Origem: Livro: Breves Meditações

Betesda

O Senhor é visto ocasionalmente em Jerusalém, em João; mas não nos outros Evangelhos. Mas, diferentemente do que Ele é na Galileia, onde milhares O seguiam, em Jerusalém Ele é um Homem solitário – como podemos observar em João 2; 3; 5; 7; 9; 10.

Em Sua última entrada na cidade, quero dizer, pela estrada de Jericó, através de Betânia e o Monte das Oliveiras, que é registrada por todos os evangelistas, sei que Ele é seguido por uma multidão, mas isso não é exceção ao que temos observado, que Ele era um Homem solitário em Jerusalém; embora no meio de milhares, quando nas partes da Galileia e ao redor de todas as margens do lago de Tiberíades.

Em João, também, as festas são tratadas como se fossem elementos do passado. Elas são mencionadas de forma muito semelhante à que Paulo, em suas epístolas, falaria do Monte Sinai ou das ordenanças legais. Elas são chamadas, neste Evangelho, de “a festa dos Judeus” – capítulos 2, 5, 6, 7 – exceto, de fato, no capítulo 8:1, onde a Páscoa daquele dia é honrada por nosso evangelista como uma festa divinamente instituída, porque o Senhor estava então prestes a cumpri-la, como o verdadeiro Cordeiro pascal.

Há peculiaridades em João, e muitas características disto – que em João, o Senhor está no final de Sua pergunta ao Judeu, e Se apresenta como se estivesse entre pecadores, rejeitado pelo mundo que havia sido feito por Ele e rejeitado por Seu povo, a quem Ele Se ofereceu (veja capítulo 1:10-11).

É em perfeita e consistente sabedoria que o Espírito de Deus não nos revelou qual era a festa que agora atraía o Senhor a Jerusalém. Não importava qual delas fosse; pois Ele estava prestes a Se manifestar na cidade dos Judeus, a cidade das festas e solenidades daquele povo, como Aquele que substituiria todas elas, e a tudo o que lhes pertencia. Assim, não temos apenas uma festa ali nesta ocasião, mas temos o dia de sábado, os principais religiosos do povo, o templo e esta singular e maravilhosa ordenança de Betesda, tudo diante de nós nesta cena.

Este tanque junto à Porta das Ovelhas em Jerusalém, ou Betesda, era uma provisão feita pela graça de Deus em favor do Seu povo em Jerusalém. O sistema estabelecido em Israel não tinha essa provisão. Era extraordinária e ocasional – como a elevação de um juiz ou profeta havia sido em tempos passados, ou a missão de um anjo, de vez em quando, como a de um Gideão ou de um Manoá. Assim também era o movimento deste tanque. Mas, além disso, era um testemunho do fato de que havia recursos de misericórdia e poder no Deus de Israel para o Seu povo, além de tudo o que lhes era então normalmente dispensado. Seu próprio nome sugeria isso: Betesda, “casa da misericórdia”. E, sendo assim, era uma promessa a Israel do Messias. Falava d’Ele de antemão, como as ordenanças e os profetas haviam feito.

Mas Jesus ao lado do tanque de Betesda, como vemos neste capítulo, é uma visão que, no espírito de Moisés junto à sarça, bem poderíamos nos desviar para contemplar. Se Ele, antigamente, havia Se refletido naquela água, Ele está ali agora para secá-la. Mais ainda, Ele contrasta com ela.

Essa visão me lembra a Epístola aos Hebreus. Ali, o apóstolo coloca o Senhor Jesus ao lado das ordenanças da lei, assim como aqui o Senhor Se coloca ao lado do tanque perto da Porta das Ovelhas, que era como um deles. E o mesmo acontece aqui em João 5 como naquela Epístola.

Havia um testemunho de Cristo em cada um deles. Betesda deu testemunho d’Ele; as ordenanças da lei fizeram o mesmo. Mas, quer Jesus esteja ao lado do tanque, quer seja levado ao lado das ordenanças da lei, descobriremos que o contraste é tão forte quanto a semelhança. Basta-nos ouvir o Senhor aqui, e o Espírito no apóstolo ali, para aprender isso clara e plenamente.

