Origem: Livro: Breves Meditações
Os Dois Devedores
A plena certeza presente da alma é a fonte da afeição mais pura e do serviço mais livre. De fato, é necessária a cada um deles. O perdão presente dos pecados deve ser afirmado com toda a confiança.
Pergunto: Qual tem sido a obra do Deus bendito neste nosso mundo, se não o próprio fim de nos colocar em tal condição? Nosso pecado O trouxe aqui – e então, a remoção do nosso pecado Lhe deu a Sua história aqui, depois que Ele veio entre nós. Ele morreu e ressuscitou dos mortos. Pois o que vejo nessa história, a morte e ressurreição do Filho de Deus, se não vejo a remoção do pecado?
Assim que o pecado entrou, Ele foi revelado nessa conexão conosco. Não como um Legislador ou um Juiz, mas como um Salvador. Ele é visto já na primeira promessa. Foi como um Salvador, como o Purificador dos pecados, que Ele foi revelado então, no mistério do calcanhar ferido e da cabeça ferida – e isso era a Sua morte e ressurreição como o Filho de Deus e o Cordeiro de Deus. E o que, pergunto novamente, vejo nesses grandes fatos, se não vejo a remoção do pecado? Como posso, com alguma razão, com alguma simplicidade de mente, estar diante da cruz de Cristo e não apreender a purificação dos pecados ali? Se eu não apreendesse isso, tudo repreenderia e deveria repreender as trevas de minha alma. Acaso o véu rasgado, acompanhado pelas rochas fendidas e pelos sepulcros abertos dos santos, não proclamou que a morte do Filho de Deus, então consumada, havia restaurado o homem a Deus, abrindo um caminho desde o cárcere daquele que tinha o poder da morte até aos céus resplandecentes e ao trono da majestade ali? E o sepulcro vazio não veio em seu dia designado, para dar testemunho semelhante e dizer que Deus estava satisfeito com a morte de Cristo, e que ela havia feito expiação pelo pecado e estabelecido a reconciliação? E então, o dom e a presença do Espírito Santo não vieram, em seu devido momento no pentecoste, para selar o mesmo grande fato? E eu pergunto ainda: qual foi a pregação, o evangelho, o testemunho dos apóstolos imediatamente depois, como o temos no Livro de Atos? Certamente é: remissão, perdão de pecados, em virtude do sangue ou morte de Jesus, para todos os que O receberem. Pedro, em sua primeira palavra no capítulo 2, e depois em sua segunda palavra no capítulo 3, e em seu primeiro testemunho aos gentios em Cesareia no capítulo 10, relata esse grande fato – e quando Paulo assume o testemunho, ele continua essa mesma história maravilhosa, como vemos no capítulo 13. E em suas epístolas, onde eles ensinam em vez de pregar, instruindo os santos em vez de despertar os pecadores, encontramos a mesma coisa; a Epístola aos Hebreus, fazendo disso uma de suas grandes ocupações características, mostra-nos o Purificador de nossos pecados agora nos céus mais elevados, no meio de Suas muitas glórias ali.
Tudo isso é verdade e de fato assim. E agora, nossa alma deve guardar este fato bendito: o pecado foi tirado, como se estivesse em primeiro plano. Não deve ser tratado como algo que possamos vislumbrar à distância, algo nebuloso e enevoado, após alguma ansiosa investigação. Deve ser colocado em primeiro plano, onde o véu rasgado, a ressurreição, o Pentecostes, a pregação e o ensino apostólicos já o colocaram, para que possamos apreendê-lo como sob a própria luz do meio-dia, e nos apropriemos dele com toda a certeza.
A Escritura, como alguém observou certa vez, faz da remoção do pecado algo muito mais simples do que a religião do homem faz disso. A Escritura coloca isso no início, a religião humana faz disso o grande objetivo a ser conquistado. A Escritura coloca o pecado em companhia do sangue de Cristo, e o pecado desaparece.
Podemos admitir, a propósito, que, quando a graça de Deus que traz salvação, e que havia brilhado tão intensamente na primeira promessa e manteve seu lugar ao longo da era dos patriarcas, vem a se conectar, sob Moisés, com a lei, ela se torna obscurecida. Naturalmente assim, eu diria, pois é então misturada a um elemento estranho. O perdão dos pecados, a própria provisão de Deus para o estado do culpado, tinha um amplo e variado testemunho ali, eu admito; mas esse testemunho era sustentado por sombras, ordenanças e serviços religiosos oficiais, que a obscureciam ou a sobrecarregavam. Toda a economia mosaica tinha objetivos importantes a cumprir – mas, no que diz respeito à graça, ela obstruía e obscurecia suas ações e manifestações da graça. A graça não se manifestava em sua simplicidade, como nos dias patriarcais. E, de acordo com isso, o Novo Testamento, em suas argumentações e comentários divinos, comumente coloca o evangelho da graça em companhia dos patriarcas, mas em contraste com Moisés. Abraão foi abençoado como um Abraão crente; Moisés colocou um véu sobre o rosto, e a lei é declarada como tendo gerado um espírito de escravidão ao temor.
