Origem: Livro: Breves Meditações
A Morte Consumada
Eles falavam da Sua morte, a qual havia de se cumprir – três palavras de doce e variada importância. Elas nos falam da intimidade, da intimidade pessoal, que existe entre o Senhor e os eleitos nos reinos de glória. Como aconteceu no jardim do Éden no princípio, e depois entre os patriarcas, e depois com os discípulos e seu divino Mestre nos dias dos evangelistas, assim será nas eras de glória: haverá intimidade pessoal entre o Senhor e Seu povo, assim simbolizada pela palavra “falar”. “Falou Deus com ele (Abraão)”.
Mas temos também o assunto da conversa deles – era a Sua morte – um tema digno de envolver as hostes glorificadas. Podemos muito bem falar dela em cada dia do Senhor, à luz da ressurreição, visto que os resgatados nos céus falam dela à luz da glória. Pois é esse grande fato ou mistério que será celebrado para sempre, assim como é o grande fato que se provará ser a coluna da eternidade, a coluna da criação de Deus.
E, novamente, eles nos farão aprender uma questão muito importante relacionada a este assunto: era uma morte que deveria ser consumada – uma palavra que sugere o caráter pleno, consumado e aperfeiçoado da maneira como aquele grande mistério, a morte do Cordeiro de Deus em Jerusalém, deveria ser conduzido. Toda a devida solenidade deveria marcá-la, para que nada ficasse sem efeito, sem ser produzido ou incerto, como foi aconselhado a fazer.
E que conforto para nós, pecadores! O sacrifício do Cordeiro de Deus era o precioso segredo eterno que nos daria a bendita paz eterna; e temos que aprender que tudo o que foi confiado ao Cordeiro fazer, Ele o fez – os conselhos, o trono, os pesos e medidas do santuário da salvação, tudo foi satisfeito até o último jota e til.
Gostaria de meditar com um pouco mais de cuidado sobre esta consumação da morte do Cordeiro de Deus.
Ao lermos Levítico 16, podemos ficar impressionados com o cuidado, a ordem e a regularidade exata e perfeita com que o sacerdote realizava os trabalhos do dia da expiação. Sem pressa, mas tudo com exatidão bem ordenada e definida, do princípio ao fim.
Ele deveria tomar as vítimas designadas, fossem bois ou bodes. Então, deveria oferecê-las. Então, deveria matá-las, como no devido momento e ordem. Ele então deveria preparar a nuvem de incenso, que deveria acompanhá-lo e revesti-lo, quando entrasse no santuário com o sangue. E (envolto com esta nuvem, estando sobre ele seu simples e santo traje de linho, não suas vestes sacerdotais de glória e ornamento), tendo entrado no Santo dos santos, ele asperge o sangue sobre e diante do propiciatório; em testemunho de que Deus, no trono da justiça, havia aceitado o sacrifício. Ele então sai e usa o mesmo sangue (o sangue que havia sido assim credenciado e sancionado no trono) para a reconciliação dos lugares exteriores e das coisas exteriores – nenhum homem, exceto ele mesmo, sendo permitido no Santo dos santos enquanto ele estava assim, em toda essa solenidade, realizando os assuntos deste dia misterioso.
E tendo assim reconciliado os lugares e coisas exteriores, ele coloca as iniquidades do povo sobre a cabeça de um bode, chamado bode expiatório, e o envia para uma terra onde essas iniquidades nunca mais poderiam ser lembradas.
Então, vestido com suas vestes sacerdotais de glória e ornamento, ele oferece um holocausto por si mesmo e outro pelo povo; um testemunho de que toda essa grande e graciosa obra resultou na adoração e louvor que lhe foram prestados ao Senhor pela congregação do Senhor, resgatada e comprada com sangue. E então, ele coloca a gordura da oferta pelo pecado sobre o altar, em sinal de que o Deus bendito tinha a porção mais rica da festa, o regozijo mais profundo neste sacrifício e expiação, reservados para Si mesmo – à maneira, posso dizer, do Pai na parábola do filho pródigo.[16]
[16]  O evangelho é chamado de “o evangelho da glória de Deus bem-aventurado (ou feliz)“ em 1 Timóteo 1:11. Isto está de acordo com esta ordenança, “a gordura sobre o altar”. ↑
As ofertas pelo pecado, tanto o novilho quanto o bode, eram então totalmente consumidas “fora do arraial” e o homem apto que havia levado o bode expiatório e o outro que agora havia consumido as ofertas pelo pecado se purificavam cuidadosamente e então tomavam seus lugares no arraial novamente.
Tal era o tema deste grande dia em Israel, o dia da expiação, o décimo dia do sétimo mês. Não pretendo interpretá-lo aqui; apenas pretendo apresentá-lo, de modo a mostrar a maneira cuidadosa e deliberada como foi realizado, a maneira bem definida e bem ordenada como esta grande solenidade foi vivida e celebrada em todas as suas etapas, e ao longo de todo o seu desenrolar, do princípio ao fim.
