Origem: Revista O Cristão – Revelação Progressiva

Revelação Progressiva

A Bíblia consiste em duas partes, Velho Testamento e Novo Testamento, e neles é possível ver o progresso geral da revelação da verdade por Deus. O primeiro indica a Lei, e o segundo, a Graça. Um trata de regras adequadas à infância moral; o outro, de princípios aplicáveis à maturidade moral.

Mas, dentro dessas duas divisões principais, há ainda outros exemplos mais completos de progresso. Deus revelou Sua vontade ao homem em diversas ocasiões e de muitas maneiras (Hb 1:1), e é comum referir-se a elas como dispensações, significando certos períodos de tempo em que Deus oferece bênçãos ao homem sob certas condições. Embora em geral falemos das dispensações Judaica e Cristã, podemos e devemos entrar em mais detalhes e observar, tanto no Velho Testamento quanto no Novo, os diferentes, porém conectados, estágios da revelação de Deus ao homem. Alguns estudiosos sugerem sete dessas dispensações: a Edênica (inocência); a Antediluviana (consciência); a Governamental (governo humano); a Patriarcal (promessa); a Mosaica (lei); a Cristã (graça de Deus) e a Milenar (governo justo). Mesmo estas são passíveis de uma divisão mais completa, pois a dispensação Mosaica pode ser distinguida como a Teocracia (do período do Egito até Samuel), a Monarquia (de Saul até o cativeiro) e o Retorno (desde a restauração até Malaquias). A dispensação Cristã pode ser dividida de forma semelhante nos períodos antes e depois do Pentecostes.

Nessas várias divisões, muitas vezes é possível distinguir a manifestação de Deus de Si mesmo e de Sua verdade em diferentes estágios. Havia uma manifestação gradualmente crescente do caráter e da vontade divinos em períodos sucessivos, à medida que o povo era considerado pronto para recebê-la. Isso significa que, embora a revelação em cada estágio ou dispensação fosse perfeita para o seu próprio tempo, ela não era necessariamente adequada para um estágio seguinte.

Seja qual for a divisão dos períodos, é evidente que uma distinção desse tipo precisa ser feita. Assim, quando Cristo disse: “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora” (Jo 16:12), Ele estava indicando o que agora estou enfatizando, que a verdade era progressiva no sentido de que não era toda entregue de uma só vez, pois, o Senhor prosseguiu dizendo: “Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, Ele vos guiará em toda a verdade” (Jo 16:13).

Outras provas do mesmo desdobramento gradual da revelação completa de Deus ao homem podem ser vistas nestes dois exemplos. No Sermão da Montanha, Cristo primeiro declarou a verdade do Velho Testamento e, em seguida, a complementou e aprofundou acrescentando: “Eu, porém, vos digo” (Mt 5:17-48).

Em Marcos 16:17-20, são mencionados cinco sinais milagrosos que “seguirão aos que crerem”. Eles se referem àquele período de transição quando o evangelho estava sendo oferecido aos Judeus para que se arrependessem e aceitassem o Cristo que eles haviam crucificado (At 3:12-26), até que o rejeitaram (At 7), e o general romano Tito saqueou Jerusalém, e o evangelho da graça de Deus foi então enviado às nações.

Mas, em toda essa progressividade da revelação, é necessário e importante lembrar que ela não envolvia qualquer repúdio ao que havia sido revelado antes. Como a revogação de uma lei que permanece em vigor até o momento da revogação, o ensino para cada estágio era válido e obrigatório até ser complementado e, assim, suplantado por uma instrução nova e mais completa. Mas a revogação de uma lei nunca significa repúdio, apenas uma “anulação” em razão de uma provisão mais completa (Hb 7:18).

Uma prova marcante disso é demonstrada no fato de haver traços na Escritura de porções posteriores que endossam estágios anteriores. Josué confirma a lei de Moisés (Js 1:8). O primeiro Salmo enfatiza o valor da lei (v. 2). Atos remete ao terceiro Evangelho. O Velho Testamento é frequentemente mencionado ou citado no Novo. Essas referências muitas vezes fornecem mais luz para o entendimento da verdade até que a Palavra de Deus estivesse completa. Toda essa atestação de uma parte da Escritura por outra é uma prova imediata de sua unidade e de sua progressividade. Então, no Novo Testamento, na “dispensação da plenitude dos tempos”, temos a revelação plena e completa dos propósitos e conselhos de Deus.

Dos muitos exemplos dessa progressividade da revelação, dois serão apresentados. O primeiro é a doutrina de Deus. No Velho Testamento, a ênfase é devidamente colocada na unidade da Divindade em oposição aos “muitos deuses” do paganismo. Mas no Novo Testamento há a revelação adicional da Trindade, que não é contraditória à unidade, mas é baseada nela e desenvolvida a partir dela. A doutrina Cristã da Trindade nunca teve a menor relação com o politeísmo, mas surgiu do monoteísmo Judaico. É significativo que, apesar de todas as objeções Judaicas ao Cristianismo no tempo de Paulo, não seja encontrado nenhum traço de oposição à sua doutrina acerca de uma distinção entre a divindade do Pai e a divindade do Filho, que era o germe da doutrina plenamente desenvolvida da Trindade.

