Origem: Revista O Cristão – Devoção

Devoção Cristã

Se há uma coisa que é importante agora, é a devoção Cristã. Não a separo da doutrina Cristã, mas a fundamento nela; certamente não a separo da presença e do poder do Espírito (uma das mais importantes dessas doutrinas), pois ela é produzida por isso. Mas creio ser da maior importância para os próprios santos e para o testemunho de Deus a devoção Cristã fundamentada na verdade e produzida pelo poder do Espírito. Creio certamente que a doutrina é de profunda importância agora: a clareza quanto à redenção; a paz que pertence ao Cristão por meio da justiça divina; a presença e o vivo poder do Consolador enviado do céu; a segura e bendita esperança da vinda de Cristo novamente para nos receber para Si para que onde Ele estiver estejamos nós também, de que seremos semelhantes a Ele vendo-O como Ele é e de que, se morrermos, estaremos presentes com Ele; o conhecimento de que, ressuscitados com Ele, seremos abençoados não somente por meio de Cristo, mas com Cristo, e a profunda e prática identificação com Ele, por estarmos unidos a Ele pelo Espírito Santo. Todas essas coisas, e muitas coisas relacionadas a elas, mantidas no poder do Espírito Santo, nos separam do mundo, abrigam a alma, pela possessão espiritual de Cristo glorificado, pela possessão consciente de Cristo, das objeções da infidelidade atual e dão uma fonte viva para a alegria e esperança de toda a vida Cristã. Mas a expressão do poder dessas coisas no coração se manifestará em devoção.

O Cristianismo exerceu uma poderosa influência sobre o mundo, mesmo onde ele é abertamente rejeitado, bem como onde é professamente recebido. Cuidar dos pobres e suprir necessidades temporais tornaram-se deveres reconhecidos da sociedade. E, onde a verdade não é conhecida e o Cristianismo está corrompido, a devoção diligente a isso, com base no falso mérito, é amplamente usada para propagar essa corrupção. E, mesmo onde prevalece a infidelidade, os hábitos de sentimento, produzidos pelo Cristianismo, prevalecem, e o homem se torna objeto de cuidados diligentes, embora muitas vezes pervertidos. O testemunho do verdadeiro santo certamente não deveria faltar onde a falsidade imita os bons efeitos da verdade. Mas existem motivos mais elevados do que esses, e é do verdadeiro caráter da devoção que eu quero falar.

Motivo e mérito 

Quanto ao galardão, como motivo ou mérito, é claro que tal pensamento destrói toda a verdade da devoção, porque não há amor nisto. É o “eu”, buscando, como “Tiago e João”, um bom lugar no reino. O galardão existe na Escritura, mas é usado para nos encorajar nas dificuldades e perigos em que motivos mais elevados e mais verdadeiros nos colocam. Assim o próprio Cristo, “o Qual, pelo gozo que Lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta”. No entanto, sabemos bem que Seu motivo era o amor. Assim Moisés “ficou firme, como quem vê Aquele que é invisível” (AIBB), “porque tinha em vista a recompensa”. Sua motivação era cuidar de seus irmãos. Portanto, o galardão é sempre usado, e é uma grande misericórdia dessa maneira. E cada um recebe seu galardão segundo seu próprio trabalho.

A fonte e o manancial 

O manancial e fonte de toda devoção verdadeira é o amor divino preenchendo e operando em nosso coração, como Paulo diz, “O amor de Cristo nos constrange”. Sua forma e caráter devem ser extraídos das ações de Cristo. Portanto, a graça precisa primeiro ser conhecida pela pessoa, pois é assim que eu conheço o amor. Assim é que esse amor é derramado no coração. Aprendemos o amor divino na redenção divina. Essa redenção nos coloca também em justiça divina diante de Deus. Assim, toda questão de mérito, de justiça própria, é excluída, e o interesse pessoal em nossa obra é deixado de lado. “A graça”, nós aprendemos, reina “pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo”. O infinito e perfeito amor de Deus nos permite desfrutar agora do amor divino. Falo de tudo isso agora em vista do amor assim mostrado. Isso entrelaça nosso coração a Cristo, levando-o a Deus n’Ele, trazendo Deus n’Ele a nós. Dizemos que nada nos separa desse amor.