Mas a graça finalmente emerge desse elemento misto, dessa atmosfera obscurecida; e agora, determinada e efetuada pela morte e ressurreição de Cristo, ela brilha, como vimos, em seu resplendor infinito, e reivindica ocupar o lugar principal no Cristianismo, e o primeiro plano diante dos olhos e da apreensão de nossa alma.
A partir do diferente propósito e caráter de cada um deles, encontramos esta verdade, o perdão dos pecados, apresentada a nós de diversas maneiras nos Evangelhos, nos Atos e nas Epístolas. Nos Atos ela é pregada aos pecadores; nas Epístolas, ela é ensinada ou exposta aos crentes; e nos Evangelhos ela é ilustrada em indivíduos. O Espírito, por assim dizer, é um Evangelista ou Pregador nos Atos; nas Epístolas, um Mestre dos santos; e nos Evangelhos encontramos narrativas vivas, ilustrativas do que em outros lugares é pregado e ensinado dessa forma.
Quão simplesmente esta verdade fundamental, o perdão dos pecados sob a autoridade e em nome da morte e ressurreição de Cristo, é pregada em Atos! Pedro começa a testemunhar isso e a repete continuamente, como já dissemos, e Paulo dá continuidade a isso.
Quão amplamente e com que força essa mesma verdade nos é exposta em epístolas como a de Romanos e a de Hebreus, mostrada a nós na estabilidade do fundamento no qual ela repousa e nas glórias em que resulta – e todas as epístolas, posso dizer, assumem isso!
E quão comovente é o poder dessa mesma verdade na alma de quem a recebe, ilustrado nesta narrativa da pecadora da cidade na casa de Simão, o fariseu, no final de Lucas 7!
Isto é assim, verdadeiramente. E doce é este modo variado de apresentar esta grande e principal verdade. Nós a temos pregada aos pecadores, exposta e revelada aos crentes, e ilustrada em indivíduos.
Nesta casa de Simão, o fariseu, o Senhor entra em contato com duas pessoas, representantes de duas gerações morais. Refiro-me a Seu anfitrião e a uma pecadora da cidade. E estes constituem os dois devedores na parábola que o Senhor profere na ocasião e que se encontra no cerne da narrativa.
Considero Simão alguém que certamente reconhecia a excelência do Senhor Jesus. Ele O havia convidado para sua casa como um sinal de honra. Ele também era alguém, não duvido, que diariamente reconheceria a dívida de gratidão pelas bênçãos do cuidado e da misericórdia de Deus, e se reconheceria menor do que o menor deles. Era como alguém a quem haviam sido perdoados cinquenta dinheiros.
A pecadora que agora entrara em sua casa, certamente era uma pecadora; e ela se conhecia como tal. Mas Jesus era um Salvador; e ela O conhecia como tal. Ela não estava meramente convicta, a ponto de ficar confusa e pronta para renunciar a tudo; ela estava conscientemente perdoada, como alguém já convencida. Ela estava em um dia de graça, fora do julgamento. Ela não estava, como Davi de outrora, diante do anjo de Deus com uma espada desembainhada na mão. Ela estava diante d’Ele como sua salvação – não no sentido meramente de misericórdias providenciais, mas de aceitação eterna.
Ela era uma devedora a quem foi lhe perdoado quinhentos dinheiros.
Assim era, creio eu, esta mulher, esta pecadora da cidade, e, no meio das narrativas dos evangelistas, ela ilustra as virtudes e vitórias que acompanham o conhecimento do perdão.
Isso a tornou ousada. Ela se aventurou, pecadora como era, a entrar na casa de um fariseu. Foi algo muito ousado da parte dela. Talvez ela tenha esperado receber o que exatamente recebeu: desprezo e sussurros ofensivos, murmurações de reprovação da justiça própria. E o que ela talvez esperasse, ela, de fato, recebeu.
Isso a fez feliz. Isso a tornou independente da criatura e a elevou acima do mundo. Isso infundiu nela o espírito de sacrifício e de adoração. Tudo o que ela era e possuía não era bom o suficiente ou rico o suficiente para Aquele que a salvou, que a amou e que Se entregou por ela. Ela trouxe tudo consigo aos pés de Jesus, e não se importou que algum outro a percebesse, senão Ele mesmo. Ela estava lendo o novo nome na pedra branca. Os pensamentos de desprezo do fariseu se perderam nela; assim como as reprovações de Mical se perderam em Davi em um momento de gozo semelhante. Ela tinha o seu tudo em Jesus e obteve de Jesus a resposta para tudo.
