Origem: Revista O Cristão – Opinião versus Verdade
Tolerância e Verdade
Há hoje um grande clamor contra a intolerância e o fanatismo, e um impulso proporcional de tolerância e liberalidade. Diz-se que o progresso na busca do que o mundo chama de verdade é prejudicado por opiniões ou ensinamentos dogmáticos. O que o homem acreditava no passado é bastante inadequado para esta era mais avançada. Dizem-nos que é presunção para qualquer homem expressar convicção em uma opinião estabelecida sobre qualquer questão religiosa ou doutrina. Muitos, de fato, estão perguntando: “O que é a Verdade?” e “Quem nos mostrará algo bom?” Mas poucos esperam por uma resposta.
A tolerância, então, é a ordem dos dias atuais, e os homens podem manter o que quiserem, desde que não interfiram nas opiniões de seus vizinhos e limitem a adequação de suas próprias opiniões a si mesmos. Mas isso nem sempre foi assim, nem sempre será, mas é o clamor do momento.
O que é, então, a tolerância, e por que e o que devemos tolerar? A própria palavra implica um estado de imperfeição. Se todos fossem de uma só mente, não haveria necessidade de tolerância. Se o bem prevalecesse universalmente, não haveria nada a tolerar.
Tolerância no sentido correto
Em certo sentido e grau, a tolerância é correta, pois o próprio Deus tolera – exibe paciência e longanimidade. Sua própria Palavra e a experiência de cada homem ensinam isso. Mas com Deus, a tolerância tem um limite, e deve ser assim, pois embora na graça por um tempo Ele possa suportar “com muita paciência”, Ele nem sempre poderia fazê-lo sem uma negação de Seu caráter. Um Ser que tolerasse eternamente o mal não seria bom, santo ou justo, e um estado em que a tolerância fosse eternamente exigida não seria perfeito. A tolerância, mesmo da parte de Deus, deve, portanto, ser limitada, tanto em sua extensão quanto em sua duração.
Mas há um outro lado da questão. Embora, em paciência e em graça, um ser perfeitamente bom possa, por um tempo e por um objetivo, tolerar o mal, a tolerância exercida por seres que, em si mesmos, não são bons, mas maus, assume outro aspecto muito diferente. Se um ser que é perfeitamente bom tolera o mal, deve ser para um fim bom, ou ele não seria bom, mas se um ser imperfeito exerce tolerância, devemos suspeitar tanto do motivo quanto do fim. Falar de mal tolerando o mal parece contraditório, mas, na verdade, encontramos isso constantemente no mundo, e é o espírito daquilo que as pessoas chamam de “concordar em discordar”.
A tolerância, portanto, por parte de seres falíveis ou imperfeitos, decorre de vários motivos: primeiro, de uma condenação própria tal que torna impossível o julgamento de outros em circunstâncias semelhantemente duvidosas; segundo, da incapacidade de impor seus próprios pontos de vista e opiniões, devido a um equilíbrio de poder naqueles que se opõem a eles; ou terceiro, da falta de certeza e convicção sobre a verdade daquilo que eles sustentam.
Assim, embora o primeiro seja verdadeiro para o homem em seu estado natural (Rm 1:31, 2:1) e o segundo, sem dúvida, esteja implícito em a todas as formas de erro doutrinário, seja infiel ou supersticioso, o terceiro, acreditamos, é o motivo de muito do que é chamado de tolerância religiosa. Os homens são incertos em suas opiniões, eles não têm bases sólidas para a sua crença.
O poder de alguns que alegaram ser infalíveis em tudo o que acreditam está gradualmente diminuindo. Suas suposições não despertam mais medo no coração dos homens, mas sim um sorriso nos seus lábios. Outro espírito e um poder superior estão se desenvolvendo lentamente. A razão do homem está afirmando sua reivindicação, e a caridade e a tolerância de nossos dias são principalmente o fruto da coexistência. Dizemos principalmente, pois não negamos, mas dizemos que há também uma medida de verdadeira tolerância Cristã em exercício, e muitas vezes ela está combinada com motivos menos puros. O mundo ainda experimentará novamente a intolerância de um poder dominador do mal. À medida que a influência da superstição diminui ainda mais e a atual necessidade de tolerância mútua cessa (pois a tolerância sempre diminuirá à medida que o equilíbrio de poder tende cada vez mais em uma direção, e cessará quando tal poder puder se impor), a tirania e o egoísmo do homem não controlado pela religião, seja falsa ou verdadeira, se revelarão no anticristo – o homem do pecado, o iníquo, o perverso, mencionado na Escritura (Dn 8:23, 11:36; 2 Ts 2; Ap 13).