A ordem dos efeitos 

O primeiro efeito é elevar o coração, assim santificando-o: nós bendizemos a Deus, adoramos a Deus, assim conhecido; nosso deleite está em Jesus. Mas, estando assim próximo a Deus e em comunhão com Ele, o amor divino entra e flui em nosso coração. Somos animados por ele ao desfrutá-lo. É o amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor; não menos Deus, mas Deus revelado em Cristo, pois ali aprendemos o amor. Assim, em toda verdadeira devoção, Cristo é o objeto principal e governante; depois “os Seus” que estão no mundo; e então nossos semelhantes. Primeiro a alma deles, depois o corpo, e todas as necessidades em que se encontram. A vida de bondade d’Ele para com o homem governa a nossa, mas Sua morte governa o coração. “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a Sua vida por nós”. “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se Um morreu por todos, logo, todos morreram. E Ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou”.

Devemos observar também que toda ideia de mérito e justiça própria é totalmente excluída; portanto, é uma nova vida em nós que desfruta de Deus e para a qual Seu amor é precioso. Não é a benevolência da natureza, mas a atividade do amor divino no novo homem. Sua genuinidade é assim testada, porque Cristo tem necessariamente o primeiro lugar com essa natureza, e sua atuação está naquela avaliação do certo e do errado que somente o novo homem possui e da qual Cristo é a medida e o motivo.

Mas é mais do que uma nova natureza. Nosso corpo é o templo do Espírito Santo, e o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado. E, assim como em nós é como uma fonte a jorrar para a vida eterna, assim também rios de água viva fluem de nós pelo Espírito Santo que recebemos. Toda devoção verdadeira, então, é a ação do amor divino nos remidos, pelo Espírito Santo dado a eles.

Benevolência natural 

Pode haver um zelo que percorra terra e mar, mas é no interesse de um preconceito ou é a obra de Satanás. Pode haver uma benevolência natural revestida de um nome mais nobre, mas que se irrita se não for aceita por si só. Pode haver um senso de obrigação e atividade legalista, que, pela graça, podem levar mais longe, embora seja a pressão da consciência, não a atividade do amor. A atividade do amor não destrói o senso de obrigação do santo, mas altera todo o caráter de sua obra. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”. Em Deus, o amor é ativo, mas soberano; já nos santos ele é ativo, mas é um dever, por causa da graça. Ele deve ser livre para ter o caráter divino de ser amor. No entanto, devemos tudo e mais do que tudo Àquele que nos amou. O Espírito de Deus que habita em nós é um Espírito de adoção e, portanto, de liberdade com Deus, mas fixa o coração no amor de Deus de uma maneira que constrange. Todo sentimento correto em uma criatura deve ter um objeto e, para ser correto, esse objeto deve ser Deus, e Deus revelado em Cristo como o Pai, pois é assim que Deus possui nossas almas.

Uma entrega de amor a Deus 

O que se supõe aqui não é uma lei contendendo ou barrando uma vontade que busca seu próprio prazer, mas a entrega bem-aventurada e agradecida de nós mesmos ao amor do bendito Filho de Deus, e um coração entrando nesse amor e em seu objeto por meio de uma vida que flui de Cristo e do poder do Espírito Santo. Portanto, é uma lei de liberdade. O coração se move na esfera em que Cristo Se move. Ama os irmãos, pois Cristo os ama, e todos os santos, porque Ele os ama. Ele busca por todos por quem Cristo morreu, mas sabendo que somente a graça pode trazer qualquer um deles; tudo suporta “por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna”; procura apresentar “todo homem perfeito em Jesus Cristo”; deseja ver os santos crescerem até a estatura d’Aquele que é a Cabeça em todas as coisas e andarem dignos do Senhor; deseja ver a Igreja apresentada como uma virgem pura a Cristo. Permanece em seu amor, ainda que, quanto mais abundantemente ame, menos seja amado. Está pronto para suportar dificuldades como um bom soldado de Jesus Cristo.

