Origem: Revista O Cristão – Alimento Espiritual
Este Pão Tão Vil
Tem sido notado com frequência que os cânticos de louvores que irromperam do Israel redimido nas margens do Mar Vermelho mal haviam cessado, e eles já haviam começado a murmurar contra Moisés, dizendo: “Que havemos de beber?” Embora tivessem sido escravos sob o jugo de ferro do faraó, não estavam preparados para as dificuldades do deserto e, como consequência, o coração deles se encheu de rebelião e os lábios com murmúrios.
Havia três coisas que compunham a amargura da vida diária deles, todas elas são muito instrutivas para nós. Primeiro, não havia “nem pão nem água” (Nm 21:5); segundo, se enfastiaram – se cansaram – do pão que Deus lhes havia providenciado, dizendo: “Mas agora a nossa alma se seca; coisa nenhuma há senão este maná diante dos nossos olhos” (Nm 11:6); terceiro, eles ansiavam pela comida do Egito, “dos peixes… e dos pepinos, e dos melões, e dos porros, e das cebolas, e dos alhos” (Nm 11:5; Êx 16:3).
Essas coisas juntas se tornaram tão insuportáveis que, repetidas vezes, eles disseram que prefeririam permanecer no Egito. “Ora, tudo isso lhes sobreveio como figuras [exemplos], e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos” (1 Co 10:11).
Uma terra seca e sedenta
A primeira coisa que os incomodou foi que não encontraram pão nem água no deserto. Como o salmista o expressa, eles descobriram que era “uma terra seca e cansada, onde não há água” (Sl 63:1). Tirados no Egito – figura do mundo natural, do homem em sua condição natural – eles haviam perdido seu alimento habitual. Do mesmo modo, o deserto estava destituído de todas as fontes de onde até então se haviam suprido, bem como daquelas das quais precisavam agora para tirar sua vida e sustento. Eles haviam perdido a vida antiga para sempre (em figura) no Mar Vermelho, a vida que o Egito os alimentava e nutria. Eles agora possuíam uma nova vida, cujas fontes não foram encontradas na cena pela qual estavam passando.
É assim com o crente agora. Para a nova vida que ele possui em um Cristo ressuscitado, não há pão nem água no deserto. Antes que ele fosse recebido pela graça de Deus, todas as fontes de sua vida estavam no mundo. Agora o mundo se tornou um deserto para ele, e olhando-o, ele precisa aprender que não pode oferecer nada para estimulá-lo ou revigorar a sua senda de peregrino. Ele não é do mundo, assim como Cristo não era do mundo. Como morto com Cristo e ressuscitado com Ele, como poderia encontrar no mundo a sua comida adequada ou matar sua sede pelas correntes poluídas?
Essas verdades são tão familiares quanto as palavras do cotidiano, mas precisamos desafiar nosso coração continuamente quanto à sua aceitação prática. Será que lembramos que, além das necessidades simples de nosso corpo, a cena na qual somos estrangeiros não contém nada para nós – nada para ajudar ou revigorar – mas, por outro lado, tudo calculado para arruinar e amortecer a vida que temos em Cristo Jesus?
Nutrição de cima
É da maior importância, especialmente para os jovens crentes cujos pés acabaram de entrar nas areias do deserto, ter isso continuamente diante da mente, que não há pão ou água para nossa alma no deserto, pois nós pertencemos a outra cena. O próprio Cristo, à direita de Deus, é a nossa vida (Cl 3:3), e é somente a partir daí que podemos obter nosso alimento e força. Todas as nossas fontes estão em Cristo ressuscitado e glorificado. Somente com Ele está a fonte da vida. O crente que anda pelo mundo no poder dessa verdade, esperando nada além de armadilhas e perigos, será mantido em independência dele. Ele terá consciência de uma vida que não tem afinidades com nada a seu redor, e exibirá uma vida alimentada do alto, que, brilhando como uma luz nas trevas morais desta cena, será um testemunho por Cristo, um testemunho de graça e também, infelizmente, do julgamento vindouro.
Enfadados do maná
A segunda coisa que afligiu esses peregrinos foi que eles se cansaram da comida que Deus lhes havia providenciado. Foi em resposta a seus murmúrios (pois ainda estavam sob graça, Sinai não havia sido alcançado) que Ele, em Sua ternura e misericórdia, lhes deu o maná. “E toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão no deserto. E os filhos de Israel disseram-lhes: Quem dera que nós morrêssemos por mão do SENHOR na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne, quando comíamos pão até fartar! Porque nos tendes tirado para este deserto, para matardes de fome a toda esta multidão” (Êx 16:2-3). Tal conduta merecia julgamento, mas o Senhor agiu em graça, e, portanto, disse a Moisés: “Eis que vos farei chover pão dos céus”. Ele fez isso por quarenta anos, até que eles passaram pelo Jordão (Js 5). O maná era o alimento de Israel, alimento adequado para o deserto, e foi disso que eles se cansaram, até que ousaram dizer: “a nossa alma tem fastio deste pão tão vil” (Nm 21:5). Ora, o maná é uma figura de Cristo, de um Cristo humilhado, de tudo o que Cristo era em Sua ternura, graça e compaixão ao passar por essa cena. Por isso, fala de tudo que Ele é, sendo adequado para nós nas circunstâncias do deserto enquanto somos estrangeiros e peregrinos. Cristo, nesse caráter, é nosso único alimento (veja João 6), o único alimento que pode nos sustentar e fortalecer – Cristo em todos os aspectos nos quais Ele nos é apresentado como o Maná. Precisamos de tudo o que Ele é tal como é dado, mas não precisamos de nada fora d’Ele – nada além d’Ele. Como Ele mesmo é a nossa vida, somente Ele pode sustentá-la.
