Origem: Livro: Breves Meditações
O Chamado Celestial e a Igreja
O chamado celestial é conhecido desde o princípio. A Terra, tendo sido, em todas as eras, um cenário de decepção divina (para falar à maneira dos homens), e os eleitos sendo, portanto, estrangeiros e sofredores nela, os céus lhes foram revelados como seu lugar de descanso e herança. Abraão desejava uma pátria celestial. Enoque já havia sido transladado para lá. Moisés perdeu a terra prometida, mas obteve o Pisga de Deus. Davi confessou que ele e todos os seus pais haviam sido estrangeiros com Deus na Terra. Elias, entre os profetas, nos últimos dias do Velho Testamento, assim como Enoque, entre os patriarcas, nos primeiros dias, foi levado ao céu. E assim, o chamado celestial era constantemente lembrado e mantido em vista. E todos os eleitos, nestes tempos do Velho Testamento, sejam patriarcais, mosaicos ou proféticos, têm, eu não duvido, uma parte nos lugares celestiais. O Senhor os chama a todos de “filhos da ressurreição” – e com isso Ele nos ensina que eles serão chamados à sua herança pela ressurreição dos mortos, quando eles não se casarão nem se darão em casamento, como Ele ensina ainda, como se fossem filhos da Terra.
No raciocínio divino da Epístola aos Gálatas, eles são mencionados e considerados como estando em filiação e herança com os eleitos, agora reunidos.
Assim, em Hebreus, eles são considerados aperfeiçoados e participantes do chamado celestial, conosco neste nosso dia.
Mas a Epístola aos Efésios nunca os associa aos santos que agora se reúnem no corpo de Cristo.
Essas distinções são muito significativas e nos levam à conclusão de que os santos do Velho Testamento desfrutam da vocação celestial, ou dos lugares celestiais como seu lar e sua herança, embora mantidos separados da Igreja, do corpo de Cristo e da noiva de Cristo. Posso dizer isso a respeito deles.
Mas, deixando estes tempos do Velho Testamento, tempos de patriarcas e profetas, e tendo entrado no Novo, chegamos, no devido tempo, ao dia de Pentecostes. O Espírito Santo está então na Terra, após a glorificação do Filho do Homem no céu; e O encontramos realizando uma obra de “abundantes riquezas da Sua graça”, que há de ser “para louvor da Sua (de Deus) glória” nos séculos vindouros. Ele está batizando os eleitos, agora reunidos, em um só corpo; um corpo do qual Cristo é a Cabeça; um corpo que também é chamado de “a plenitude d’Aquele que cumpre tudo em todos”. E o todo, Cabeça e corpo juntos, é chamado por um título eminente e maravilhoso: “Cristo”. (1 Coríntios 12:12)
Tudo isso é realmente peculiar.
É claro que esta eleição, formando assim o corpo ou plenitude de Cristo, terá, com os santos do Velho Testamento, seu lugar e herança no céu. Mas enquanto eles compartilham o chamado celestial com seus irmãos do Velho Testamento, esses irmãos não estarão no corpo de Cristo com eles. Quando o reino em sua forma gloriosa vier a ser manifestado, quando “o mundo vindouro” for alcançado, os santos do Velho Testamento terão “um nome” ali, e serão, por assim dizer, principados e potestades nos lugares celestiais; mas a eleição agora reunida e batizada em um só corpo será então “a plenitude” d’Aquele que Se assenta acima desses principados, potestades e nomes, d’Aquele que “cumpre (ou preenche) tudo em todos”.
Estou sugerindo e submetendo meu julgamento sobre essas verdades.
E então – como eu diria mais adiante – quando todos estes tiverem sido transladados para encontrar o Senhor nos ares; quando os santos do Velho e do Novo Testamento juntos, como igualmente “filhos da ressurreição”, tiverem tomado seus lugares nos céus, como assim foram ordenados para serem seus desde o princípio – então a ação do Apocalipse, a partir do capítulo 4, começa. No curso dessa ação, alguns santos de Deus morrerão como mártires; e esses também serão levados ao céu, e lá ocuparão seus lugares como certas dignidades e tronos, “um exército nobre”, ou “uma distinta companhia”, como podemos dizer; mas eles não farão parte do corpo de Cristo com a eleição que agora se reúne.