O fator governante 

Um motivo governante caracteriza todo o nosso andar: tudo é julgado por ele. Um homem que vive de prazeres joga dinheiro fora; o mesmo acontece com um homem ambicioso. Eles julgam o valor das coisas pelo prazer e pelo poder. Já o homem avarento pensa que o caminho desses é loucura, e julga todas as coisas por sua tendência de enriquecer. O Cristão julga tudo por Cristo. Se algo impede Sua glória na própria pessoa ou em outra, é lançado fora. Não é julgado como sacrifício, mas lançado fora como um obstáculo. Tudo é escória e esterco pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, nosso Senhor. Lançar fora a escória não é nenhum grande sacrifício. Quão abençoado é o “eu” desaparecer aqui! “O que para mim era ganho” desapareceu. Que libertação isso é! Indizivelmente preciosa para nós mesmos e que nos eleva moralmente! Cristo deu a Si mesmo. Temos o privilégio de esquecer o “eu” e viver para Cristo. Nosso serviço em graça será recompensado, mas o amor tem suas próprias alegrias em servir em amor. O “eu” gosta de ser servido. O amor se deleita em servir. Assim vemos em Cristo, na Terra, agora; quando estivermos em glória, Ele Se cinge e nos serve. E não devemos nós, se tivermos o privilégio, imitar, servir, nos entregarmos a Ele, que tanto nos ama? Viver para Deus interiormente é o único meio possível de viver para Ele exteriormente. Toda atividade exterior que não seja movida e governada por isso é carnal e até mesmo um perigo para a alma, pois tende a nos fazer dispensar Cristo e introduzir o “eu”. Isso não é devoção, pois devoção é devoção a Cristo, e ela está necessariamente em procurar estar com Ele. Eu temo grande atividade sem grande comunhão, mas acredito que o coração, quando está com Cristo, viverá para Ele.

A forma de devoção, de atividade exterior, será governada pela vontade de Deus e pela competência de servir, pois a devoção é algo humilde e santo, fazendo a vontade de seu Mestre, mas o espírito de serviço indiviso a Cristo é a verdadeira porção de todo Cristão. Queremos sabedoria; Deus a dá liberalmente. Cristo é nossa verdadeira sabedoria. Queremos poder; nós o aprendemos em dependência d’Aquele que nos fortalece. Devoção é um espírito dependente, como também humilde. Assim foi em Cristo. Ela espera no seu Senhor. Tem coragem e confiança no caminho da vontade de Deus, porque se apoia na força divina em Cristo. Ele pode fazer todas as coisas. Por isso, ela é paciente e faz o que tem que fazer de acordo com Sua vontade e Palavra, pois então Ele pode operar, e Ele faz tudo o que é bom.

Oposição e rejeição 

Há um outro lado disso que precisamos considerar. O simples fato de prestar um serviço indiviso em amor é somente gozo e bênção. Mas estamos em um mundo onde isso sofrerá oposição e rejeição, e o coração naturalmente procuraria preservar a si próprio. Isso foi o que Pedro apresentou a Cristo e Cristo tratou como sendo Satanás. Descobriremos que a carne instintivamente recua diante do fato e do efeito da devoção a Cristo, porque significa renunciar o “eu” e traz sobre nós reprovação, abandono e oposição. Temos que tomar nossa cruz para seguir a Cristo, não voltar para nos despedir daqueles que estão à vontade na casa. Se dissermos que ainda é nossa casa, seremos, na melhor das hipóteses, um “João Marcos” na obra. E descobriremos que sempre haverá então um “deixa-me ir primeiro” (TB)! Se houver qualquer coisa que não seja Cristo, ela se colocará à frente de Cristo, e não será devoção a Ele com olho simples. Mas isso é algo difícil para o coração, que não haja interesse próprio, nem preservação própria, nem satisfação própria! No entanto, nenhuma dessas coisas é devoção a Cristo e aos outros, mas exatamente o oposto. Portanto, se quisermos viver para Cristo, devemos nos considerar mortos, e vivos para Deus por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.

Obediência 

O amor tem um outro caráter: qualquer que seja sua devoção e atividade, ele é obediência. Não pode haver uma vontade justa em uma criatura, pois justiça em uma criatura é obediência. Adão caiu, tendo uma vontade independente de Deus. Cristo veio para fazer a vontade d’Aquele que O enviou, e, em Sua mais elevada devoção, Seu caminho era o da obediência. “Se aproxima o príncipe deste mundo e nada tem em Mim. Mas é para que o mundo saiba que Eu amo o Pai e que faço como o Pai Me mandou”. Isso tanto dirige em devoção como nos mantém tranquilos e humildes.

Nossa conclusão, então, é uma devoção simples, indivisa a Cristo; Cristo, o único Objeto, quaisquer que sejam os deveres aos quais esse motivo possa levar à fidelidade; não conformidade com o mundo que O rejeitou; uma brilhante esperança celestial conectando-se com Cristo em glória, que virá e nos receberá para Si mesmo e nos fará semelhantes a Ele, para que sejamos como homens que esperam por seu Senhor; Seu amor nos constrangendo, em todas as coisas se importando com o que Ele Se importa, Cristo crucificado e Cristo diante de nós como nossa esperança, os centros em torno dos quais toda a nossa vida gira.

J. N. Darby – adaptado de Collected Writings 16:234

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