“Queres ficar são?” foi a única palavra que o Senhor levou Consigo quando Se dirigiu ao pobre aleijado naquele lugar. Estaria ele pronto para se entregar, tal como estava, em Suas mãos? Estaria disposto a ser Seu devedor? Poderia confiar-se, com sua necessidade e enfermidade, a sós com Jesus? Isso era tudo. E certamente isso, em sua simplicidade, contrasta completa e plenamente com a maquinaria pesada e desajeitada de Betesda. Nenhuma rivalidade, nenhuma demora, nenhuma incerteza, nenhuma ajuda buscada e prestada, são aqui como são lá. Aqui, com Cristo, é: “quem quiser, tome de graça da água da vida”. É: “por que te deténs? Levanta-te, e batiza-te, e lava os teus pecados”. Mas nenhuma dessas vozes, nem nada parecido com elas, é ouvido do seio agitado daquela água estranha e misteriosa. O anjo que a agitava em certos tempos jamais havia despertado sons como estes.

“Queres ficar são?” Simples, solene e cheio de consolação!

O Senhor estava então em Jerusalém. Ele estava no grande centro e representante da religiosidade humana, cercado naquele momento por suas ricas e variadas provisões. Era sábado. Era tempo de festa. A cidade das solenidades estava em uma de suas horas de glória. O templo estava próximo, os fariseus estavam por perto e uma grande multidão de expectantes e devotos reunidos ao redor do tanque perto da Porta das Ovelhas, a ordenança ou ministério angelical de Betesda. No meio de tudo isso, Ele permanece. Mas é como uma coisa nova, outra coisa. Ele não Se importa com o dia da festa, nem com o sábado, nem com o templo. Suas palavras soam como se pronunciassem a condenação de tudo isso. “Queres ficar são?” foi o toque fúnebre para tudo isso. O pobre aleijado a quem se dirigiam essas coisas pôde libertar-se imediatamente, seja de rivais ou de amigos. Aqueles que poderiam ter lutado com ele, ou aqueles que poderiam tê-lo ajudado, ele agora pode igualmente ignorar. E ele não precisa esperar. Atraso e esperança podem ser trocados pelo desfrute presente. Ele não precisava duvidar nem se demorar. Ordenanças e anjos, ajudantes e rivais, atrasos e incertezas, tudo foi assim abençoada e gloriosamente resolvido por Jesus em seu favor. Quando Jesus apareceu, quando o Filho de Deus estava ao lado daquele tanque, a única questão era: será que o pobre coxo deixaria tudo por Ele e, dessa forma, ficaria ali para ver a salvação de Deus?

Que palavra foi essa, em meio a tal cena e em tal momento! “Queres ficar são?”

A pobreza do tanque é exposta. É visto como apenas um “rudimento fraco e pobre”. Não tem glória em razão da glória que o excede. E da mesma maneira, o Espírito expõe o “santuário terrestre” e todas as suas provisões e serviços, na Epístola aos Hebreus. Ali, o apóstolo, sob o Espírito Santo, coloca Jesus novamente ao lado de Betesda, ao lado do sistema de ordenanças que O precedera, e expõe todos eles em sua pobreza e impotência. Havia um reflexo de Cristo nessas cerimônias do templo, assim como havia naquela água junto à Porta das ovelhas; mas o reflexo não tem substância – era uma sombra – e desapareceu quando a verdadeira luz preencheu o lugar. Somente Jesus é glorificado. Quando o Espírito O introduz, naquela Epístola, Ele O mantém, dizendo d’Ele: “Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e eternamente”. E aqui, o próprio Senhor fala ao pobre aleijado apenas sobre o Seu próprio poder de cura: “Levanta-te, toma o teu leito, e anda”. Ele deveria carregar aquilo que outrora o sustentava, enquanto jazia sobre o tanque. Ele não precisava de mais nada. Ele conhecia a cura do Filho de Deus e estava livre.

