu coração contra as demonstrações dos fatos e protestos com lágrimas do irmão injustiçado por ele; o depoimento conjunto de duas testemunhas adicionais revelou-se sem efeito sobre a sua consciência; até mesmo a exortação da assembleia não foi escutada – o que resta, diriam alguns, senão a dolorosa necessidade da disciplina da assembleia? Ele não deveria ser colocado fora de comunhão?

Não! Diz o Filho sobre a Sua própria casa, que é mais Santo, mais Sábio e mais Gracioso do que todos nós; “se também não escutar a igreja, considera-o” (isto é, para aquele contra quem ele pecou) “como um gentio e publicano”. Ele, o Cabeça do Seu corpo, a Igreja, como Ele é nosso Senhor, Mestre e Salvador pessoal, não nos permitirá elevar questões pessoais em questões da assembleia, nem rebaixar as questões da assembleia em assuntos pessoais.

Prestemos atenção a esta advertência do nosso Bom, Grande e Sumo Pastor! Que tristeza, sofrimento, angústia e destruição poderiam ter sido poupadas às preciosas ovelhas e aos tenros cordeiros de Seu rebanho, se Seus subpastores, como boas ovelhas, tivessem ouvido Sua voz e acatado Suas precisas instruções! Que Ele nos conceda ser fortalecidos “na graça que há em Cristo Jesus” (2 Tm 2:1), e ser “cheios do conhecimento da Sua vontade, em toda a sabedoria e inteligência espiritual” (Cl 1:9).

Pode acontecer, e acontece, que tal irmão impenitente, endurecido e perseverante num obstinado mau proceder, se torne finalmente sujeito à disciplina da Igreja e seja excluído da assembleia. Mas isso é algo bem diferente. Não se evita um extremo tão triste colocando-se à frente do Senhor e além de Sua Palavra, mas esperando n’Ele e seguindo Sua Palavra.

Outro caso de disciplina Cristã (embora não seja disciplina da assembleia) é o de um irmão “que andar desordenadamente”, isto é, como explica o apóstolo, “não trabalhando, antes, fazendo coisas vãs [intrometendo-se na vida alheia – AIBB] (2 Ts 3:6-16). O apóstolo aqui ordena com a solenidade da autoridade apostólica (como em 1 Coríntios 5), em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, “que vos aparteis” de alguém assim. A razão de sua linguagem solene neste caso é porque a ociosidade, tão severamente repreendida nas páginas da Santa Escritura, e até mesmo pelo mundo, abre a porta para o tentador, como testemunhado pela advertência no exemplo de Davi. Mas, afinal de contas, este não é um caso de “tirai, pois, dentre vós” ou de disciplina da assembleia como em 1 Coríntios 5, mas de disciplina a ser aplicada pelos irmãos individualmente contra o ocioso e o de maus intentos, afastando-se de toda comunhão pessoal com ele. A intenção deste tipo de disciplina Cristã é agir pela força de tal testemunho unido sobre o coração e a consciência daquele que “andar desordenadamente”, e assim evitar sua excomunhão da assembleia. O apóstolo então continua: “Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai”, não diz “tirai dentre vós”, mas, notai o tal e não vos mistureis [não mantenhais companhia – JND] com ele, para que se envergonhe”, isto é, que o irmão em erro possa ver seu mau caminho e abandoná-lo, e assim ser poupado da disciplina final, isto é, da disciplina da assembleia, que pode se tornar necessária devido a alguns dos sérios frutos de sua ociosidade. Por esta razão, o apóstolo conclui com as graciosas palavras: “Todavia, não o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmão”. Sua linguagem neste caso é muito diferente daquela em 1 Coríntios 5.

Quanto ao caso em Mateus 18 gostaria de fazer algumas observações sobre um erro (para falar com delicadeza) que não é raro de acontecer. Refiro-me ao caso de um irmão que se abstém de partir o pão, seja porque se considera insultado ou injustiçado por alguém na assembleia, ou, o que é pior ainda, porque ele nutre uma antipatia ou suspeita pessoal contra a pessoa que o ofendeu. Se agir assim no primeiro caso acima mencionado, constitui-se acusador e juiz em sua própria causa, provando assim o quão pouco aprendeu a conhecer-se e a julgar-se (seu orgulho, sua vontade própria e o poder cegante dessas coisas o levaram a tal presunção) e quão pouco ele percebeu em sua alma o verdadeiro caráter da Igreja como corpo de Cristo. E não só isso, mas ao excluir-se da mesa do Senhor, por causa de seu irmão que lhe é desagradável, ele nega ao Senhor não apenas o tributo de reverência em adoração e ação de graças que Lhes são devidas no memorial de Seu amor, mas rouba de si mesmo todas as preciosas bênçãos relacionadas com a mesa do Senhor. Para se vingar de seu rosto, ele corta o próprio nariz. Que loucura, sem falar da triste condição de alma que causa isso.