Os santos de Deus que sobreviverem ao grande processo judicial do Livro do Apocalipse formarão a semente ou as primícias do povo terrenal. Seu chamado não é celestial. Eles não têm parte nos lugares celestiais. Eles começam a encher e mobiliar a Terra milenar; e para eles, como primícias, será colhida uma colheita, até que a face de toda a Terra seja frutífera – Jerusalém, a terra de Israel, o povo de Israel e as nações de todo o mundo, constituindo um cenário de poder e governo, e um santuário para o serviço do Deus do céu e da Terra, o Qual então manifestará as glórias do Seu reino.
E este reino é objeto de menção nas Escrituras do Velho Testamento, juntamente com os julgamentos que o introduzem e as glórias que lhe conferem o seu caráter. Mas a convocação de um corpo para Aquele que é o Cabeça desse reino não é o tema dessas Escrituras. É chamado, em um sentido eminente, de “o mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus”, e somente agora revelado aos profetas do Novo Testamento, tendo Paulo, o apóstolo dos gentios, sido feito o grande vaso e depositário dele, sua testemunha especial e publicador.
Houve, no entanto, vislumbres dele desde o início; a mente divina deixava escapar indícios do segredo que guardava, de tempos em tempos, assim como nós mesmos costumamos fazer com algum pensamento favorito do qual não podemos ou não ousamos falar abertamente, por causa dos tempos e das estações que o proíbem. Não é assim? Não é assim conosco, e não nos deleitamos em ver isso assim com Deus e Seu segredo? Apesar de tais proibições, diante de tais restrições, por mais de devam ser respeitadas, e com razão, o segredo às vezes romperá limites e cruzará o campo de nossa visão numa figura ou numa história, deixando o olhar de muitos observadores incapazes de decifrar o que é ou o que significa.
Gostaria agora de contemplar esses vislumbres desse segredo brilhante por uns momentos, tendo já viajado do começo ao fim da Escritura, como “com todos os santos”, observando o destino dos santos do Velho Testamento, da eleição que agora se reúne sob o Espírito Santo, e dos santos apocalípticos, quer morram no curso disso, ou sobrevivam à ação daquela época terrível.
Creio, então, que “o mistério”, a Igreja, a noiva do Cordeiro, começa a se revelar na primeira mulher. Ela foi tirada, como sabemos, do lado de Adão, quando este foi lançado em sono profundo; e então foi formada pelo Senhor Deus para Adão; e finalmente colocada ao seu lado para ser sua companheira de ajuda e, em certo sentido e medida, sua companheira igual a si.
Tudo isso nos fala da noiva de Cristo (Ef 5). O mesmo mistério, em diferentes fases, pode ser lido nas histórias de outras mulheres no Livro do Gênesis, como em Rebeca, em Raquel e em Azenate. E assim, no Livro do Êxodo, em Zípora, a noiva gentia de Moisés.
É muito fácil ler algo sobre a Igreja em cada um delas. Efésios 5 certamente nos encorajou, nos guiou no caminho e nos deu um exemplo da maneira como devemos ler essas figuras.[8]
[8] Percebe-se que a linguagem de Efésios 5 se assemelha à alegria de Adão ao receber a mulher que Deus havia preparado para ele (veja Gênesis 2:23; Efésios 5:30). ↑
Não posso duvidar que a respigadora em Levítico 23 também fosse uma pessoa misteriosa ou figurativa. Ela é apresentada no intervalo da história de Israel e da Terra, ou seja, entre a festa de pentecostes e a festa das trombetas. Por uma pausa de cerca de três meses no ano eclesiástico Judaico, perdemos tudo de vista, exceto esta respigadora. Ela é apenas uma pobre estrangeira. Ela entrou nos campos dos senhores da terra, não para cobiçar ou usurpar, mas como uma estrangeira para entrar e como uma estrangeira para sair, satisfeita, por assim dizer, com “sustento” e com que se cobrir, que é a comida do estrangeiro e o contentamento do Cristão ou da Igreja. (Dt 10:18; 1 Tm 6:8).
