Origem: Livro: A Lei – O Relacionamento Apropriado do Cristão com a Lei
A Lei Não é a Regra para a Vida Cristã
Chegamos agora ao nosso terceiro e último ponto. Posso ser questionado: Se a lei ainda serve ao propósito de reprovar o mal, então, certamente, não seria uma boa regra para a vida do Cristão? A resposta é: “Pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rm 6:14). Ou estamos sob a lei ou não estamos. Se eu tenho uma obrigação para com a lei, então estou sob ela. A obediência do Cristão é à Pessoa de Cristo. É uma obediência enraizada no amor e não no dever. É uma obediência voluntária à qual a nova natureza responde por meio do poder do Espírito Santo.
Atos 15 aborda a questão da sujeição dos gentios à lei. Alguns de Jerusalém estavam ensinando “que era mister circuncidá-los [os gentios] e mandar-lhes que guardassem a lei de Moisés” (At 15:5). Pedro fala claramente: “Por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós podemos suportar?” (At 15:10). Numa reunião dos irmãos em Jerusalém[10], foi formulada uma comunicação repudiando o erro: “Porquanto ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras e transtornaram a vossa alma (não lhes tendo nós dado mandamento):… Na verdade, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Bem vos vá” (At 15:24, 28-29). As três coisas necessárias mencionadas não formam uma nova lei nem, a propósito, expressam toda a extensão da conduta Cristã. Elas abordam práticas, aceitáveis entre os gentios, que eram contrárias à natureza sagrada de Deus e do crente. A comunicação veio por inspiração divina (v. 28); não foi por capricho dos irmãos, nem foi de forma alguma um acordo para satisfazer os irmãos judeus. A sensibilidade entre os irmãos, especialmente entre os de origem judaica e gentia, é retomada em Romanos 14-15; não é o assunto aqui. Três das quatro coisas necessárias são anteriores ao dilúvio; comer carnes oferecidas a ídolos é abordado por Paulo em sua primeira carta aos Coríntios (1 Co 10:19-20), era equivalente à comunhão com demônios.
[10]  N. do A.: O assunto foi tratado em Jerusalém, não porque tivesse autoridade sobre as outras assembleias, mas porque aquela assembleia era a origem dos indivíduos que propagavam o erro. ↑
Se Atos 15 responde à pergunta sobre se os gentios deveriam estar sujeitos à lei, a epístola de Paulo aos Gálatas dirige a questão para todos os crentes – tanto judeu quanto gentio. Mestres influentes haviam entrado nas assembleias da Galácia e insistiam que o Cristão precisava estar sujeito à lei. As palavras de Paulo aos gálatas são muito fortes. “Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou para não obedecerdes à verdade, a vós, perante os olhos de quem Jesus Cristo foi já representado como crucificado? Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois vós tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito, acabeis agora pela carne?” (Gl 3:1-3). A mistura da lei, e mais comumente do judaísmo, com o Cristianismo, pode parecer uma coisa pequena, mas exalta o homem às custas de Cristo. Como tal, é ofensivo a Deus.
Para muitos, que entendem corretamente que não somos justificados no princípio de lei, esses podem ainda ver a lei como uma parte necessária à senda Cristã. Mas se assim fosse, qual seria o propósito? Seremos agora aperfeiçoados por meio de lei? A obra de Deus em nós está incompleta? Lemos em outra passagem: “Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a Sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus” (1 Jo 3:9). Por meio do novo nascimento, agora possuímos a mesma natureza que Cristo tem.
Talvez seja dito que precisamos da lei para distinguirmos o certo do errado e para julgar a carne. Mas agora temos a habitação do Espírito Santo: “Mas, quando vier Aquele Espírito da verdade, Ele vos guiará em toda a verdade” (Jo 16:13). “E vós tendes a unção do Santo e sabeis tudo” (1 Jo 2:20). Quando andamos de acordo com a nova natureza no poder do Espírito, a carne não terá parte em nossa vida: “Andai em Espírito e não cumprireis a concupiscência da carne” (Gl 5:16). Alguém pode replicar: Sim, mas ainda temos a carne em nós; não precisamos da lei para mantê-la sob controle? Novamente, a resposta que a Escritura nos dá é clara: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei” (Rm 6:14). Este é um versículo marcante; exatamente aquilo que supomos que manterá a carne sob controle (a lei) nos coloca sob o domínio do pecado. E por que isto? “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Rm 8:7). Em contraste, quando andamos no benefício de tudo o que Deus em Sua graça nos deu, somos libertos da lei do pecado e da morte (Rm 8:2). Se existe uma regra para a vida Cristã, é simplesmente esta: “Aquele que diz que está n’Ele também deve andar como Ele andou” (1 Jo 2:6). E ainda: “Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai n’Ele” (Cl 2:6).
