Origem: Livro: A Ceia do Senhor

2 – As Circunstâncias Em Que Foi Instituída A Ceia do Senhor

Havendo tratado daquilo que considero ser, de longe, o ponto mais importante em nosso assunto, devo seguir considerando, em segundo lugar, as circunstâncias em que a Ceia do Senhor foi instituída. Foram circunstâncias particularmente solenes e tocantes. O Senhor estava a ponto de entrar em um terrível conflito com todos os poderes das trevas – iria enfrentar toda a terrível inimizade do homem; e esgotar, até o fim, o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado. Tinha diante de Si um terrível amanhã – o mais terrível que jamais foi enfrentado por qualquer homem ou anjo; todavia, a despeito de tudo, lemos que “na noite em que foi traído, tomou o pão” (1Co 11.23). Que amor mais desinteressado! “Na noite em que foi traído” – noite de profunda dor – a noite de Sua agonia e de suor de sangue – a noite em que foi traído por um, negado por outro e abandonado por todos os Seus discípulos – nessa mesma noite, o coração amabilíssimo de Jesus estava cheio de pensamentos acerca da Sua Igreja – foi nessa mesma noite que Ele instituiu a ordenança da Ceia do Senhor. Ele designou o pão para ser o emblema do Seu corpo oferecido, e o vinho para ser o emblema do Seu sangue derramado, e é o que agora eles são para nós, todas as vezes que d’Eles participamos, pois a Palavra assegura que “todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1Co 11.26).

Podemos dizer que tudo isso concede peculiar importância e sagrada solenidade à Ceia do Senhor; e, além disso, nos dá uma ideia das consequências de se comer e beber indignamente.[5]
[5] *Nota: É comum empregar-se o termo “indignamente”, nesta passagem, às pessoas que celebram, ao passo que a palavra refere-se à maneira de fazê-lo. O apóstolo nunca pensou em questionar o Cristianismo dos coríntios; pelo contrário, no prefácio da sua epístola, ele os vê como a “Igreja de Deus, que está em Corinto… santificados em Cristo Jesus, chamados santos (ou santos por vocação)” (1 Co 1.2). Como poderia ele ter usado esta linguagem no primeiro capítulo e, no capítulo onze, colocar em dúvida a dignidade desses mesmos santos para poderem estar à Ceia do Senhor? Impossível. Ele os considerava como santos, e, como tais, exortou-os a celebrarem a Ceia do Senhor, de uma maneira digna. A questão de se encontrarem entre eles cristãos que não fossem verdadeiros, nunca é levantada; de modo que é de todo impossível que a palavra “indignamente” pudesse ser aplicada a pessoas. A sua aplicação diz respeito unicamente à maneira. As pessoas eram dignas, mas a maneira não o era; e foram convidadas, na sua qualidade de santos, a julgarem-se a si mesmas quanto ao seu modo de proceder, caso contrário o Senhor poderia julgá-las em suas pessoas, como era já o caso de alguns. Em resumo: foram convidadas como verdadeiros cristãos, a julgarem-se a si mesmas. Se tivessem dúvidas de como deviam fazê-lo, então seriam incapazes de julgar o quer que fosse. Eu nunca pensaria em colocar meu filho a julgar se ele é ou não meu filho; mas espero que ele julgue a si próprio quanto ao seu modo de ser, caso contrário, se não o fizer, talvez eu tenha que fazer, por meio de castigo, aquilo que ele deveria ter feito por meio do juízo próprio. É por considerá-lo meu filho que não vou consentir que se sente à minha mesa com a roupa suja e maneiras impróprias.

A voz com que a ordenança sussurra ao ouvido circunciso é sempre a mesma. O pão e o vinho são símbolos de um significado profundo; o trigo moído e a uva esmagada combinam-se para dar forças e alegria ao coração: e não são apenas significativos em si mesmos, mas também são para serem usados na Ceia do Senhor como os próprios emblemas que o bendito Senhor em Pessoa ordenou na noite anterior à Sua crucificação; de modo que a fé pode reconhecer o Senhor Jesus presidindo à Sua própria mesa – pode vê-lo tomar o pão e o vinho, e ouvi-Lo dizer: “Tomai, comei, isto é o Meu corpo”; e também do cálice, “Bebei d’Ele todos; porque isto é o Meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados” (Mt 26.26-28). Em suma, a ordenança reconduz a alma àquela noite à qual já nos referimos – coloca diante de nós toda a realidade da cruz e da paixão do Cordeiro de Deus, em que toda nossa alma pode descansar e se regozijar; faz-nos lembrar, da maneira mais tocante, do amor desinteressado e da pura devoção d’Aquele que, quando o Calvário projetava a sua negra sombra sobre o Seu caminho, e o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado, do qual Ele estava a ponto de ser a vítima de expiação, estava sendo cheio para Si, podia, contudo, ocupar-Se de nós e instituir uma festa que haveria de ser ao mesmo tempo a expressão da nossa união com Ele e com todos os membros do Seu corpo.