Não digo que Rute não possa ser uma figura semelhante à respigadora de Levítico 23, pois ela também entra em cena em um intervalo que interrompe a história de Israel; como entre sua ruína moral completa no final de Juízes e seu renascimento no início de 1 Samuel[9]. Mas admito que podemos, antes, ver em Rute o remanescente dos últimos dias chegando nos termos gentios da graça soberana, de acordo com Rm 11:31.
[9] A Igreja, como sabemos, entra em cena justamente quando esses respigadores entram, numa época em que uma ruptura na história de Israel foi vivenciada. ↑
Mas tais figuras do Velho Testamento são, de fato, apenas tênues. O mistério da Igreja é especialmente revelado na Epístola aos Efésios. Ali, ela é mencionada sob dois títulos, que lhe são exclusivamente próprios: “o corpo de Cristo” e “a noiva de Cristo”.
Alguém disse de forma impressionante: “Não é nos céus acima, nem na Terra abaixo, nem nos próprios anjos, brilhantes testemunhas, como eles são do poder criativo, que o caráter e os caminhos de Deus serão manifestados nas eras vindouras: é na nova e redimida criação em Cristo, na Igreja e pela Igreja, que a multiforme sabedoria de Deus será tornada conhecida. Na Igreja, a mais brilhante emanação da mente divina, a obra-prima da obra de Deus, toda perfeição de luz, glória e beleza será manifestada; de outro modo, ela não seria digna de seu elevado destino como Noiva. As profundezas e alturas da graça, do amor e do poder de Deus jamais serão conhecidas pelas hostes celestiais, até que contemplem a Igreja, escolhida dentre a raça arruinada e apóstata de Adão, não apenas trazida à mais próxima e doce intimidade da filiação a Deus, mas exaltada à mais alta dignidade no céu, participante da glória inefável de sua Cabeça ressuscitada.”
Certamente estas palavras são boas para o uso da edificação. Mas, além disso. Ao revelar graça e glória nesta Epístola aos Efésios (Epístola que agora considerarei um pouco mais detalhadamente), podemos observar que há uma acumulação peculiar de linguagem, como posso expressar, como se o Escritor (o Espírito) estivesse consciente do tema de peso e dignidade peculiares que Ele estava tratando. Lemos sobre a “glória da Sua graça”, sobre “as riquezas Sua da graça”, sobre “abundantes riquezas da Sua graça”, sobre o “louvor da Sua glória” e sobre “o louvor da glória de Sua graça”. Este é o estilo em que os magníficos segredos desta Epístola são revelados. O porta-joias está de acordo com o tesouro.
E a visão do Senhor ascendido é dada no mesmo estilo que nos é apresentado. Foi observado por alguém, que Marcos nos diz que nosso Senhor foi levado ao céu. A Epístola aos Hebreus nos diz que Ele foi levado penetrando nos céus. Mas esta Epístola nos diz que Ele ascendeu muito acima de todos os céus (Marcos 16:19; Hebreus 4:14; Efésios 4:10 – TB). Que relato variado e maravilhoso sobre Ele! Mas o relato de Éfeso é o mais magnífico, pois dá ao Filho do Homem o mesmo lugar que é dado ao próprio Deus em Deuteronômio 10:14.
E essa acumulação de linguagem, da qual falei, é preservada no segundo capítulo, onde o Espírito passa a considerar os objetos dessa soberana vocação (ou chamado), e não, como antes, o caráter do chamado em si. Ele toma conhecimento de nós, pecadores, em duas condições: mortos e alienados; mortos em nós mesmos e alienados de Deus – e então nos vê como transladados para as condições opostas de vida e proximidade. Mas Ele acumula linguagem ao tratar dessas coisas, como Ele já havia feito antes. Os termos são multiplicados, as descrições são elaboradamente repetidas, para que todas essas condições em que somos apresentados, e cada uma delas separadamente, possam ser apreendidas com grande ênfase por nossa alma. O estado de morte em que nos encontramos por natureza era terrivelmente completo; o estado de vida para o qual somos agora trazidos é completo e eternamente perfeito. Nossa condição de distanciamento de Deus, na qual a graça nos encontrou, é descrita como tendo sido tal que nada poderia ir além dela – nossa condição atual de proximidade com Ele é tal que somente o próprio Filho poderia ter desfrutado, por assim dizer, antes de nós.
