Origem: Revista O Cristão – Arrependimento e Restauração

Arrependimento: O que é isso?

Permita-me apresentar a você meus pensamentos sobre o arrependimento, como acredito que a Escritura nos apresenta. O caráter do evangelho agora comumente pregado exige uma declaração escriturística distinta do que ele é.

O que o arrependimento não é 

Arrependimento não é conversão. Este não é de forma alguma o significado da palavra. A conversão é voltarmos nosso coração e nossa vontade para Deus por meio da graça. O arrependimento não é fé. Fé, em sua verdadeira força, é a percepção divinamente concedida do que é visto por meio da revelação da fé à alma pelo testemunho no poder do Espírito Santo.

O arrependimento é literalmente um pensamento posterior ou alterado, um julgamento formado pela mente em reflexão, após ter tido um pensamento anterior. Habitualmente, em seu uso nas Escrituras, é o julgamento que eu formo à vista de Deus da minha própria conduta e sentimentos anteriores, em consequência da recepção do testemunho de Deus, em contraste com meu curso natural anterior de sentimentos. Claro, isso pode ser mais ou menos profundo. O arrependimento não é a tristeza em si, mas isso produz o arrependimento, se for tristeza divina. Nem é arrependimento, o lastimar ou remorso – estas são palavras usadas às vezes com o significado iguais, mas não na Escritura. Judas teve remorso e enforcou-se – não teve arrependimento. A tristeza segundo Deus opera o arrependimento para nunca se lamentar. O arrependimento é o julgamento que formamos, sob o efeito do testemunho de Deus, de tudo em nós mesmos ao qual esse testemunho se aplica. Por isso, o arrependimento é sempre fundado na fé: Eu não digo a fé no evangelho. Essa pode ser sua fonte, mas podemos nos arrepender por meio do testemunho de Deus para a alma e depois receber as boas novas. A conversão em si pode seguir o arrependimento, isto é, a conversão como a completa e deliberada virada do coração em direção a Deus. “Arrependei-vos”, diz Pedro, “e convertei-vos” (At 3:19). A conversão é voltarmos nossa vontade para Deus. O arrependimento é o pensamento ou julgamento mudado que temos das coisas, trazendo consigo muitas vezes, quando se refere ao “eu” próprio, a sensação de uma mudança de sentimento.

Quando o arrependimento não é necessário 

A força da palavra é claramente vista em contraste: “Haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15:7). Onde não há nada para julgar, o arrependimento não tem lugar; onde o pecado existe, esse julgamento do estado do indivíduo é requerido. Então o Senhor veio chamar os pecadores ao arrependimento. Novamente, o Senhor censura as cidades onde a maioria de Seus milagres foi feita, porque elas não se arrependeram. Tiro e Sidom teriam se arrependido se os tivessem visto. Isso não é uma mudança prática e julgamento próprio sobre o testemunho diante deles? Nós vemos por muitas dessas passagens que se refere ao seu estado anterior de pecado. Então Atos 8:22: “Arrepende-te dessa tua iniquidade”. Em 2 Coríntios 7:9-10 eles se entristeceram para o arrependimento; Tristeza piedosa operou o arrependimento. Aqui eles eram convertidos há muito tempo e creram há muito tempo. Mas eles estavam em mau estado e haviam se arrependido. Como isso se mostrou, pode ser visto no versículo 11: “Porque quanto cuidado não produziu isso mesmo em vós que, segundo Deus, fostes contristados! Que apologia, que indignação, que temor, que saudades, que zelo, que vingança! Em tudo mostrastes estar puros neste negócio”. Agora, eu admito que são as provas e os frutos do arrependimento, como isso se mostrou. Ainda assim, eles nos ensinam o que é.

Arrependimento e julgamento próprio 

Permanece um texto que dá caráter e força total ao arrependimento: “O arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (At 20:21 – ARA). Ele olhou, não apenas que os crimes e a maldade deveriam ser julgados, mas que um homem deveria julgar todo o seu estado à luz da própria presença de Deus, e em referência ao Seu caráter divino e autoridade sobre ele, e no pensamento da Sua bondade. Este é o verdadeiro arrependimento: o homem julgou, e julgando a si mesmo na presença de Deus, a Quem ele pertence e a cuja natureza ele deve se referir com misericórdia diante d’Ele. A fé em nosso Senhor Jesus Cristo encontra isso, porque ali Deus julgou o pecado de acordo com Sua própria natureza e autoridade, e Seu amor é perfeito, e nós estamos reconciliados a Deus de acordo com essa natureza e justa reivindicação. Mas isso requer uma palavra de explicação. Não é que o arrependimento ocorre primeiro por si mesmo e então, de maneira absoluta, venha a fé, mas que o arrependimento – o julgamento do que somos diante de Deus e aos olhos de Deus – é um grande efeito da verdade; refere-se a Deus como o Deus com Quem temos que tratar; enquanto a fé em nosso Senhor Jesus Cristo é a fé naquela intervenção soberana de Deus, na qual, em graça, Ele proveu para o nosso estado no dom de Seu Filho. O arrependimento não é uma mudança de opinião quanto a Deus, embora isso possa produzi-lo, mas o julgamento próprio diante d’Ele, a alma referindo-se Àquele que está sobre nós, com Quem temos que tratar. Não é que o arrependimento precede a fé. Veremos que não é assim, mas é primeiro o coração que retorna à luz divina e depois a fé na intervenção abençoada de Deus que se ajusta ao estado em que se encontra.

