Origem: Revista O Cristão – Mares
O Mar da Galileia
Que momento deve ter sido, quando o Senhor acalmou o vento e o mar no lago da Galileia (Mc 4:37-41)! Que expressão de pronta obediência houve naqueles elementos furiosos! Deve ter sido maravilhoso e belo ter testemunhado isso! As pessoas podem falar da força necessária dos princípios, das leis da natureza ou do curso das coisas, mas certamente é a lei da natureza obedecer ao seu Senhor em meio aos seus cursos mais selvagens. Como aqui, em um piscar de olhos, o mar da Galileia sentiu a presença d’Aquele que transfigura a Seu bel-prazer o curso da natureza, ou que por um toque desequilibra tudo.
Quando o mesmo Jesus (Sl 104) finalmente rugir sobre Sua presa como um leão, o trovão, embora estivesse dormindo no momento anterior, pronuncia Sua voz (Ap 10), pois todas as forças da natureza estão igualmente, imóveis ou ativas, a Seu bel-prazer. E assim, no final, quando entronizado em vestes brancas ou trajado para julgamento, os céus e a Terra, com a mesma prontidão instintiva, fugirão da Sua presença (Ap 20).
O Senhor ouviu Josué
Observo uma diferença no estilo da ação em Josué, quando o Sol e a Lua pararam no meio do céu. Foi o Senhor Quem ouviu a voz do homem ali. Josué orou e teve o poder de Deus ao seu lado, e a ocasião foi cheia de admiração, nenhum dia foi como esse.
Mas Jesus age imediatamente e de Si mesmo, e nenhuma surpresa é expressada pelo evangelista inspirado. Todo o espanto que seguiu à ocasião surge de corações despreparados tanto dos homens como dos discípulos.
Muitos ventos, posso dizer, sopraram sobre a mesma água desde o dia de Marcos 4, e o coração de muitos discípulos alarmados clamou novamente, mas não houve resposta. Muitas e muitas tempestades de aflição, penosas e terríveis ainda varrem o caminho do povo de Deus, e não há nenhuma ordem para isso d’Aquele que ainda tem direito e poder. Mas assim podemos aprender que, embora haja “necessidade de paciência”, e Jesus pareça ainda estar dormindo, Ele está conosco agora tão verdadeiramente quanto estava com os discípulos diante do perigo naquela época.
A presença de Jesus
E essa mesma água nem sempre foi conturbada. Muitas vezes, testemunhou a pesca bem-sucedida dos discípulos de Jesus. Ao comando do mesmo poder que agora acalmava as águas, elas repetidamente produziam seus tesouros, e redes cheias eram dadas a eles sem qualquer esforço deles. Como agora, no cenário mutável da vida, pode haver paz e abundância, e também perigo, perturbação e medo. Mas, oh, o conforto, se pudéssemos apenas abraçá-lo! É a presença do mesmo Jesus que a fé tem o direito de conhecer, seja em águas suaves, em águas tranquilas ou em águas que ainda se enfurecem e se avolumam sem uma voz que as comande. Ele pode estar ativo em um caso e parecer adormecido no outro, mas Ele está igualmente no barco, em ambos os casos.
E tenho pensado que a comunhão que os discípulos tiveram com o seu Senhor depois de O terem despertado não era igual àquela que teriam tido se a sua fé O tivesse deixado dormindo. Eles estavam, é verdade, sem mais seus temores do vento e desfrutando do fruto de Seu poder, mas eles tinham temores em relação a Ele mesmo e não estavam à vontade em Sua presença. Ele os repreendeu, e eles não podiam deixar de se lembrar de que O haviam inquietado. Se eles O tivessem deixado dormir, poderiam ter se assentado e olhado para Ele em Sua almofada, e por meio desse olhar teriam aprendido a intimidade de Seu interesse com o deles, e se veriam atados “no feixe dos que vivem” com Ele. Mas agora tudo isso estava perdido para eles: perdedores espiritualmente, ganhadores providencialmente. O mesmo acontece conosco muitas vezes. O Senhor desce ao nosso nível, ao lugar que nossos temores O trouxeram, nas operações libertadoras de Sua mão, mas é com a perda da luz daquela elevação onde Ele estava – o lugar até onde a fé nos teria levado. Será que nossa alma não conhece algo sobre isso?