“Mas”, dirão alguns, “não é pior sentar-me à mesa do Senhor, que é a expressão da comunhão Cristã, com um irmão que me ofendeu, ou contra quem tenho algo em meu coração, ou tenho razão para suspeitar?”

Minha resposta a isso é simplesmente esta: em assuntos divinos, a regra para nossas ações deve ser a Palavra de Deus e não os sentimentos e princípios naturais. Em nenhum desses casos a Escritura justifica tal passo de independência. A esses eu deveria dizer: Se você acha que seu irmão lhe fez mal, por que não, depois de agir de acordo com Mateus 18, “considerai-o” (você e não vocês) “como um gentio e publicano”? Ou seja, você pode recusar-lhe a mão direita de comunhão, não notando mais a presença dele na assembleia. Nem uma palavra é dita de que ele deveria ser excluído da assembleia, muito menos de você se colocar sob disciplina no lugar dele.

No segundo caso, isto é, onde você tem algo em seu coração contra um irmão, por que você não age de acordo com a clara ordem do Senhor em Mateus. 5:23-24, e vai até seu irmão, a fim de livrar seu coração do que você tem contra ele? Na passagem que acabamos de referir, o Senhor ordena-nos que procuremos o nosso irmão, não apenas quando temos algo contra ele, mas “se trouxeres a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta”. Certamente, então, você deve ir até ele, se tiver alguma coisa contra ele, e reconciliar-se com ele[1]. Mas, em vez disso, você vira as costas ao altar e fica longe com a sua oferta de graças devida a Deus. Que cegueira em pecar assim contra Deus e contra seu irmão!
[1] Presumo que na passagem acima não se trata de ter feito ou sofrido algo errado, mas de sentimento pessoal e animosidade.

No terceiro caso, isto é, ficar afastado da mesa do Senhor porque você acha que tem motivos para suspeitar de um irmão, seja por ter notado algo errado em sua caminhada, ou por ter ouvido algum mau relato sobre ele. Saiba que sua maneira de agir parece ser ainda mais perversa e pecaminosa. Pois ou a coisa ruim que você notou em sua caminhada ou que ouviu falar dele é de tal natureza que o torna sujeito à disciplina da Igreja, isto é, causa sua excomunhão da assembleia, ou é de natureza menos urgente e solene. No primeiro caso, é seu dever informar a Igreja sobre o mau proceder dele, se for provado e conhecido por você como um fato, a fim de que o mal possa ser eliminado da assembleia. Em vez disso, seja por medo dos homens, seja por motivos naturais do amor humano, das amizades ou das relações familiares, você se excomunga a si mesmo da mesa e da Igreja, fazendo com que ambas sejam contaminadas, e imaginando assim pacificar sua consciência e mantendo-a pura! Que impureza! Que covardia! Que pecado grave contra Deus, contra Cristo e a Igreja!

Se, por outro lado, a inconsistência que você notou no andar de um irmão não é de natureza tão séria a ponto de causar sua excomunhão ou mesmo uma repreensão pública diante da Igreja, por que, no devido amor ao seu irmão, você não vai até ele e tenta remover a contaminação que você notou lavando seus pés de acordo com o exemplo e ordem solene de nosso bendito Senhor e Mestre? (Jo 13:14 – disto falarei mais adiante).