A explicação para isso é que os crentes Judeus, tendo sido conduzidos pela experiência à aceitação de Cristo como um Redentor divino (e, portanto, a uma distinção na Divindade), encontraram em seu Velho Testamento indícios antecipatórios da Trindade. Eles perceberam que a unidade da Divindade não era simples, mas composta, como as palavras hebraicas para “um” claramente indicam (Dt 6:4; Êx 26:6-11; Ez 37:16-19 – ARC).

Outra ilustração da progressividade da revelação é vista na diferença entre a moralidade do Velho e do Novo Testamento. Esta doutrina do progresso da revelação nos ajuda a distinguir entre a vontade temporária e permissiva de Deus e Seu padrão absoluto e inflexível. A primeira é vista no Velho Testamento e o segundo no Novo Testamento; e, ao estudarmos o Velho Testamento, podemos ver nele claras indicações de seu caráter temporário. Assim, embora permitisse a escravidão, restrições foram impostas, e a crueldade foi proibida (Êx 21:16-27). Muitas das dificuldades do Velho Testamento podem ser resolvidas, ou pelo menos amenizadas, ao se considerar esse caráter puramente temporário e meramente permissivo da moralidade da época. Cristo se referiu a isso quando distinguiu entre o mandamento divino original e essencial sobre o casamento e a tolerância mosaica ao divórcio (Mt 19:8).

Este princípio do progresso na revelação de Deus é de grande utilidade prática para responder a certas objeções atuais ao Velho Testamento. Há aqueles que o rejeitam por causa de suas supostas crueldades, como o massacre dos cananeus, ou por causa de certas manifestações na vida e na prática individual não consistentes com os princípios do Novo Testamento. Ora, ainda que não devamos nos guiar hoje por muitos dos exemplos do Velho Testamento, é igualmente verdade que, na medida em que o que eles disseram e fizeram foi devido a uma revelação de Deus, essa revelação foi perfeita para aquela época, independentemente de qualquer verdade adicional que tenha surgido depois para novas necessidades. Dizemos na medida em que o que eles disseram e fizeram foi de Deus, porque nem mesmo no Velho Testamento devemos entender que Deus necessariamente aprovava tudo o que Seus servos diziam e faziam, mesmo quando pensavam estar prestando serviço a Ele. Mas, se este fosse o lugar para fazê-lo, o caso da matança dos cananeus, já mencionado, poderia ser justificado sem muita dificuldade, à luz do juízo divino sobre as terríveis profundezas do pecado a que eles haviam descido (Gn 15:16).

Há outro ponto que também tende a ser ignorado, a saber, que paralelamente ao desenvolvimento gradual da revelação de Deus, houve uma deterioração igualmente gradual de Israel, de modo que, em sua degeneração, eles falharam em perceber e responder à revelação cada vez maior de Deus. Alguém bem apontou que “não há retrocessos na revelação feita a Israel, mas há muitos retrocessos na história religiosa de Israel”. É a falha em reconhecer essa distinção entre o divino e o humano que tem levado as pessoas a considerarem a moralidade do Velho Testamento como baixa e indigna de Deus, quando o tempo todo a explicação está na falha do povo em aceitar a crescente revelação da verdade de Deus.

E assim Deus Se revelou. Ele ensinou os homens conforme eles eram capazes de suportar. Ele os guiou passo a passo desde o alvorecer da revelação até a plenitude e o esplendor de Sua manifestação “nestes últimos dias pelo Filho” (Hb 1:1). O conhecimento deste princípio de progresso na revelação de Deus sobre Si mesmo nos permitirá evitar um duplo erro: nos impedirá, por um lado, de subestimar o Velho Testamento em razão da nossa luz mais plena do Novo Testamento e, por outro, nos impedirá de usar o Velho Testamento, em qualquer uma de suas etapas, sem a orientação da revelação completa em Cristo. Com isso seremos capazes de obter a perspectiva espiritual correta para estudar o Velho Testamento e receber dele a riqueza de instrução espiritual que ele foi concebido para transmitir em todas as eras (Rm 15:4).

Temos, portanto, que distinguir cuidadosamente entre o que pode ser chamado de ensino temporário e verdade permanente no Velho Testamento – isto é, entre o que está escrito para nós e por causa de nós. Toda a Escritura foi escrita para o nosso ensino, mas nem tudo foi escrito diretamente para nós. Grande parte não foi dirigida aos Cristãos, mas aos Judeus, e foi primariamente, e muitas vezes exclusivamente, para eles; é útil para nós hoje apenas por meio de aplicação. Essa distinção resolverá muitas dificuldades, pois o progresso da doutrina é uma das chaves mestras da Bíblia.

W. H. G. Thomas (adaptado)

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