Ora, isso está associado à verdadeira grande expiação realizada na hora da cruz. Com que calma, santa, comedida e ponderada prudência a morte do Senhor Jesus foi consumada! Certamente Moisés e Elias poderiam ter falado com Ele sobre Sua “morte”, que Ele deveria “cumprir” em Jerusalém. Ao longo de toda a Sua vida ministerial, Ele esteve exposto à inimizade do mundo. Não, na verdade desde o Seu próprio nascimento foi assim. E em todos os momentos, o homem parecia tê-Lo à sua mercê. Quanto às cenas pelas quais Ele passou e que expressavam Suas condições, não havia guarda, nem Maanaim ao Seu redor, nem hostes angelicais subindo e descendo para Sua segurança ou provisão. Nem Ele deixaria Sua voz ser ouvida nas ruas, recusando-Se a formar um grupo para Si mesmo, enfrentando conspiração por conspiração, quando poderia tê-lo feito. E, no entanto, ninguém pôde pôr as mãos n’Ele até que Sua hora chegasse. Assim como Ele nasceu na plenitude do tempo, também na plenitude do tempo, mas não antes disso, Ele deve morrer. Mas quando esse tempo chega, tudo se cumpre em calma, santidade, moderação e ponderada prudência – como podemos ver desde a hora da última ceia até a própria morte.
Na ceia, como Vítima, Ele Se amarrou a Si mesmo às pontas ou aos chifres do altar. No Getsêmani, imediatamente depois, Ele renova essa entrega de Si mesmo ao Pai. Quando os soldados vêm para prendê-Lo, não podem tocá-Lo até que Ele queira. Mas, no devido tempo, Ele Se coloca a Si mesmo, como um cativo voluntário, em suas mãos. Ele passa do beijo traidor de um dos Seus para as mãos dos Judeus, e destes para as mãos dos gentios – porque tais coisas haviam sido profetizadas a Seu respeito. Cada jota e til da Escritura se cumpre, até mesmo as Suas palavras: “Tenho sede”. Toda a Sua dor predita, em todas as suas múltiplas formas de resistência e insulto, se concretizou; até mesmo as próprias vestes com as quais Ele sofreu e a companhia que estava com Ele na cruz. Seus discípulos O abandonam, as ovelhas do rebanho se dispersam, pois assim haviam escrito os profetas. E então, quando tudo terminou, e a hora pascal havia chegado plenamente, Ele entrou nas três horas de trevas sob a esmagadora mão de Deus como Seu Cordeiro para o sacrifício.
A morte é, portanto, maravilhosa, na própria forma e caráter de sua realização, pois está além de todo pensamento, maravilhosa em suas glórias morais e em suas virtudes salvadoras e purificadoras[17].
[17]  A mesma ordem deliberada marca Seu sepultamento e ressurreição posteriores. Não há pressa, segundo o costume humano, como se o homem tivesse a cena em suas mãos, mas tudo está na calma e plena força de Deus, segundo os conselhos e profecias. O dia da ressurreição tinha que chegar plenamente, assim como o do nascimento e da morte. ↑
Mas, em contraste com tudo isso, consideremos por mais um momento a morte do Batista, que precedeu a morte do Senhor Jesus, e a de Estêvão, que a seguiu. Que diferença! E, no entanto, não é de se admirar – tudo é facilmente explicado.
Não havia valor algum no trono de Deus, nem lugar nos conselhos de Deus, para a morte de João ou de Estêvão. Elas eram preciosas aos olhos de Deus, podemos assegurar-nos – mas não eram importantes, falo novamente, nem para o trono nem para os conselhos de Deus. Nem Sua justiça nem Sua graça as exigiam. O segredo e a pressa podem, portanto, dar-lhes seu caráter e sua história. Nem é necessário que o material delas, as circunstâncias que as acompanham, lhes confiram qualquer dignidade. Nenhuma delas foi uma morte “consumada”, como Moisés e Elias falam da de Jesus.
João Batista foi vítima da paixão desenfreada de uma mulher; Estêvão foi um mártir nas mãos do delírio súbito e inflamado de uma turba cega e religiosa. Esta foi a história dessas mortes. E como elas destacam aquela que temos considerado, e que se situava entre elas! Não que elas não fossem, como eu já disse, preciosas para Deus. Na verdade, eram profundamente preciosas (Sl 116:15). Mas elas não foram tomadas em Suas mãos, segundo os conselhos eternos e segundo as profecias que as haviam precedido desde o princípio, como foi a d’Ele. As paixões do homem eliminaram João e Estêvão. Fizeram com eles “tudo o que quiseram”, eu poderia dizer. Mas os conselhos e o trono de Deus, Sua justiça e Sua graça, as gloriosas revelações de Si mesmo, toda a história da criação em seu propósito e em seus resultados, são responsáveis pela morte de Jesus e têm seu interesse nela.
O pecador convicto precisa se familiarizar com isso, e nisso o pecador crente lê seu título. Que Objeto para o sustento da eternidade, e para o gozo e celebração da eternidade!