Você suspeita do seu irmão? “O amornão suspeita mal” Você desconfia dele? “O amortudo crê, tudo espera” (1 Co 13). Ou a sua desconfiança é baseada na informação de algum irmão de confiança? Pergunte a esse irmão confiável se ele falou com o irmão contra quem ele lhe forneceu essa informação prejudicial e, se ele não o fez, ofereça-se para acompanhá-lo sem demora até aquele contra cujo caráter piedoso ele levantou dúvidas em sua mente. Se ele recusar fazer isso, repreenda-o severamente e imediatamente descarte de sua mente qualquer outro pensamento suspeito contra aquele irmão, pois você não tem o direito de alimentar sequer uma sombra de suspeita contra um companheiro crente, a menos que seja baseada em fatos inegáveis e testemunhas dignas de confiança. Proferir ou espalhar tais suposições malignas ou mesmo apenas expressões depreciativas sobre um irmão crente, o que pode ser feito às vezes de uma forma aparentemente inocente e de maneira meio jocosa, não é apenas algo vil e ímpio, mas é realmente diabólico. Em muitas reuniões, toda a verdadeira comunhão, paz e bênçãos foram interrompidas e perturbadas, tendo o “acusador de nossos irmãos” conseguido impregnar a atmosfera espiritual em tais assembleias com uma vaga desconfiança, más suspeitas e indistintas apreensões a tal ponto que a respiração espiritual nessa atmosfera tão espessa e venenosa tornou-se quase impossível e terminou com a dissolução da assembleia.

Ficar longe da mesa do Senhor por mera suspeita ou desconfiança contra alguém ou alguns na assembleia apenas revela que o suposto mal, do qual aquele que se separa pretende purificar-se pela sua própria exclusão, está contido dentro dele mesmo. Portanto, seria melhor que ele começasse por si mesmo, em vez de julgar seu irmão e a assembleia, separando-se deles. Tal orgulho farisaico sob o manto da consciência é muito triste para um Cristão, provando a sutileza e o poder cegante da carne em nós.

Deixe-me resumir o que foi dito, numa ilustração simples. Suponhamos que um dos filhos de uma família imagine ter motivos para reclamar contra um de seus irmãos, ou, por alguma causa, nutre uma grande aversão por ele. Seu sentimento fica tão forte que ele decide se ausentar das refeições familiares normais. Com a sua ausência daquela mesa, que em si é a expressão do vínculo e da união familiar, ele não apenas menosprezaria os irmãos e irmãs habitualmente presentes à mesa, mas sobretudo cometeria um flagrante desrespeito pelos pais que presidem aquela mesa. Além disso, aquele filho não muito amável, para demonstrar sua antipatia ou desaprovação pelo irmão, expor-se-ia à fome, procedimento suicida, que pouco serviria ao seu propósito. Pois dificilmente se poderia supor que aquele membro separatista da família, que assim despreza a mesa dos pais, fosse tão longe em sua ousadia a ponto de esperar que suas refeições fossem enviadas para seu local de reclusão (assim com o obstinado membro de Cristo, separando-se da mesa do Senhor, poderia supor esperar que as bênçãos de Deus relacionadas com a mesa o seguissem até o exílio que ele mesmo escolheu). Suponhamos agora que aquele filho peculiar e insociável, ao ser repreendido por seu pai por sua conduta, alegasse que sendo a mesa dos pais a expressão da comunhão familiar, não seria consistente e honesto da parte dele sentar-se ali com um membro da família com o qual ele sentia que não poderia ter comunhão. O que o pai diria diante de tal desculpa? Ele lhe diria: “Se seu irmão ofendeu você, por que você não foi até ele, procurando convencê-lo de seu erro com espírito de mansidão e amor fraternal? E se ele não quisesse ouvir você nem seus irmãos e irmãs, você deveria ter me contado, e eu o teria advertido e, se necessário, o reprovado e corrigido. Em vez de seguir este único caminho correto, você, meu filho, preferiu tomar o assunto com suas próprias mãos e constituiu-se acusador e juiz em sua própria causa. Sua maneira de agir não me parece conscienciosa, como você deseja apresentá-la, mas antes revela um coração mau e uma consciência perversa, orgulho e obstinação. A mesa à qual você virou as costas não é sua, nem de seu irmão, mas é a minha mesa. Se você continuar a desprezar a mesa da família e, assim, desconsiderar seus pais, seus irmãos e suas irmãs, não lhe resta nada além de sair de casa e ir para a pensão do mundo e provar sua comida.”

Demorei-me neste ponto por mais tempo do que pretendia, devido à sua ocorrência frequente, especialmente em pequenas cidades e reuniões no campo, onde o conhecimento pessoal é muito mais próximo e mais sujeito a atritos. “O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz”

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