Assim poderia ter sido com ele. Ele representa isso para nós. Mas, talvez, ele fosse apenas uma figura inconsciente do caminho do Filho de Deus para com os pecadores. Pois, pessoalmente, ele não parece entrar em cena. Em vez de ser abstraído e fixado pelo Senhor, em vez de olhar para o rosto do Estrangeiro com admiração e deleite pelas palavras que lhe foram dirigidas, e imediatamente se transferir, tal como estava, em toda a sua tristeza e necessidade, para as Suas mãos, Ele fala de Sua condição atual. Isso é natural, eu sei; acontece todos os dias; o costume do homem. Não precisamos nos maravilhar com isso, nem com o fato de que este homem foi encontrado posteriormente no templo, em vez de estar, como o leproso samaritano de Lucas 17, aos pés de seu Libertador. Estes são apenas os caminhos e obras da mente legalista e religiosa, seja na Judeia ou na Cristandade; pois ela não tem ouvidos para as propostas da graça. E repito, não precisamos nos maravilhar com este homem, este aleijado que foi curado, quando vemos naquele momento uma “grande multidão de enfermos” vagando ao redor daquele tanque incerto e decepcionante, embora o Filho de Deus estivesse na Terra, levando Consigo e n’Ele a salvação sem dinheiro e sem preço, sem dúvida ou demora, para todos os que viessem a Ele; e isso, também, desafiando todo obstáculo ou rivalidade, e independente de toda ajuda ou apoio.

Tudo isso nos ensina uma lição. De fato, ensina. O tanque é muito frequentado, Jesus passa sem ser notado! O tanque é procurado, enquanto Jesus tem que buscar e Se propor! Que imagem da religião do coração do homem! Ordenanças, com toda a sua maquinaria incômoda, são esperadas; a graça de Deus que traz a salvação é desprezada! Ou pelo menos essa graça tem que se propor, ser pregada e pressionada, como Jesus em Betesda, enquanto essas ordenanças, como aquele tanque, são lotadas de devotos dispostos todos os dias.

Mas, além disso. Este tanque tem sua vizinhança, assim como a si mesma, para nossa inspeção; a cena tem seus acompanhamentos ou seus acidentes para nossa instrução posterior.

Lemos aqui: “E aquele dia era sábado”.

Nos outros Evangelhos, quando o Senhor é desafiado por realizar Sua obra em tal dia, Ele responde ou com base no caso de Davi comendo os pães da proposição; ou com base nos sacerdotes trabalhando no templo; ou com base numa palavra dos profetas: “Misericórdia quero, e não sacrifício”; ou com base no fato de que eles próprios, Seus acusadores, levavam seus jumentos ou bois, no sábado, para beber água. Mas aqui, nesta ocasião, no Evangelho de João, sendo desafiado com base no mesmo argumento de cura em tal dia, Ele diz: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também”.

Frase maravilhosa! Mas deixe-me primeiro observar quão característica de João ela é. O Senhor não Se coloca aqui, como nos outros Evangelhos, em ocasiões semelhantes, como acabamos de ver, em companhia de Davi, ou dos sacerdotes, ou das palavras dos profetas, ou dos costumes, os costumes comuns e reconhecidos pelos homens, mas sim em companhia com Deus. Não é o que Davi fizera outrora, nem o que os sacerdotes fariam, nem o que os homens, nem mesmo Seus próprios acusadores, faziam todos os dias; mas o que o Pai sempre esteve fazendo neste mundo necessitado e arruinado, que o Senhor alega como o padrão de Suas ações. E na distinta ocasião então diante d’Ele, ao restaurar o coxo no tanque de Betesda, Ele havia dado uma amostra disso.

Isto é cheio de caráter. Mas, certamente, também é cheio de maravilhas. “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também”.

No princípio, o homem perdeu o sábado. Ao pecar, quebrou o descanso da criação. Perdeu o jardim e tornou-se um escravo na Terra, e para poder viver, ganharia o pão com o suor do seu rosto. Mas quando o homem perdeu assim o seu descanso, o Senhor Deus deixou o Seu e imediatamente começou a trabalhar novamente.

Ele santificou o sétimo dia, em memória de ter concluído Sua obra criadora. Descansou então. E, tendo descansado, Ele desfrutou de Seu descanso, caminhando com a criatura que Suas mãos haviam criado à Sua imagem, conforme Sua semelhança, no jardim que Ele havia formado e preparado para ela. Mas quando o pecado entrou, e o descanso da criação se foi, o Senhor Deus não apenas começou imediatamente a trabalhar, mas a trabalhar por Sua criatura que se destruíra a si mesma – como lemos: “E fez o SENHOR Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles (pele – JND), e os vestiu”, vestiu o homem e a mulher, que agora se haviam reduzido a si mesmos à condição de pecadores culpados e expostos.