Mas, além disso. A característica da bênção da Igreja é esta: eles estão em Cristo. Os santos que viveram antes, como vimos, terão um destino celestial; mas o chamado da Igreja é celestial, em e com Cristo.
A palavra “em” é abundante ali de uma maneira notável – e sempre é em “Cristo”. No decorrer das maravilhosas revelações ali feitas, aprendemos que, tendo sido vivificados juntamente com Ele, agora estamos assentados em lugares celestiais n’Ele.
Estando assim ascendidos, também somos ensinados que, lá no alto, somos abençoados com todas as bênçãos n’Ele.
E novamente, somos aceitos n’Ele, o Amado, feitos objetos de amor pessoal, bem como abençoados com todas as bênçãos espirituais.
E novamente, n’Ele Deus fez abundar para conosco toda a sabedoria e conhecimento, fazendo-nos conhecer os Seus pensamentos e o Seu bom prazer em relação aos séculos vindouros; dando-nos o lugar de amigos.
Assim acontece conosco agora. Mas esta mesma Escritura olha para o futuro e para o passado, e nos mostra o interesse que “em Cristo” tínhamos antes que o mundo existisse, e o que teremos “n’Ele” quando o mundo tiver terminado seu curso. Antes que o mundo existisse, aprendemos que fomos “escolhidos” n’Ele e “predestinados” para a adoção de filhos. E quando o mundo terminar, e as dispensações tiverem completado sua demonstração e encerrado sua história maravilhosa, aprendemos que seremos “herdeiros” n’Ele e com Ele daquele grande novo sistema, “o mundo vindouro”, no qual todas as coisas serão reunidas sob Ele como seu Cabeça.
Este é, de fato, um grande tema: nossa porção eterna em Cristo, nossa posição n’Ele, com os conselhos que a propuseram antes que o mundo existisse, a elevada condição e as prerrogativas em que isso nos coloca agora, e a porção que nos será concedida nas eras vindouras. E todo esse excelente estado é nosso, simplesmente porque agora cremos ou confiamos n’Ele.
Mas aquilo que havia sido assim “eleito em Cristo” desde antes da fundação do mundo, estava “oculto em Deus” até ser revelado pelo Espírito aos profetas do Novo Testamento. E a revelação disso completou a Palavra de Deus (Cl 1:25). Foi a revelação final e coroadora, feita especialmente por meio de Paulo, o apóstolo dos gentios. A Igreja é chamada ao mais alto lugar de dignidade, e a revelação dela está no último, no último lugar nas comunicações de Deus. Sim. A Igreja foi revelada por último. O apostolado gentio a trouxe à luz. Embora escolhida em Cristo antes do mundo, e escondida em Deus por eras e desde as eras, agora está revelada, a coroa de todos os Seus propósitos, assim como é a última de todas as Suas comunicações.
Eu pergunto: Isso é estranho? Deve ser uma surpresa, ou estamos preparados para isso? Será que a Escritura, o próprio Deus em Sua Palavra, nos preparou para algo assim, para um método como esse?
Acredito que sim. Encontramos outras coisas semelhantes, coisas afins a isso, na Escritura.
A mulher foi a última criatura revelada ou trazida à tona na obra da criação. Adão estava em casa, em sua propriedade, em seus domínios, antes de receber a mulher. Todas as provisões do jardim eram suas. Ele havia sido coroado senhor de tudo o que dominava. Ele havia nomeado todo o gado, os animais do campo e as aves do céu. Ele estava em seus domínios, bem como em casa e em sua propriedade. Mas a mulher ainda não existia. Ela surge por último – mas era a coroa de sua alegria e a perfeição de sua condição (Gênesis 2).
O mesmo aconteceu com Jerusalém em Canaã, assim como com a mulher no Éden.