Até agora temos falado do caráter e do espírito da tolerância atualmente comum no mundo, mas também desejamos dizer algumas palavras para a ajuda daqueles que, desejando conhecer e fazer a vontade de Deus, ainda estão em dificuldades quanto ao que permitir e ao que recusar.
Nesse assunto, como em todos os outros em que diga respeito ao professo povo de Deus, não podemos ir a lugar algum para obter instrução, a não ser a Deus e à Sua Palavra. Seus caminhos devem ser o nosso exemplo, Sua Palavra o nosso preceito. Todos admitirão que, se houver alguma revelação de Deus, também deve existir, em conexão com ela, um padrão de retidão e de verdade, se ao menos for apreendida. Mas, embora isso seja admitido de maneira geral, há a maior hesitação por parte dos homens apreenderem esse padrão para si mesmos ou admitir que outros possam tê-lo alcançado. A Cristandade reconhece o Cristianismo como a revelação de Deus, mas na maior parte argumenta como se a obtenção de uma certeza divina da verdade de Deus fosse impossível – como se, de fato, Deus, que deu a revelação, não tivesse pretendido ou fosse incapaz de trazê-la para o coração e entendimento daqueles para quem foi feita. Portanto, o dogmatismo é desaprovado e firmes convicções geralmente são contestadas.
Confiança
Antes que possamos nos aventurar a ser tolerantes ou intolerantes, o primeiro ponto a ser estabelecido é a confiança e o fundamento da alma individual. A menos que saibamos e estejamos convencidos de que temos a verdade, é certamente impossível para nós, com alguma adequação ou poder, exibir intolerância às opiniões dos outros. Se, por exemplo, alguém não conhece para si mesmo a salvação como uma possessão, não pode honestamente ser intolerante com as opiniões defendidas por outros sobre o assunto. Pode-se não concordar com eles, mas é preciso tolerá-los.
Por outro lado, a alma que sabe, pela fé divina, que tem salvação de Deus unicamente com base na morte e ressurreição de Cristo, essa alma tem uma confiança positiva e um padrão nesse ponto, e isso a torna necessariamente intolerante a todas as opiniões que possam ser apresentadas contra ela. “Eu sei em Quem tenho crido” é a linguagem de tal pessoa. Há certas coisas em que a teoria não se sustenta contra a possessão, e essa é uma delas. Opiniões e teorias sobre a salvação podem ser tão claras quanto o dia, mas apenas aquele que tem a coisa em si pode julgar seu valor.
Onde a tolerância é errada
A tolerância ao pecado e à doutrina do mal são condenadas por Deus, como 1 Coríntios 5; 1 Timóteo 5:22; 3 João; e Apocalipse 2:14-16, 3:15-16. As advertências de Cristo às Igrejas são palavras solenes nos dias de hoje, quando os homens toleram toda forma de mal sob o nome comum de Cristianismo e protestam contra o julgamento de ensinamentos que são desonrosos a Cristo e à Sua obra. Como as palavras de Malaquias 2:17 se aplicam a isso: “Enfadais ao SENHOR com vossas palavras; e ainda dizeis: Em que O enfadamos? Nisto, que dizeis: Qualquer que faz o mal passa por bom aos olhos do SENHOR, e desses é que Ele Se agrada”.
