Origem: Revista O Cristão – O Homem Perfeito e Dependente
“Meus Ouvidos Abriste”
Ao discorrer com Seus discípulos após Sua ressurreição, o Senhor disse que “convinha que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos” (Lc 24:44), indicando a concordância do testemunho encontrado na Escritura do Velho Testamento a respeito d’Ele. O assunto da orelha furada é um deles.
O servo hebraico
Em Êxodo 21, temos uma ordenança Judaica profundamente interessante. Ela estabeleceu que o servo hebreu que fosse comprado deveria cumprir a ordenação de seu termo de serviço, e ele posteriormente teria direito à sua liberdade, mas se ele tivesse adquirido, durante sua servidão, uma esposa e filhos, estes deveriam ser entregues ao seu senhor, e o escravo sairia sozinho. Caso, no entanto, sua afeição por seu senhor, por sua esposa e por seus filhos impedisse que ele os deixasse, havia provisão feita por Jeová para que ele assumisse o serviço para sempre. Seu senhor, na presença dos juízes, deveria então furar a orelha com uma sovela, procedimento pelo qual seu serviço seria para sempre. Nesse ato impressionante, vemos um belo tipo d’Aquele Servo incomparável – Aquele Bendito cujo serviço a Seu Pai (ou Senhor), à Sua Igreja (ou esposa) e a Seu povo terrenal (ou filhos) será tanto perpétuo, quanto profundo.
Se passarmos agora da “lei de Moisés” para “os Salmos” (veja Salmo 40), encontramos novamente os ouvidos abertos, ou cavados, do Servo devotado. Embora fosse Um pobre e necessitado, Ele era poderoso para salvar e forte para libertar, mas Ele é descrito aqui como a Testemunha triste e sofredora empenhada em fazer a vontade de Deus, no corpo que havia sido preparado para Ele. Ele esperou pacientemente no SENHOR Deus, deleitando-Se em fazer Sua vontade. Que figura é essa do Servo perfeito, o Enviado de Deus! E no meio disso lemos aquela bela exclamação que forma a resposta divina à especial figura de Êxodo 21: “Os Meus ouvidos abriste [ou cavaste]”.
O ouvido aberto
Novamente, se acrescentarmos a isso o testemunho completo dos “profetas” (veja Isaías 50:4-6), obteremos uma descrição ainda mais completa da devoção deste Servo perfeito. “O Senhor JEOVÁ”, Ele diz, “Me deu uma língua erudita, para que Eu saiba dizer, a seu tempo, uma boa palavra ao que está cansado. Ele desperta-Me todas as manhãs, desperta-Me o ouvido para que ouça como aqueles que aprendem. O Senhor JEOVÁ Me abriu os ouvidos, e Eu não fui rebelde; não Me retiro para trás. As costas dou aos que Me ferem e a face, aos que Me arrancam os cabelos; não escondo a face dos que Me afrontam e Me cospem”. Certamente nenhuma linguagem poderia expressar de forma mais tocante o quão verdadeiramente Ele Se esvaziou para Se tornar o Homem dependente sobre a Terra! E aqui podemos observar quão adequadamente o ouvido, sendo aquele órgão por meio do qual os mandamentos são recebidos, é, nessas passagens, o tema do ensino profético a respeito do Servo fiel de Deus. Nada poderia ser mais belo do que a atitude do Senhor Jesus de ouvir manhã após manhã, com o ouvido aberto de uma vontade submissa, para receber instruções de Seu Pai!
Assim também podemos entender o que de outra forma poderia parecer inexplicável – Sua recusa em fazer algo que Ele realmente faz logo depois. Há três exemplos disso no evangelho de João. No segundo capítulo, Sua mãe, ao se sentarem juntos no casamento em Caná, diz-Lhe de maneira significativa: “(Eles) não têm vinho”. Em Sua resposta, Ele afirma: “Ainda não é chegada a Minha hora”. Mas houve apenas uma pequena pausa antes que Ele fizesse o gentil milagre que manifestou Sua glória! Também no sétimo capítulo, quando Seus irmãos sugerem que Ele suba à grande festa dos tabernáculos, “Disse-lhes, pois, Jesus: Ainda não é chegado o Meu tempo, mas o vosso tempo sempre está pronto”, indicando-nos certamente que, enquanto eles faziam a própria vontade, Ele esperava a vontade de Outro. Então, Ele permanece na Galileia, mas um ou dois dias depois sobe a Jerusalém, e que mensagem Ele é encarregado de transmitir! Novamente no décimo primeiro capítulo, depois de receber das amadas irmãs de Lázaro a mensagem sobre sua doença, Ele permanece dois dias ainda no mesmo lugar onde estava. “Depois disso”, Ele diz a palavra inesperada aos Seus discípulos: “Vamos, outra vez, para a Judéia”. Quando o comovente apelo da família entristecida O alcançou, Ele não recebeu nenhuma palavra do Pai e, consequentemente, resistindo aos impulsos de Seu amor, Ele permanece onde estava.