Ela era alguém que conhecia a grande e principal verdade característica do Cristianismo, como dissemos, o perdão dos pecados. “Os seus muitos pecados lhe são perdoados”. Ela conhecia Jesus de uma forma que Simão não conhecia. Ela estava em outro relacionamento com Ele. Ele estava diante dela como seu Salvador. Simão fez apenas uma avaliação muito pobre e parcial dela. Ele não conseguia entendê-la, e aquilo que ele sabia, sabia de uma forma que o enganava completamente. Ele disse a si mesmo: “é uma pecadora”. Com certeza ela era. Ninguém, a não ser um pecador, poderia oferecer sacrifícios como os que ela estava oferecendo. Mas Simão não sabia que seu caráter pecador era realmente a raiz e o fundamento de tudo o que ele estava testemunhando. Nem conhecia seu Hóspede. Ele duvidava que Ele pudesse ser um profeta, mas logo Ele o fez saber que Ele não era meramente um profeta, mas um Profeta de ordem divina, que poderia lhe revelar os segredos de seu próprio coração. Ele disse que a mulher tocou o Senhor. “Foi só isso, Simão?”, poderíamos dizer a ele. Certamente, toda a ação passou despercebida por Simão, pois não a entendia. Os beijos, as lágrimas e os tesouros do vaso de alabastro ele via como se não visse. Os cinquenta dinheiros estavam realmente muito longe de poder medir os quinhentos.
Certamente é assim – e isso eu recebo como a lição característica desta pequena narrativa e da parábola que ela contém em seu meio. Ela ilustra o valor de a alma ter pensamentos corretos sobre seu relacionamento com Deus, o valor de saber que somos pecadores, pecadores irremediavelmente, eternamente arruinados por nós mesmos, mas que Jesus é para nós nada menos do que um Salvador presente, um Salvador perfeito, um Salvador para a eternidade.
O evangelho, em meio à multidão de glórias morais que nele brilham, tem isto: ele forma o elo mais maravilhoso e precioso entre Deus e Suas criaturas, um elo que, de uma maneira diferente, é inestimável tanto para o Doador quanto para o receptor – a obra da salvação com todos os seus resultados da parte de Deus, e o amor grato e receptivo da parte do pecador; o maior benefício para os mais distantes e indignos.
Anjos têm guardado seu estado original, formados como foram em excelência de força e esplendor; e sua origem, seu “estado original” (ARA), como é chamado, sendo assim preservado, é o elo entre eles e seu Criador. A inocência de Adão, como podemos admitir por um momento, o manteve em sua conexão com Deus como uma criatura formada correta, para andar no jardim do Éden. Mas o que são tais elos em comparação com o que a graça formou no grande sistema de salvação?
E como, então, se torna nosso dever, nossa própria obediência, nosso serviço, nutrir pensamentos ricos e seguros sobre o perdão dos pecados e a salvação de Deus! A afeição então retornará a Ele seguindo o padrão desta pecadora da cidade.
E quão divinamente belo e maravilhoso, certamente posso dizer, é aquele Livro que começa exibindo o elo da inocência entre o Senhor Deus e Suas criaturas, e encerra exibindo o da salvação! A esposa do Cordeiro em glória amará como Adão no jardim não poderia ter amado. Ela amará, permita-me dizer, segundo o modelo desta mulher na casa de Simão, o fariseu. Ela amará na força e no gozo daquela graça que perdoou quinhentos dinheiros.
E, de fato, julgo poder dizer que não sei se há alguém, no decorrer da Escritura, desde seu princípio até o seu fim, que tenha ilustrado a afeição da noiva do Cordeiro de forma mais profunda e comovente do que ela. A família de Betânia e Maria Madalena expressam uma afeição pessoal muito fervorosa. Os corações foram atraídos, cativados e detidos de forma muito bela. É algo que contemplamos com grande gozo. E posso dizer que o poder moral que reside na percepção do perdão e aceitação é belamente exibido na reunião inicial dos crentes em Jerusalém em Atos 2. E da mesma forma, Davi, no Salmo 32, e Isaías, no capítulo 6 de sua profecia, e Israel arrependido, como antecipado em Isaías 53 e Miquéias 7, entre uma multidão ao lado, expõem algumas emoções muito belas da alma sob a percepção recente do perdão e reconciliação. E assim, Pedro, Mateus, Zaqueu, a samaritana nos dias dos evangelistas e Paulo depois, ao delinear a condição de seu coração para com o Senhor Jesus, em Gálatas 2:19-21. Tudo isso é assim; e todos esses casos nos dão grandes exemplos do poder da percepção do perdão. Mas repito, não sei se em algum lugar encontramos uma ilustração tão comovente disso como nesta pecadora da cidade em Lucas 7. Ela nos apresenta a medida completa e o caminho perfeito, no qual, às vezes, a percepção do perdão e a consciência de aceitação se apoderam de toda a alma, comandando-a com autoridade inquestionável e incomparável, impondo seu jugo leve e bem-vindo sobre tudo e enchendo o espírito com as mais ricas e generosas afeições.
