Origem: Revista O Cristão – Misticismo

A Essência do Misticismo

Desde a queda do homem, sua mente pecaminosa começou a permitir voos de fantasia em seu próprio coração e mente, permitindo que a imaginação tomasse o lugar da revelação divina. Paulo descreve isso bem quando escreve: “elesem seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1:20-22). Baseado em sua própria imaginação, intuição ou experiência subjetiva similar, o homem pensa que chegou ao conhecimento da realidade final. É isso que constitui o misticismo no homem natural. O homem, sendo religioso por sua própria natureza, apela então aos seus sentimentos como uma fonte de conhecimento em coisas divinas.

O perigo do crente 

Embora o crente talvez não chegue a tais extremos, no fundo essa mesma tendência existe nele. O misticismo pode arruinar o gozo que o crente tem em Cristo, assim como pode impedir o incrédulo de vir para Cristo. Embora suas sementes estivessem presentes desde o início do Cristianismo, o misticismo começou a emergir de forma mais aberta no século IV d.C. Alarmados com o mundanismo que estava entrando na Igreja, alguns começaram a buscar uma vida mais elevada e um andar mais piedoso. Certamente esse era um desejo correto, mas, em vez de olhar para Cristo, os homens começaram a olhar para si mesmos, e o resultado foi o monasticismo. Tudo isso ministrava ao orgulho humano, em vez de exaltar a Cristo, porque no fundo era ocupação consigo mesmo.

Devemos lembrar, no entanto, que estamos vivendo na dispensação em que o Espírito de Deus está aqui na Terra, habitando em cada crente verdadeiro e habitando coletivamente no meio dos crentes como a casa de Deus. Essa preciosa verdade nos leva além de uma mera adesão fria à verdade e nos dá aquela comunhão pessoal e coletiva com o próprio Deus. Verdadeiramente “a nossa comunhão é com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo” (1 Jo 1:3). No Velho Testamento, a Palavra de Deus foi escrita em “tábuas de pedra”, mas no Novo Testamento Paulo fala dos Coríntios como uma epístola escrita em “tábuas de carne do coração” (2 Co 3:3). É pelo Espírito de Deus que temos nosso gozo em Cristo. Por esse mesmo Espírito, entendemos a Palavra de Deus, entramos em toda a verdade, nos envolvemos em adoração e serviço ao Senhor e recebemos direção em nosso caminho.

Entendendo a verdade 

No entendimento das coisas divinas nesta dispensação, como também na adoração, no ministério e na direção em nosso caminho, podemos ver que todo crente deve ter cuidado para não cair no misticismo. A verdade revelada no Novo Testamento só pode ser entendida com o Espírito de Deus conduzindo, e a imaginação humana pode facilmente ser misturada a ela. A doutrina pode ser distorcida, e um pensamento errôneo ser alimentado, talvez sem que o indivíduo perceba. Uma interpretação das Escrituras pode ser parcialmente do Espírito de Deus, mas ter os pensamentos do homem misturados a ela. Na direção para o nosso caminho, isso também pode ser verdade. Paulo foi impedido de entrar em Bitínia (veja Atos 16:7), e alguns bem poderiam perguntar por qual parâmetro ele poderia ter certeza de que era o Espírito de Deus conduzindo, e não mera imaginação. Certamente nesta dispensação existe a condução direta do Espírito de Deus, mesmo que possa não haver nenhuma Escritura definida envolvida. Como então diferenciamos isso do misticismo?

Certamente, é necessário equilíbrio adequado, já que há perigo de ambos os lados. Existe um claro caminho da verdade entre os extremos do misticismo e do literalismo rígido. Como alguém comentou: “A Palavra sem o Espírito cria um racionalista, enquanto o Espírito sem a Palavra cria um fanático.” No primeiro caso, o Espírito de Deus é excluído, e todo o caráter desta dispensação é negado. Nosso gozo em Cristo é perdido, e a obediência é reduzida a uma fria formalidade sem poder. No segundo, no entanto, a imaginação do homem vai além e até mesmo eclipsa a revelação divina, de modo que a Palavra de Deus é desprezada, e o homem se volta para si mesmo. Nesse caso, Satanás usa a mente do homem de maneira sutil, e, mesmo nas coisas divinas, o “eu” se torna o objeto, em vez de Cristo.