A própria terra havia sido subjugada e dividida. A espada de Josué e a sorte de Eleazar fizeram isso, séculos antes. Mas Jerusalém ainda era uma fortaleza dos jebuseus. Ainda era possessão dos gentios. Os juízes governaram em seus respectivos dias, e Saul já havia reinado. Mas, durante todo esse tempo, Jerusalém não tinha importância, não era valorizada, nem revelada. Por fim, Davi a trouxe às mãos de Israel; e ele a embelezou e a adornou. Ela tornou-se o trono e o santuário, o grande centro de atração, o objeto de nota em toda a Escritura; cuja beleza e dignidade são um tema inesgotável. O Espírito na Escritura a celebra repetidamente; Israel, nos dias de sua nação, se deleitava ali, celebrando dias de festa e dias santos nela; e nossos pensamentos bíblicos ainda estão cheios dela. Ela é a joia, a pérola, a rainha, o objeto, na terra e na história de Israel. A última, novamente, é a mais importante. A Jerusalém de Canaã é como a mulher do Éden.
E assim novamente com a cidade de ouro de Apocalipse 21.
Os juízos que deveriam purificar a herança e tirar do reino todos os que causavam escândalo foram executados. A vitória do Cavaleiro do cavalo branco e Seu exército foi conquistada. O reinado dos mil anos foi estabelecido. (cap. 19-20.) Mas até agora a noiva permaneceu não revelada. Mas agora, finalmente, no encerramento do livro, ao nos despedirmos dos indizivelmente preciosos oráculos de Deus, é a mulher que vemos, a mulher novamente de Gênesis 2, a Jerusalém novamente da terra de Israel – só que agora é a mulher celestial, e não a mulher do Éden, a Jerusalém celestial e não a Jerusalém terrenal. Ela agora, a esposa do Cordeiro, se apresenta revelada, a mais excelente na obra divina, a última revelação divina.
Não há, então, pergunto novamente, afinidade em todas essas coisas? Não podemos estar preparados para encontrar aquela coisa excelente que foi escolhida em Cristo antes da fundação do mundo, para permanecer oculta em Deus por séculos, e revelada somente quando a revelação de todos os segredos estivesse prestes a ser completada e a Palavra de Deus a ser cumprida?
Certamente houve um rico e maravilhoso desvendamento dos segredos do seio! Segredos do seio são revelados, assim como as glórias do reino. Devemos permanecer quietos e ver o caminho de Deus novamente.
Quando Israel superou o medo e a espada do anjo destruidor e, sob a condução da nuvem, chegou às proximidades do Mar Vermelho, foi-lhes ordenado que aquietassem e vissem a salvação de Deus (Êxodo 14). Eles o fizeram – e essa salvação se manifestou em vastas e maravilhosas formas de graça e poder que até então estavam ocultas. Eles já haviam conhecido a redenção pelo sangue. Os primogênitos já haviam sido libertados, e o julgamento de Deus agora estava para trás. Ele havia se esgotado, e eles estavam seguros. Mas a glória na nuvem, a vara de Moisés, o anjo que esperava no arraial, todos tinham agora a revelar algumas virtudes raras e maravilhosas que até então, não haviam sido reveladas. O anjo mudou de lugar e se colocou entre o arraial de Israel e o exército do Egito, para manter um separado do outro durante toda a noite. A vara de Moisés ordenou que as águas do mar se amontoassem. A glória olhou para fora da nuvem e perturbou o exército egípcio. Poderes estranhos e misteriosos, novas e insuperáveis revelações da graça! Israel está seguro, tranquilo e triunfante, e só lhe resta seguir em frente e cantar o cântico da vitória e da libertação, do serviço presente no santuário e das glórias vindouras no reino.
Portanto, aqui, na Epístola aos Efésios, o pecador já foi resgatado pelo sangue de Jesus. Os pecados são perdoados – e os santos, portanto, além do julgamento, são convocados a ouvir, até que o alto chamado da Igreja em Cristo Jesus, sob as abundantes riquezas da graça de Deus, como a salvação de Deus no Mar Vermelho, se revele aos seus ouvidos. Eles precisam apenas ouvir. Se falam de responsabilidade, é isso: ouvir, aceitar, ser felizes e gratos, porque tudo isso é o que é, e o Deus de toda a graça é para eles o que Ele é. E o apóstolo, que lhes ensina esses ricos e maravilhosos segredos, apenas ora por eles, para que, ao ouvirem, tenham corações para entender.
Suas orações por eles, seja no primeiro ou terceiro capítulo, nos dão outras amostras daquela acumulação de linguagem, da qual já falei, e que é tão expressiva da consciência de ter que lidar com temas e pensamentos de peso e dignidade muito peculiares.