Arrependimento e bondade 

O arrependimento prático, então, é a estimativa que um homem forma do pecado, de seus próprios caminhos como um pecador, em reflexão, por meio da luz de Deus penetrando em sua alma, com algum senso de bondade n’Ele, e estabelecendo ali autoridade divina. Isto pode ser por meio de advertências divinas, como no caso de Jonas, ou o lamento de João Batista anunciando que o machado está colocado na raiz das árvores. É sempre misericordioso. Ele dá arrependimento a Israel, concede arrependimento para a vida: Sua bondade nos leva a isso. Isto é, ao invés de visitar os pecados de acordo com o merecimento do homem, Ele abre a porta para retornar à luz e graça por intermédio da graça. Assim, quando a graça é plenamente anunciada, quando a verdade existe, o arrependimento está no fundamento da perfeita revelação de Deus em graça, em Cristo. O arrependimento devia ser pregado em Seu nome e também a remissão de pecados. Ao chegarmos a Deus sempre é o primeiro efeito na alma quando isso é real, e a volta da nossa vontade a Deus e a fé na redenção e no perdão que o evangelho anuncia vem depois. Por isso, é dito: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos”. “Arrependei-vos e crede no evangelho”. Isso nos mostra como a fé é necessária e a única fonte de arrependimento. É pelo testemunho da Palavra que é feito. Seja profetas, ou Jonas, ou João, ou o próprio Senhor, ou mesmo os apóstolos, que ensinavam que os homens deveriam se arrepender e se voltar para Deus, foram todos feitos por um testemunho de Deus, e um testemunho crido. Agora, em nosso tempo, esse testemunho é o testemunho do próprio Cristo. O arrependimento, bem como a remissão dos pecados, deveriam ser pregados em Seu nome. É pela revelação de Deus, seja no julgamento ou na graça. Em qualquer caso, é por meio da graça trabalhando no coração que o arrependimento é realizado.

Arrependimento e graça 

Quando o filho pródigo voltou a si, ele se arrependeu; ele se converteu quando ele diz: “Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai”, o evangelho é realizado quando ele encontra seu Pai e obtém a melhor roupa. Mas aquele que vem a Deus deve crer que Ele existe, e que Ele é galardoador dos que O buscam diligentemente, e sempre há no verdadeiro arrependimento alguma percepção de bondade. “Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome!” Não haveria retorno se não houvesse esperança – pode ser muito vago – mas ainda assim uma esperança de ser recebido e da bondade a ser confiada. Até mesmo os ninivitas dizem: “Quem sabe se Se voltará Deus, e Se arrependerá, e Se apartará do furor da Sua ira, de sorte que não pereçamos?” No evangelho, a plena graça de Deus é tornada a própria base de um chamado ao arrependimento, ainda em vista do julgamento. Agora Ele chama todos os homens em todos os lugares para se arrependerem, visto que Ele tem determinado um dia em que com justiça Ele há de julgar o mundo com justiça por meio d’Aquele Varão que destinou. A bondade leva a isto, a porta para fugir está aberta, mas fugir da ira vindoura, fugir em direção a Deus, que assegura perdão vindo por meio da perfeita obra de Cristo.

A pregação que promove o arrependimento 

Na prática, a verdadeira obra do evangelho no coração é trazer em primeiro lugar o arrependimento. Como vimos, advertências como as de Jonas podem levar os homens a se arrependerem, ou o ministério de João Batista. Mas o evangelho mais completo faz o mesmo. Ele traz para a luz, embora fale de amor, pois Deus é ambos, e esse amor nos faz julgar a nós mesmos quando Deus é realmente revelado. E não pode ser de outro modo. Se os homens já foram exercitados, a pregação de uma redenção simples e clara irá, por meio da graça, dar paz. Ela responde à necessidade da alma, que, tendo já olhado para si mesma, agora está habilitada a olhar para Deus por meio de Cristo, aprende que Deus é por ela e aprende justiça divina. Se um homem não foi previamente exercitado, onde quer que exista uma verdadeira obra, o efeito da mais plena graça é alcançar a consciência, levar ao arrependimento – não para dar a paz como a primeira coisa, mas levar a alma para essa luz, na qual descobre o estado que faz com que ela precise de uma pacificação para si. Ela viveu sem Deus, talvez afrontando-O abertamente diante de Sua face, e não meramente descobre que Ele é santo e bom, isto é, muda sua mente quanto a Deus e aprende a amá-Lo, mas lança seu olhar em si mesmo, em seu caminhos passados, tem uma reflexão posterior em que se julga na presença de Deus, assim conhecido, julgando o pecado pela grande obra que o afastou. Ela se arrepende. A alma sente que tem que tratar com Deus de forma responsável, fracassou, foi má, corrupta, sem Deus, é humilhada, tem horror a si mesma e ao seu estado, pode temer, certamente irá esperar, e eventualmente, se simples, muito em breve encontrar Paz. Mas ela dirá: “Mas agora Te veem os meus olhos. Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza”. Se não houver isto – embora os graus disso possam ser variados, como a forma que assume na alma – não há uma obra verdadeiramente realizada. Se os avivamentos (assim chamados) forem examinados, será descoberto que as almas previamente exercitadas ficaram felizes se um evangelho claro tiver sido pregado. Aqueles que não têm e se apressam para ter paz são achados, afinal, não tendo raiz alguma. E se houver uma obra superficial e uma paz precipitada, a obra tem que ser feita depois para alcançar as fontes e a fundação da consciência, e muitas vezes por meio de muita tristeza.

Talvez não possamos pregar o evangelho claro ou completo o suficiente; a graça abundando onde o pecado abundou, a graça reinando por meio da justiça, mas o efeito disto quando totalmente recebido, o efeito que devemos procurar nas almas, é o arrependimento – quero dizer o primeiro efeito presente. Isso será um efeito que se aprofundará durante todo o nosso curso.

Extraído de Collected Writings, vol. 10: 221-226

J. N. Darby

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