Quando o coração e a mente são persuadidos e permeados pela verdade de Deus, não falamos de “minhas opiniões”, e não colocamos, nem devemos colocar nossas opiniões contra as dos outros. Não é que “eu penso uma coisa e você outra, e nunca concordaremos”, mas é que eu creio em Deus e me submeti à Sua Palavra, aceitei e adotei Seus pensamentos, Ele respondeu a cada pergunta do meu coração, e somente Ele pode responder verdadeiramente a qualquer pergunta de qualquer coração. Aquilo que possa ser apresentado contra isso não é apenas contra as opiniões do crente, mas contra a Palavra de Deus em Quem ele creu, e, portanto, falsas doutrinas ou opiniões contrárias à fé de tal pessoa não podem ser toleradas ou admitidas como tendo qualquer peso ou reivindicação. No entanto, ao lidar com essas questões, graça e sabedoria são necessárias, e o crente tem que julgar, e também tem a capacidade de julgar (1 Co 2:11-15) o espírito no qual essas questões possam ser apresentadas. Ele fará diferença entre o que ensina a doutrina maligna e aqueles ensinados e enganados por ela. Embora após a admoestação ele rejeite o primeiro e não tolere nem o que ensina nem a doutrina, mesmo assim ele terá compaixão do último – aquele que é ignorante e enganado e, embora recuse e corrija o erro, de modo algum rejeitará a pessoa. O crente irá “compadecer-se ternamente dos ignorantes e errados”; levantará “as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados”, e fará “veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente, antes, seja sarado”. Em mansidão, também, ele se esforçará para instruir aqueles que se opõem entre eles. Aqui, no entanto, há perigo de falha. Muitas vezes nos falta paciência com aqueles cujo coração é verdadeiramente reto, mas que são inábeis na Palavra da justiça, ou que foram enganados por falsos ensinos. Ou, novamente, ao tolerar a pessoa que é ignorante, vamos longe demais e toleramos, ou parecemos tolerar, suas opiniões e caminhos e, portanto, somos infiéis à pessoa e a Deus e Sua Palavra. “qualquer que profere o nome de Cristo [do Senhor – JND] aparte-se da iniquidade”, e se o crente vir alguém em ignorância, mesmo ligado àquilo que em qualquer grau seja contrário à mente e à verdade de Cristo, ele não deve tocar no mal que ele sabe ser mal por qualquer consideração de amor pelo outro. Por exemplo, alguém que nos é querido pode estar ligado a um falso sistema de doutrina religiosa, que sabemos ser contrário a Deus. Devemos dizer que ele acredita nisso e, portanto, devemos reconhecer seu direito de praticá-lo e ajudá-lo nisso? Certamente não! Não devemos reconhecer ao outro o direito de acreditar e praticar o erro mais do que a nós mesmos.
Graça e verdade
Em certo sentido, não há nada tão intolerante quanto à verdade, mas aquele que tem a verdade sabe que tanto “graça quanto verdade vieram por Jesus Cristo”, e, portanto ele não separa o que Deus assim uniu na revelação de Si mesmo. Por outro lado, o erro não conhece a graça e não pode mostrá-la. Quando não controlado por um poder divergente, o erro se propaga pela força, fraude e crueldade. Para sermos persuadidos em nossa própria alma de que, até onde alcançamos (pois só conhecemos em parte; 1 Co 13:9; Fp 3:12-13), mantemos a verdade como o Próprio Deus, que nos capacita, embora implacáveis com o erro, procuramos manifestar a tolerância e longanimidade de Deus para com aqueles que são enganados pelo erro.
No que diz respeito à tolerância das opiniões religiosas dos outros, que é tão fortemente defendida hoje, observaríamos que nada é mais ressentido por muitos Cristãos professos do que ter sua profissão julgada. Há na Escritura um reconhecimento distinto dos de “fora” e os de “dentro”. Todos os que se autodenominam Cristãos ocupam o lugar dentro. “Não julgais vós os que estão dentro?”. Todo Cristão professo está, portanto, sujeito a julgamento, e tudo o que eles podem exigir é que sejam julgados pela Palavra de Deus, e não pela medida da consciência de outra pessoa, ou mesmo de sua própria consciência. Se pudermos suportar esse teste, poderemos dizer com o apóstolo que, para nós, é uma coisa sem muita importância ser julgado pelo julgamento do homem.
Finalmente, precisamos examinar nossa própria posição e prática quanto à tolerância e verificar se, em nosso próprio coração, estamos persuadidos e satisfeitos com a revelação de Deus (não dizemos com a interpretação do homem a respeito dela, mas com a própria revelação) – Cristo, o Filho do Deus vivo. Não é Ele que tem as palavras de vida eterna, Deus manifestado em carne, crucificado em fraqueza, declarado ser o Filho de Deus com poder pela ressurreição dos mortos, e agora exaltado pela destra de Deus? Ele é, de fato, o fundamento da nossa paz e confiança? A Palavra que O revela se apoderou de nossa alma de tal forma que podemos dizer: “Seja Deus verdadeiro”, embora (se necessário), “e todo homem mentiroso?”. Será que cremos em Deus em vez do homem, e conhecemos e reconhecemos a reivindicação imensurável que Ele tem, não apenas em nosso amor, mas em nossa obediência e vida?
H. B., Present Testimony (adaptado)