Ao chegarmos ao quarto capítulo, nos deparamos com algo maravilhoso à sua maneira, semelhante ao que já vimos.
O cativeiro do homem sob as mãos do antigo servo, em Gênesis 3, foi completo. A mentira de Satanás foi aceita, o homem tornou-se pecador, separado de Deus e perdido: o Éden foi perdido, o solo foi amaldiçoado, o homem e a mulher foram punidos, e Satanás, como mentiroso e errante, andou pela face da Terra.
Esta história mais antiga do cativeiro do homem é resumida em Efésios 4, em contraste. O próprio capturador e todo o seu exército são agora feitos cativos (uma multidão cativa), e conduzidos em triunfo pelo Libertador do homem, ou exibidos abertamente, como diz outra Escritura semelhante (Colossenses 2). Mas este Libertador provou ser não apenas poderoso desta maneira, mas também glorioso. Ele preenche todas as coisas. Ele desceu e ascendeu – esteve nas partes mais baixas da Terra, na sepultura, na própria fortaleza do capturador; e agora está muito acima de todos os céus. E tal, este Libertador, poderoso e glorioso, assumiu a responsabilidade de escrever a história ou assegurar a sorte do antigo cativo de Satanás. E é maravilhoso, como lemos mais adiante neste capítulo. Tendo operado a libertação nas partes mais baixas partes da terra, Ele agora, nos lugares mais altos, muito acima de todos os céus, recebeu dons para as antigas vítimas da serpente; e os dispensou; e por meio deles as dotou com as mais ricas porções e as mais altas dignidades. Esses dons levaram o antigo cativo do grande inimigo à perfeição; tornaram-no independente, num sentido divino e espiritual; deram-lhe segurança contra as ciladas do enganador; e colocaram seus recursos dentro de si, por meio do Espírito Santo que lhe foi dado (veja versículos 8-16).
Pode nos surpreender a princípio encontrar algo assim – as ruínas do homem em Gênesis 3, assim confrontadas com a recuperação do homem em Efésios 4 – o ganho e o triunfo da antiga serpente ali, respondidos e anulados por sua vergonha e derrota aqui. Mas é assim. E a surpresa pode cessar quando nos lembramos de que a Epístola aos Efésios, como vimos, é a mais maravilhosa demonstração dos resultados da redenção que a Escritura nos apresenta. Podemos, portanto, esperar encontrar Gênesis 3 confrontado em tal epístola. É o escrito especial sobre a Igreja, que é “o corpo de Cristo” e “a noiva de Cristo” – o primeiro desses títulos nos diz que ela está colocada no mais alto lugar de honra; o segundo nos diz que ela também está colocada no lugar mais querido e íntimo de afeição e relacionamento pessoal. Ela é feita, além disso, para a criação de Deus, para os principados e potestades nos lugares celestiais, a grande testemunha, a única e adequada testemunha da graça, glória e sabedoria; das abundantes riquezas da graça, do louvor da glória e dos multiformes recursos e segredos da sabedoria. Ela é isso – e a revelação dela, novamente podemos lembrar, completou ou preencheu a Palavra de Deus, em sua plena medida,.
Alguém observou que o chamado de Deus, antigamente, era de indivíduos, para que pudessem andar com Deus; ou de uma nação (como a de Israel), para que pudessem observar os estatutos e cumprir as leis de Deus, seu Rei. Mas agora, o chamado de Deus é para um corpo. Embora seja assim, a individualidade do santo ainda é contemplada; e a Epístola aos Efésios mantém isso em vista, dirigindo-se a nós enfaticamente em nossos lugares pessoais e individuais, no capítulo 5.
Esta é uma verdade apropriada e oportuna, no final desta maravilhosa epístola. E certamente devemos conhecer nossa posição pessoal, nossa própria perfeição individual, antes de nos ocuparmos com o chamado da Igreja ou do corpo. Consequentemente, em outro lugar, o apóstolo deixa claro aos santos que ele falaria de tal sabedoria, a sabedoria destes mistérios divinos, somente entre aqueles que eram perfeitos (1 Cor. 2:6). E assim, aqui, em Efésios, somos individualmente escolhidos, predestinados, perdoados, aceitos, instruídos, selados (de acordo com o cap. 1), e então, recebemos oração, para que tenhamos aquele espírito de sabedoria e revelação que nos capacita a aprender nosso chamado na Igreja, a força que nos guia e a glória que devemos alcançar: “A Igreja corporativamente é composta de crentes individuais; e embora vista em seu caráter corporativo, ela tem relações com Cristo que o crente individualmente não tem – pois nenhum crente é o corpo de Cristo ou a noiva de Cristo – contudo, é nas afeições e na consciência do crente individual que os relacionamentos da Igreja com Cristo devem ser reconhecidas e ter seu efeito.”