Como o Servo cingido, Ele deve esperar ordens por meio de um ouvido aberto. O que terá Ele sentido em Sua profunda compaixão e empatia humanas, enquanto em Sua onisciência, Ele seguia os efeitos da doença até o ponto culminante da morte, permanecendo durante os dois dias inteiros, esperando a Palavra que aguardava? Por fim, Ele recebe esse aviso de manhã; o Senhor Jeová despertou Seu ouvido para ouvir como o Aprendiz, e Ele dá o sinal para a partida.
Temores humanos
Agora, porém, surge outra coisa. Seus discípulos, na timidez da incredulidade, trazem seus temores humanos e O desaconselham a retornar à Judéia; há um leão no caminho! Quão cheia de sabedoria divina e de luz celestial é a resposta pronta com a qual Ele não apenas silenciou as oposições dos discípulos, mas dissipou as ansiedades deles! “Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo; mas se alguém andar de noite, tropeça, porque a luz não está nele” (Jo 11:9-10 – TB). E assim como Ele não seria induzido pelo amor precioso e terno de Seu coração humano a se mover em direção à Judéia até que tivesse a palavra de Jeová em Seu ouvido, por outro lado, Ele não seria impedido de voltar para lá por quaisquer apreensões de inimizade Judaica ou oposição satânica. A vontade d’Aquele que O enviou havia caído sobre Seu ouvido aberto, e foi suficiente.
O Servo perfeito
Que lição de sujeição à vontade do Pai essas passagens nos transmitiriam se apenas tivéssemos um espírito ensinável como o d’Ele! Ele não Se comove com as sugestões de Sua mãe, com as súplicas de Seus irmãos e com os sussurros de Seu próprio coração, e igualmente não é impedido pelas dissuasões que vêm de Seus discípulos. Como o Servo perfeito, em absoluta submissão à vontade e perfeita entrega de Si mesmo, Ele espera pela palavra de Jeová e, tendo-a recebido, Ele trilha o caminho até então inexplorado de um homem perfeitamente obediente e dependente. Aquele que era companheiro de Jeová entregou-Se ao sofrimento e à servidão e não escondeu o rosto de vergonha e da cusparada. Precioso e inigualável Salvador!
Um corpo preparado
Se, para concluir, pudermos acrescentar uma palavra sobre Seu caráter distinto de serviço a nós, três passagens bem conhecidas trarão seu passado, seu presente e seu caráter futuro divinamente diante de nós. Em Hebreus 10, o apóstolo se refere ao Salmo 40, uma Escritura que já vimos, onde as palavras “Abriste os Meus ouvidos” são citadas da Septuaginta, onde temos: “Mas corpo Me preparaste”. Naquele corpo Ele carregou nossos pecados e, por Sua morte, nos libertou da ira vindoura. Ele estava nos servindo ali, pois esta era a vontade de Deus, que por meio de tal serviço Ele O glorificasse e tomasse despojos do inimigo.
Em João 13, antes de partir, sabendo que o Pai havia confiado tudo à Sua mão, Ele deixa de lado Suas vestes e Se torna o Servo cingido de nossa necessidade diária presente. No mesmo ato, Ele repreende Seus discípulos por sua luta imprópria (compare Lc 22:24) e coloca diante deles quais deveriam ser Suas ministrações em favor de Seus santos durante a longa noite de Sua ausência. Ele seria um Padrão para o nosso cuidado e amor um pelo outro.
O Servo cingido
E, por último, em Lucas 12 – onde Ele dá a cada verdadeiro santo o crédito de ser alguém que vigia por Seu retorno – Ele amorosamente alegra o coração deles com a revelação, até então inédita, de que Ele tinha um propósito profundamente desejado para cumprir na glória, ou seja, o de nos fazer sentar à mesa e Se apresentará Ele próprio então como o Servo cingido daqueles a quem Ele Se deleitará em servir para sempre. Que possamos ter o entendimento tão exibido por Ele quanto aos ouvidos abertos, para que pela graça possamos assimilar esta lição da lei de Moisés, dos Salmos e dos Profetas a respeito d’Ele. Somos habitados pelo mesmo Espírito. Que possamos exibir a mesma abnegação para a glória de nosso Senhor.
W. R. D. Christian Friend, Vol. 6 (adaptado)