O que será ter um coração por toda a eternidade na possessão de tal alegria como essas condições lhe asseguram!
Há, no entanto, lições incidentais ou secundárias nesta pequena narrativa. Vemos nela, ou aprendemos por meio dela, que tudo há de reaparecer a seu tempo e no devido lugar. Os serviços da mulher e as negligências de Simão são todos lembrados pelo Senhor no final. Tudo parecia ter sido ignorado, no momento em que as coisas foram feitas ou deixadas de fazer; mas não foi assim. E isso ilustra uma verdade interessante e solene. Nada é sem importância, mas tudo tem um caráter, um caráter moral em si, enquanto há balanças agora escondidas no santuário de Deus que estão destinadas a pesar tudo no devido tempo. Como aqui – os beijos, as lágrimas, o serviço dos cabelos da cabeça e os tesouros perfumados do vaso de alabastro, que marcaram o caminho anterior desta mulher amorosa, com as correspondentes negligências dos fariseus, são todos relembrados pelo próprio Senhor em um momento em que talvez ambos estivessem inconscientes disso – como está escrito: “Virá o Senhor daquele servo num dia em que O não espera, e à hora em que ele não sabe”.
Possa isto ser levado ao coração. Temos nós prestado serviço secreto a Cristo? Temos algum interesse no dia da manifestação de todas as coisas? Como nos posicionamos em relação a esse dia? Não coloco estas questões como questões da vida, mas como apelos piedosos ao meu próprio coração e aos meus caminhos, para que as ações presentes sejam colocadas à luz dos dias vindouros.
E novamente acontece nesta história instrutiva. No final, o Senhor anuncia a salvação da mulher diante de todos os que estavam à mesa com Ele. Ele coloca Seu próprio selo amplo e autoritativo sobre o fato de que ela estava perdoada, como que na presença do mundo inteiro, não importando os pensamentos acusadores ou questionamentos incrédulos que pudessem existir. “Os teus pecados te são perdoados”, o Senhor lhe diz – “E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é Este, que até perdoa pecados?” Que voz sobre as águas deve ter sido a de Jesus! As águas voltavam a se agitar – os ventos e as ondas da Galileia estavam por toda a parte – mas a voz de Jesus havia se levantado novamente. Os sussurros e as acusações não foram ouvidos pela mulher. “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus Quem os justifica”. Isso foi suficiente para ela[3].
[3] Simão não era daquela geração de fariseus que armaram ciladas para o Senhor, como aquele do capítulo 11; mas também não era da mesma geração de Levi, que, quando fez um banquete para Jesus, colocou publicanos e pecadores em sua companhia. ↑
Mas então, ao Se voltar dos acusadores dela para ela mesma, o Senhor muda Sua voz. O fruto do perdão pode ser, e é, o amor, mas a raiz e a fonte do perdão é a fé. Não foi o amor dela, ardente e abnegado como era, que a salvou. Sua fé precedeu sua salvação, antes que esta cena se iniciasse; o amor agora vem depois dela, como vimos. E de acordo com tudo isso, quando Ele agora Se volta dos acusadores dela para ela mesma, Ele diz: “A tua fé te salvou; vai-te em paz”. Nenhuma menção ao amor ou ao que o amor havia feito, em companhia com a salvação. A salvação é pela graça, em companhia com o sangue de Cristo e da fé que apreende e se apoia nesse sangue. A salvação é algo elevado demais para ser equiparado às obras do homem. É obra de Deus, e vem “àquele que não pratica”, como diz o apóstolo. “É pela fé, para que seja segundo a graça”.
E permitam-me acrescentar que aquela que é a principal no Livro de Cantares representa a mesma geração à qual esta mulher pertencia. Ela está acima das filhas de Jerusalém, assim como esta está acima de Simão, o fariseu. Ela havia descoberto que era “morena, porém formosa”, e esse era o segredo de sua afeição sincera e ardente. Assim, ela nos lembra da eleita em Cantares e ela prenuncia, em sua afeição, a esposa do Cordeiro. Ela se coloca entre elas, e todas pertencem à mesma geração. “Eu sou morena, porém formosa” expressa o segredo de tal afeição. É o gozo e o amor de pecadores conscientemente perdoados e aceitos que preenchem o espírito daquela em Cantares, desta pobre pecadora da cidade, e da noiva-companheira, da irmã e esposa, da esposa do Cordeiro para sempre.