O que pode acontecer 

Quando o misticismo toma conta, seus efeitos são amplos. Pode começar com o autoexame, o que às vezes é uma coisa boa. No deserto, Israel teve que aprender sobre si próprio e depois aprender o que Deus era. No entanto, a ocupação consigo mesmo, talvez até com motivos corretos, nunca nos trará felicidade e nunca nos atrairá a Cristo. Em vez disso, ao nos ocuparmos com nós mesmos, ou seremos sufocados pelo mal da nossa carne ou estaremos inchados com o que consideramos ser nossa própria bondade. Este foi o pecado de Jó – ele se orgulhava de sua própria bondade e não percebeu que qualquer bem em sua vida era resultado de uma obra da graça em sua alma. O misticismo, como já mencionamos, volta o homem para si próprio e, no final, resulta em incredulidade quanto ao que Deus disse. A confusão que se segue costuma dar origem a pensamentos desgovernados e fantasiosos, supostamente baseados na Palavra de Deus, mas frequentemente indo além dela. Como veremos em outro artigo desta edição, no fundo é a negação da total ruína do homem na carne.

Detectando o misticismo 

Como, então, distinguimos entre misticismo e o que é apropriado para os santos nesta dispensação – a condução do Espírito? Sugerimos as seguintes coisas que a Palavra de Deus traz diante de nós.

Antes de tudo, a Escritura nunca enfatiza o subjetivo como base ou guia para nossos pensamentos e afeições. Antes, Cristo ressuscitado em glória nos é apresentado, e o Espírito de Deus em nós Se deleita em trazê-Lo diante de nós. O subjetivo é real e muito valioso, mas é sempre o resultado do objetivo – de termos Cristo diante de nós, nunca nós mesmos. O Espírito nunca nos ocupa com Sua obra em nós; antes, Ele nos ocupa com Cristo. O místico, por outro lado, é muito envolvido com a obra nele. Ocupação consigo mesmo é um sinal claro de que não é o Espírito de Deus em ação, a menos que haja alguma falha que Ele esteja trazendo diante de nós. Nesse caso, o Espírito precisa tratar a falha conosco, mas apenas para que possamos julgá-la, nos acertarmos com Deus e então prosseguir.

Segundo, o Espírito sempre guia de acordo com a Palavra, nunca de modo contrário a ela. Embora o Espírito possa nos guiar sem uma Escritura definida, Ele nunca guia de modo contrário à Palavra, pois foi Ele Quem inspirou a mesma Palavra. Ao estarmos familiarizados com a Palavra de Deus, descobrimos que o Espírito de Deus Se deleita em abri-la para nós de acordo com a mente de Deus, e dessa maneira muitas perguntas são respondidas por meio de um versículo, um incidente paralelo ou outra aplicação das Escrituras. Uma profunda reverência e sujeição à autoridade da Escritura distingue real espiritualidade de misticismo.

Terceiro, quando Cristo está diante de nós como um Objeto, nossa consciência está em exercício diretamente com Deus quanto às reivindicações d’Ele sobre nós. A consciência do místico também pode estar em exercício, mas, por ele estar procurando o bem em si mesmo, em vez de olhar para Cristo, tudo fica distorcido, e ele falha em ver as coisas em sua verdadeira luz. O legalismo entra, e muitas vezes uma ênfase em coisas exteriores está presente, quando há ausência de realidade interior. Em vez de a consciência estar em relação direta com Deus, os homens e sua autoridade podem se tornar proeminentes, e assim Deus é excluído. Um verdadeiro desejo de ser como Cristo pode estar presente, mas nunca pode ser realizado, porque o verdadeiro Objeto não está diante dele. É um falso ministério que traz algo entre Deus e a consciência, enquanto o verdadeiro ministério coloca minha consciência diretamente em relação com Deus.

Ocupação com Aquele que abençoa 

Finalmente, devemos lembrar que todo o gozo de nossas bênçãos se baseia no que já possuímos. Nós estamos “mortos para o pecado” (Rm 6:2); somos abençoados “com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Ef 1:3); somos feitos “idôneos para participar da herança dos santos na luz” (Cl 1:12). Aceitamos essas coisas por fé, não pela experiência. Ao tomar, por fé, o lugar onde Deus nos colocou, descobrimos que não estamos ocupados com nós mesmos, mas com Aquele que nos trouxe para esse lugar. Tudo o que vem junto – como gozo no coração, afeição por Cristo e nós não nos conformarmos com este mundo – resulta de desfrutarmos desse lugar, porém essas coisas em si não são o nosso objeto. A experiência pode ser maravilhosa, e Deus quer que seja assim, mas ocupar-se com a experiência jamais irá produzi-la.

Em resumo, vemos que Deus coloca diante de nós o Seu Filho amado como nosso Objeto e que, ao estarmos ocupados com Ele, nos tornamos gradualmente “conformes à imagem de Seu Filho” (Rm 8:29). Mas é Sua obra, Seu poder e Sua glória. No momento em que olhamos para nós mesmos ou nos tornamos ocupados com Sua obra em nós, nós a estragamos. Tomamos a glória d’Ele como nossa e roubamos de Cristo o que Lhe é devido. Somente tendo Cristo como um Objeto fora de nós mesmos é que podemos andar diante de Deus da maneira correta.

W. J. Prost

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