Como então é possível que o crente se canse de Cristo? Temos duas naturezas, a velha e a nova, e estas se opõem uma à outra. Se não estamos andando no Espírito (veja Gl 5), a carne fará valer os seus desejos, e a carne nunca ama a Cristo; a inclinação da carne, de fato, é inimizade contra Deus (Rm 8). É a carne, portanto, que se cansa de Cristo, que, desejando seu próprio alimento que lhe é adequado, gera em nós uma aversão ao maná celestial. Mas a carne é sutil e, ao agir assim no crente, geralmente gosta de esconder seu verdadeiro caráter. Mas carne é carne, quaisquer que sejam as formas em que é expressa, e assim como Satanás sabe como se transformar em anjo de luz, a carne sabe como assumir as formas mais piedosas. É necessário, portanto, estar em guarda, para que também não caiamos neste pecado grave de desprezar “este pão tão vil”.
Indicadores de estarmos enfadados
Sinais dessa tendência geralmente aparecem onde menos esperamos. Por exemplo:
- Se for preferido um ministério que apela ao intelecto em vez de ao coração e à consciência;
- Se for bem-vinda a exposição de princípios interessantes, nos quais até o homem natural pode se deleitar, em vez de uma simples apresentação do próprio Cristo;
- Se ficarmos inquietos sob a sã doutrina, e segundo nossos próprios desejos, amontoarmos para nós, mestres que têm comichões nos ouvidos;
- Se nos voltarmos para livros que tratam de problemas espirituais ou proféticos (embora estes possam ter seu lugar), e não para aqueles que revelam as excelências e as graças de Cristo;
- Se buscarmos comunhão com aqueles que podem nos divertir naturalmente ou socialmente, em vez daqueles com quem poderíamos ter comunhão espiritual, aqueles com quem somente Cristo seria o vínculo;
- Se estivermos perdendo nosso apetite pela Escritura e, pode-se acrescentar, se estamos perdendo o senso de nosso caráter de peregrino e gradualmente nos estabelecendo no prazer das coisas ao redor.
Então há motivos para temer que estamos ficando enfadados deste “pão tão vil”.
Vamos então nos perguntar com ousadia se estamos satisfeitos com Cristo, satisfeitos ao máximo n’Ele como sendo nossa comida diária. Façamos a nós mesmos essa pergunta em nossos lares, em nossa vida cotidiana e social, em nossos momentos de lazer, quando ouvimos o ministério, quando reunidos na assembleia dos santos. Uma coisa é cantar: “Jesus, de Ti, nunca nos cansaremos”, e outra é conhecer esta verdade de maneira prática. Que o Senhor nos guarde do grave pecado de perder nosso apetite por Ele.
As panelas de carne do Egito
Combinado com isso, no caso dos israelitas, havia um intenso desejo pelas coisas do Egito. Quantas vezes eles se lembraram com saudade das panelas de carne, dos peixes, dos alho-porros, dos melões e dos pepinos do Egito? As duas coisas sempre andam juntas. Perder o apetite por Cristo às vezes é a consequência da indulgência e, às vezes, a causa do desejo das gratificações egípcias. Mas vamos perguntar claramente o que isso significa. Desejar a comida do Egito, então, é a mesma coisa para o crente do que buscar as mesmas gratificações, diversões e fontes de gozo que o homem do mundo busca. O homem natural tem aquele alimento no qual se esforça para encontrar sua vida, assim como o Cristão tem o seu. Se o crente dá as costas para Cristo em direção daquilo em que o mundo se alimenta, ele está exatamente no mesmo caso que os israelitas. Assim, se o Cristão olha com desejo de coração para as diversões e gozos sociais do mundo; se ele se deleita com os assuntos que orgulham o mundo – pintura, escultura, arquitetura, grandeza nacional; em seus líderes, na ciência, filosofia, literatura e arte; se ele está se interessando por política e conflitos partidários; se ele alimenta sua mente com os livros do mundo; se ele corteja a sociedade mundana, as modas, distinções, luxos e maneiras do mundo; se ele cultiva os hábitos e maneiras do mundo; se, em resumo, ele está se voltando para qualquer uma das fontes da Terra, qualquer uma de suas fontes de prazer, orgulho ou exaltação, ele está, de fato, desejando as panelas de carne do Egito.
O que temos, então, a dizer sobre essas coisas? Será que estamos nessa situação? Não há espetáculo mais triste do que o apresentado por alguns que sabiam o que era se alimentar de Cristo e encontrar tudo n’Ele, mas que agora estão voltando às mesmas coisas que alegremente recusaram por Sua causa. Eles correram bem, mas foram impedidos pela concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida. Tudo o que não é Cristo e de Cristo é o Egito e do Egito. Precisamos, portanto, ser tão atraídos, possuídos e absorvidos por Cristo, a ponto de ter todo desejo satisfeito somente n’Ele. Este é o antídoto eficaz para todo fascínio e ilusão que o Egito possa apresentar.