Certamente é assim. Os santos individualmente são primeiro aperfeiçoados, sob o Espírito dado, e então o corpo é edificado – como vemos no capítulo 4:12. Os preceitos, que encontramos do capítulo 4:17 ao capítulo 6:9, dirigem-se a nós individualmente; mas o estado da Igreja é assumido ou contemplado aqui e ali, em toda a obra.
E aqui, permitam-me dizer, quanto aos preceitos, que o próprio chamado, a graça na qual nos encontramos, pode nos guiar, sem preceitos. Esse pensamento é sancionado por passagens como Tito 2:11-12 e 2 Pedro 3:11, 14. Os santos em Gênesis agem sem lei ou preceito. Seu chamado sugere seus deveres. “Como pois faria eu tamanha maldade”, disse um deles, “e pecaria contra Deus?” A graça na qual os santos do Novo Testamento se encontram pode fazer o mesmo. Ainda assim, eles são chamados a ouvir preceitos – como aqui nesta parte da Epístola aos Efésios. Mas os preceitos honram notavelmente as doutrinas. Eles comumente se referem às doutrinas ou as assumem tacitamente; e assim, como posso dizer, eles se apresentam como tantas expressões da virtude moral que está oculta na doutrina.
E mais. Eles nos fazem saber que a santidade deve ter um caráter dispensacional. Não é simplesmente virtude moral, como a consciência sugeriria; não é justiça legal, como a lei poderia exigir; nem é o que João Batista teria prescrito. É Cristã. A santidade, ou o caráter devido, de um santo, deve derivar da vocação Cristã. Ela encontra suas fontes e sanções na verdade Cristã. Ela se mede por aquela palavra que agora se dirige a nós e a qual delineia nosso lugar e peculiaridade dispensacional. É a santificação da verdade, a lavagem da água pela Palavra, que é buscada. É isso que dá caráter definido à moral que Deus aceita e que o Espírito opera. E isso é o que é muito negligenciado ou ignorado, mas que, para estar na luz como Deus está na luz, deve ser atendido.
Há conflito ou luta. Vemos a caminhada de um santo em Efésios 5, sua luta em Efésios 6. Sua caminhada se dá pelos caminhos marcados por altos e baixos da vida, pelas “circunstâncias e relações que compõem a história humana”. Sua luta é contra “as ciladas do diabo”, ou contra “as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais”.
Esses espíritos malignos vêm dos lugares celestiais – e vêm com mentiras e enganos de infinita variedade. 2 Crônicas 18 é um testemunho direto disso. Ali, um espírito é visto vindo do céu com uma mentira na boca; ou com uma mentira que ele coloca na boca de um dos falsos profetas de Acabe. E essa mentira leva Acabe à batalha fatal de Ramote-Gileade.
A serpente, no princípio, entrou no jardim como mentirosa e, com uma de suas “astúcias”, arruinou o homem. (Gênesis 3) Satanás, com outra delas, tentou Davi a contar o povo e o levou a um terrível dia de retribuição (1 Crônicas 21) Esse mesmo caráter de enganador é reconhecido em Apocalipse 12:9; 20:8. E sinais, prodígios mentirosos e todo o engano da injustiça são mencionados como obra de Satanás em 2 Ts 2:9-10.
Portanto, temos espíritos malignos em lugares celestiais praticando “ciladas” aqui no meio de nós.
Essas artimanhas, essas mentiras dos “príncipes das trevas deste século”, podem ser numerosas; tais como sugestões infiéis, perversões da verdade, superstições humanas devocionais, confusão de coisas que diferem dispensacionalmente, cálculos falsos sobre o progresso do mundo e coisas semelhantes. Quão solene é o pensamento! Mas quão bom é ser informado sobre essas artimanhas e, assim, estar preparado para elas. Exemplos distintos dessas artimanhas são novamente observados em 2 Coríntios 2:11; 11; 2 Timóteo 2:26.