O medo ou a incredulidade às vezes impedem a comunhão com o Senhor e separam a alma do gozo do que Ele é para nós.
Egoísmo
Pior ainda é quando o impedimento é o egoísmo. Nós mesmos conhecemos essas coisas e ouvimos falar delas nas experiências registradas de outros. Numa cena anterior no Mar da Galileia (Mc 4), os discípulos, por medo, perderam o que seu Senhor teria sido para eles; aqui, no mesmo mar, eles O perderam por egoísmo (Mc 6:31-52). Eles haviam retornado a Ele depois de um dia de trabalho árduo, e Ele Se retirara com eles, para que pudessem descansar e se refrescar. Mas a privacidade deles logo foi perturbada pela multidão. Na perfeição de Seus caminhos, Ele imediatamente Se afastou deles para atender a necessidade mais profunda do povo. Eles eram como ovelhas sem pastor, e Ele começa a ensiná-los. Isso era perfeito e, portanto, o único caminho que o Filho de Deus poderia tomar. Ele passa da necessidade menor para a maior – do cansaço dos discípulos para as necessidades espirituais da multidão. Ao tomar essa direção, os discípulos sofrem. Mas isso não é culpa de seu Mestre, mas o resultado da perfeição de Seu caminho.
Isso acontece continuamente conosco, e ficamos ressentidos. Nosso egoísmo nos torna atentos à nossa parte no grande cenário que nos rodeia, e não estamos com Ele, em sabedoria e amor, examinando o cenário e considerando-o em todos esses relacionamentos. Assim foi nessa passagem com os discípulos: Eles se ressentem com a multidão que está sendo assim servida, e propõem ao seu Mestre, depois de algum tempo, que Ele os mande embora. Portanto, houve uma ruptura moral entre Ele e eles. O egoísmo deles, e estreiteza de coração, causaram isso. Ele não pode seguir o curso que eles prescrevem. Ele alimenta, em vez de despedir, a multidão.
A disciplina, então, vem no devido tempo. Depois de alimentar o povo, o Senhor diz aos discípulos para irem a bordo e atravessarem o Mar da Galileia. Assim como o egoísmo deles de bom grado O teria separado do povo, Sua disciplina deve agora separá-los do gozo e da força de Sua presença. Eles se lançam ao mar, e Ele segue Seu caminho perfeito, despedindo-Se do pobre rebanho sem pastor, retirando-Se para o monte para orar, e depois descendo para caminhar sobre o mar, que todo esse tempo, por causa de ventos contrários, custou aos discípulos árduo trabalho no remo.
Separação de Sua presença
Isso foi separação, de fato. Eles veem, mas não compartilham o triunfo de seu Senhor. Em princípio, isso traz consigo toda a diferença entre julgamento e salvação. Por um momento, a alma dos discípulos teve que provar um pouco disso. Por não discerni-Lo, eles clamam. Estão muito impressionados, e maravilhados. Eles veem seu Senhor no lugar de força e vitória, mas não estão com Ele lá. Essa é a verdadeira separação. Eles, com medo, O contemplam andando sobre toda aquela poderosa agitação e tempestade, que lhes causava tanto trabalho árduo e angústia.
Salvação e julgamento
Isso traz consigo toda a diferença entre salvação e julgamento. Pois o que é a salvação senão uma participação na vitória do Filho de Deus? E o que será o julgamento, senão ver essa vitória em seu glorioso fruto sem uma participação nele, e sim expulso de sua presença com confusão e espanto?
O Mar da Galileia pode retratar a vida do Cristão para nós. A superfície era calma às vezes, agitada às vezes, requerendo trabalho duro no remo às vezes, proporcionando um velejar propício e pesca bem-sucedida às vezes, e às vezes despertando medo. Mas, por mais que mudasse, Jesus estava lá com Seu povo. Os Seus caminhos podem variar, mas Ele está sempre com eles ou Se junta a eles. Ele pode às vezes estar enchendo suas redes, dirigindo seus trabalhos, dormindo como se Ele não estivesse cuidando deles, a companhia de sua suave travessia, ou caminhando em força acima daquilo era demais para eles. Mas Ele ainda está com eles: Seja navegando, pescando, remando ou combatendo o vento com medo, Ele está sempre com eles.
The Remembrancer, 1902