Maravilhosa demonstração de Deus! O glorioso Formador dos céus e da Terra, Aquele cujos dedos haviam acabado de adornar o firmamento acima de nós e cujas criaturas enchiam e adornavam o chão que pisamos, agora volta Sua mão (para que Seu louvor seja lembrado para sempre) para fazer uma cobertura para um pecador. Deus em graça, o Pai de nosso Senhor Jesus, assim começou a trabalhar. E assim, ao longo dos dias do Velho Testamento, Ele foi ativo em amor, demonstrando misericórdia. Ele não estava desfrutando de Seu descanso como Criador de uma obra consumada, mas trabalhando, em graça, em meio às ruínas, com base nos princípios da nova criação, como os patriarcas, os profetas, Israel, as ordenanças da lei e este mesmo tanque de Betesda, em suas diversas formas e épocas, haviam testemunhado. E agora, segundo este modelo, Cristo havia surgido para trabalhar – como testemunha o aleijado curado deste capítulo. De modo que, estando à margem dessa água mística, e com o homem curado diante d’Ele, Ele pôde dizer: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”.

Maravilhoso! O descanso foi deixado, e o trabalho foi reiniciado. A coluna do deserto era “como uma verdadeira figura” a isso. Depois de deixar o Egito, Israel perdeu o descanso de Canaã que lhes havia sido prometido, para onde haviam ido e para onde estavam viajando. E tiveram que vagar fora desse descanso por quarenta anos. Mas a coluna de nuvem, ou melhor, a glória que nela habitava, também seria uma errante. Se Israel, como Adão, tivesse perdido seu descanso, o Senhor Deus de Israel ficaria de bom grado sem Seu descanso.

E assim a nuvem percorreu com o arraial, rememorando a graça divina do Senhor Deus no princípio. O Deus de Israel era como o Deus da criação havia sido; pois Ele “é o mesmo ontem, hoje e eternamente”.

O evangelho é um grande sistema de trabalho, operado pelo Pai, Filho e Espírito Santo. E com base na autoridade do que foi feito, com base no que o próprio Deus operou na redenção consumada dos pecadores, Jesus, no evangelho, ainda Se volta para o homem culpado e desamparado, e diz a cada um e a todos: “Queres ficar são?”

Certamente a sequência é bem ponderada. Betesda reflete o Filho de Deus, o Salvador. A casa da misericórdia e o Senhor e Dispensador da misericórdia estão presentes. Mas, embora O reflita em sua medida, O destaca em uma medida um pouco maior. Faz com que a glória e as riquezas de Sua graça brilhem com mais intensidade por causa de seu próprio fundo tênue e escuro; e, assim como nas ordenanças mosaicas, também neste tanque perto da Porta das Ovelhas, O temos tanto por contraste quanto por semelhança.

Deixe-me acrescentar, como uma reflexão sobre este tanque perto da Porta das Ovelhas, que o alívio que a graça proporcionava, na era da lei, era apenas ocasional; como já observei; como por um juiz ou um profeta – e como também o anjo que agita esta água de vez em quando testemunha.

Mas agora, nesta era do evangelho, a graça ou a salvação de Deus é o que permanece, o que é ministrado. “Eis aqui agora o dia da salvação” (ARC). E, no entanto, não duvido que existam períodos especiais ou ocasionais de atuação e visitação peculiares do Espírito. Há “dias da visitação” agora, como houve antigamente; embora seja plenamente verdade que o presente é uma dispensação da graça, como antigamente não havia sido. A cidade de Corinto teve tal tempo concedido a ela, assim como Jerusalém teve antes dela (Lucas 19:41; Atos 18:10). Indivíduos, da mesma forma, têm tais tempos (1 Pedro 2:12); e, de fato, se Betesda testemunhou isso em Jerusalém em outros dias, tempos de reavivamento, como os chamamos, testemunharam o mesmo no curso da era da Cristandade.

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