É com essas artimanhas que temos que lutar. Em outras situações (como quando ele é um mentiroso e um perseguidor), podemos ter que cair sob o inimigo. Pois nossa luta não é contra carne e sangue, como a de um Josué ou um Davi. Deus os enviou para tal conflito, tendo-lhes dado uma armadura adequada para enfrentar carne e sangue. Mas não é assim agora. Nenhuma peça de nossa armadura serviria para a batalha de Ai, ou para o dia da batalha no vale do Carvalho (Elá – ARA). Nossos inimigos não são os amorreus ou os filisteus. É uma armadura preparada para enfrentar o corruptor da verdade, aquele que não cessa de perverter os retos caminhos do Senhor (Atos 13:10). É o cinto da verdade, a couraça da justiça, os calçados do evangelho da paz, o escudo da fé, o capacete da salvação e a espada do Espírito[10].
[10] Alguém observou que Éfeso é mostrado de forma muito especial como tendo sido o cenário daqueles espíritos malignos que praticam suas mentiras e enganos (veja Atos 19:19). ↑
Satanás é um acusador dos irmãos no céu (Jó 1; Apocalipse 12). Na Terra, ele é um acusador de Deus (Gênesis 2) e um perseguidor dos santos. (Jó 2; Apocalipse 12) Mas o apóstolo aqui fala apenas de suas ciladas ou enganos.
Toda a era pela qual estamos passando é considerada como “uma guerra”, com lutas ocasionais ou “dia mau” – e, portanto, o apóstolo nos diz: “para que possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes”.
Essas “ciladas” também podem se tornar “dardos inflamados”. Ou seja; essas mentiras e enganos que estão sempre por aí, podem de vez em quando, de uma forma ou de outra, ser direcionados direta e pessoalmente a nós mesmos.
E é impressionante observar o que esta epístola nos ensina sobre esses principados e potestades malignos. Ela nos diz que eles são os cativos de Cristo, os inimigos do santo, com quem ele tem que lutar, e os príncipes das trevas do mundo (cap. 4:8; 6:11-12).
Mas aqui eu poderia acrescentar (embora nossa epístola não o sugira) que o atual governante das trevas deste mundo está condenado a empreender uma jornada solene em breve. Ele será expulso do céu, onde está agora, e atuará apenas na Terra. Ele então, no devido tempo, será tirado da Terra e lançado no abismo. Ele será então, como se tivesse sido tirado do abismo, entregue ao lago de fogo, ou à sua condenação eterna (veja Lucas 10:18; Apocalipse 12; 20).
E esta, posso acrescentar ainda, é a jornada totalmente contrária ou oposta à do Senhor. O Senhor ressuscitou do sepulcro como um Conquistador. Ele havia sido “a morte da morte e a destruição do inferno”[11]. Ele retornou à Terra, permanecendo ali por quarenta dias, dando promessas e garantias a respeito de Seu futuro reino aqui. E então, ascendeu aos céus mais altos, recebendo todo o poder e enviando o Espírito Santo para habitar em Seus santos e prepará-los para Si no dia da excelente glória, quando Ele Se manifestará como Aquele que cumpre todas as coisas – de acordo com esta mesma epístola.
[11] N. do T.: Uma frase do hino “Guide me oh Thou Great Jeovah”. ↑
Aqui terminamos, exceto a conclusão, que tem, no entanto, um caráter que devo destacar.
O apóstolo fala de si mesmo como um “embaixador em cadeias”. Que outra testemunha ele era, então, naquele momento, do caráter do mundo que ele acabara de reconhecer como estando sob o domínio dos poderes das trevas! O embaixador de Deus foi aprisionado pelo mundo ao qual Ele o havia enviado! Uma nação trata o representante de outra dessa maneira? A pessoa de um embaixador não é sagrada?
Mas o prisioneiro do homem é o homem livre de Deus; e no cuidado do amor atencioso, de sua prisão ele enviará mensagens de empatia, conforto e encorajamento aos seus amados irmãos a centenas de quilômetros de distância dele, além-mar.