Muitos irão relegar todos os versículos que falam de não estarmos sob a lei à uma questão de justificação. E ainda, “Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus” (Gl 2:19). Isso é justificação? Não, ele fala de nossa vida presente e ela está totalmente à parte da lei. “Também vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais Doutro, d’Aquele que ressuscitou de entre os mortos, a fim de que demos fruto para Deus” (Rm 7:4). Novamente, isso fala de fruto para Deus em nossa vida e não de justificação. Não somos justificados pelo princípio de lei e não podemos produzir fruto para Deus com base no princípio de lei.
Quando olhamos para o contexto histórico da lei, vemos que ela foi dada a um povo natural com uma herança terrena. Era uma regra adequada para aquela esfera de coisas. Gálatas, por outro lado, nos vê retirados totalmente deste mundo: “Cristo, o qual Se deu a Si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau” (Gl 1:3-4); “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20); “E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5:24); “Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu, para o mundo” (Gl 6:14). Colocar-nos sob a lei nos traz de volta a este mundo e sua esfera. Há muita coisa no mundo que é contrária ao Cristianismo e deveríamos esperar por isso. Não dizemos, isso e aquilo é condenado pela lei; temos de estar totalmente à parte dela.
A objeção que pode ser feita é de que embora estejamos livres das leis cerimoniais, temos uma obrigação para com a lei moral. É verdade que o livro de Gálatas tem muito a dizer contra a circuncisão – um estatuto cerimonial, não moral. Mas por que a circuncisão foi tão devastadora? Porque isso coloca a pessoa sob toda a lei – eles ficaram em dívida com todas as coisas: “Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las” (Gl 3:10). Quando os Cristãos falam da lei, ela é frequentemente reduzida a pouco mais que os Dez Mandamentos. Embora os Dez Mandamentos ocupem um lugar único – eles foram escritos nas duas tábuas de pedra com o dedo de Deus (Êx 31:18, Dt 10:4) – eles não podem ser tão convenientemente separados do restante da lei. Quando perguntaram: “Mestre, qual é o grande mandamento da lei?” (Mt 22:36), o Senhor Jesus respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37-39). Nenhum desses dois mandamentos está entre os dez; eles são encontrados em outros lugares (Dt 6:5; Lv 19:18). Deve-se reconhecer que os Dez Mandamentos por si só não abrangem a chamada lei moral.
Perguntamos: o versículo – “Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo de lei, mas debaixo da graça” (Rm 6:14 – JND) – fala de lei moral ou cerimonial? Que tal: “Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (1 Co 15:56). Sem dúvida, o apóstolo está falando da lei em sua natureza e essência moral. Ele diz: “Eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás” (Rm 7:7). Isso não tem nada de cerimonial; é moral. Tão certo quanto esses versículos tocam nos aspectos morais da lei, eles nos tiram de debaixo dela.
Se não estamos sob a lei, isso parece clamar pela pergunta: “Pois quê? Pecaremos porque não estamos debaixo de lei, mas debaixo da graça?” (Rm 6:15 – JND). O que significa estar sob a graça? É uma maneira completamente nova de tratar com o homem em contraste com lei. Deus em Sua bondade nos deu tudo o que precisamos para andar em justiça prática diante d’Ele. Além disso, Seu amor em enviar Seu Filho unigênito, e o amor do Filho em dar-Se por nós, nos ensina – se tivermos alguma afeição por Cristo – que não podemos andar em nossos antigos caminhos. Se alguém pagou minhas dívidas – dívidas que não pude pagar – assumir uma aposta seria uma afronta das mais flagrantes para meu benfeitor Com efeito, tomaríamos novamente nosso lugar com aqueles que: “Cuspiram-Lhe no rosto e Lhe davam murros, e outros O esbofeteavam” (Mt 26:67). Tomaríamos, ou poderíamos agora tomar nosso lugar com eles? Mesmo assim, “a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens, ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, justa e piamente” (Tt 2:11-12).