E acaso não devemos concluir que o Espírito Santo tenha feito uso da expressão “na noite em que foi traído” com o propósito de remediar as desordens que haviam surgido na igreja em Corinto? Porventura não havia uma repreensão severa contra o egoísmo daqueles que tomavam “a sua própria ceia”, na referência que o Espírito faz àquela noite em que o Senhor da festa foi traído? Sem dúvida que havia. Pode o egoísmo prevalecer à vista da cruz? Podem os pensamentos acerca dos nossos próprios interesses, ou das nossas conveniências, ser permitidos na presença d’Aquele que Se sacrificou por nós? É claro que não. Poderíamos nós desprezar propositada e impiedosamente a Igreja de Deus – poderíamos nós insultar ou excluir membros amados do rebanho de Cristo, enquanto contemplássemos essa cruz na qual o Pastor do rebanho e Cabeça do Corpo, foi crucificado?[6] Ah, não! Deixe que os crentes tão somente permaneçam perto da cruz – que se lembrem dessa “noite em que foi traído” – que tenham em mente o corpo oferecido e o sangue derramado do Senhor Jesus Cristo, e logo haverá um fim a toda heresia, divisão e egoísmo.
[6] *Nota: O leitor há de notar que o texto não toca no assunto da disciplina segundo as Escrituras. Pode haver muitos membros do rebanho de Cristo que não poderiam ser recebidos na Assembleia sobre a Terra, por estarem, possivelmente, contaminados por doutrinas falsas ou práticas errôneas. Porém, embora talvez não os possamos receber, não levantamos, de modo nenhum, a questão de estarem inscritos no livro da vida do Cordeiro. Este assunto não é da competência e nem prerrogativa da Igreja de Deus, “O Senhor conhece os que são Seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade” (2Tm 2.19).

Se ao menos nos lembrássemos de que o Próprio Senhor é Quem preside à Sua mesa, para dar o pão e o vinho; se pudéssemos ouvi-Lo dizer, “Tomai-o, e reparti-o entre vós” (Lc 22.17), estaríamos melhor capacitados a encontrar todos os nossos irmãos no único terreno cristão de comunhão que Deus pode reconhecer. Em suma, a Pessoa de Cristo é o centro de união dado por Deus. “Eu”, disse Cristo, “quando for levantado da Terra, todos atrairei a Mim” (Jo 12.32). Cada crente pode ouvir o seu bendito Senhor falando desde a cruz, e dizendo acerca de seus conservos, Eis aí os teus irmãos; e, na verdade, se pudéssemos ouvir estas palavras claramente, procederíamos, em certa medida, como agiu o discípulo amado para com a mãe de Jesus: nosso coração e nosso lar estariam sempre abertos a todos os que tivessem sido assim encomendados aos nossos cuidados. A Palavra diz: “Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de Deus” (Rm 15.7).

Existe outro ponto digno de atenção em conexão com as circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor, a saber, a sua ligação com a Páscoa judaica. “Chegou, porém, o dia dos asmos, em que importava sacrificar a Páscoa. E mandou a Pedro e João, dizendo: Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos… E, chegada a hora, pôs-se à mesa, e com Ele os doze apóstolos. E disse-lhes: Desejei muito comer convosco esta Páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. E tomando o cálice (o cálice da Páscoa), e havendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós; porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus” (Lc 22.7-18). A Páscoa era, conforme sabemos, a grande festa de Israel, celebrada pela primeira vez na noite inesquecível da sua feliz libertação da escravidão do Egito. Quanto à sua ligação com a Ceia do Senhor, consiste em ser o nítido tipo daquilo que a ceia é o memorial. A Páscoa apontava para a cruz que estava adiante; a ceia aponta para a cruz que ficou para trás. Porém Israel já não estava em uma condição moral adequada para guardar a Páscoa, em conformidade com os pensamentos de Deus acerca dela; e o Senhor Jesus, na ocasião mencionada acima, estava afastando completamente os Seus discípulos do elemento judaico que nela havia, e levando-os para uma nova ordem das coisas. Não deveria mais ser um cordeiro sacrificado, mas pão partido e vinho bebido em comemoração a um sacrifício UMA vez oferecido, e cuja eficácia havia de ser eterna. Aqueles cujas mentes estejam vergadas sob o fardo das ordenanças judaicas, talvez ainda possam procurar, de uma maneira ou de outra, por uma repetição periódica, seja de um sacrifício ou de algo designado para levá-los a um lugar de maior proximidade com Deus[7].
[7] Nota: A igreja de Roma afastou-se de tal modo da verdade expressada na Ceia do Senhor, que diz oferecer, na missa, “um sacrifício incruento pelos pecados dos vivos e dos mortos”. Ora, somos ensinados, em Hebreus 9.22, que “sem derramamento de sangue não há remissão”; consequentemente, a igreja de Roma não tem remissão de pecados para os seus membros. Ela os rouba desta preciosa realidade, e em lugar disso lhes dá algo anômalo e totalmente fora das Escrituras, denominado “sacrifício incruento” ou “missa”. Isso, que em conformidade com sua própria prática e com o testemunho de Hebreus 9.22 nunca pode tirar pecado, ela oferece dia após dia, semana após semana, ano após ano. Um sacrifício sem sangue deve ser, se é verdade o que está nas Escrituras, um sacrifício sem remissão. Portanto, e por conseguinte, o sacrifício da missa é uma absoluta cegueira criada pelo diabo, por intermédio de sua representação em Roma, para esconder da vista do pecador o glorioso sacrifício de Cristo oferecido “uma vez”, para nunca mais ser repetido.
“Havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre: a morte não mais terá domínio sobre Ele” (Rm 6.9). Cada novo sacrifício da missa tão somente declara a ineficácia de todos os sacrifícios anteriores, de modo que Roma está apenas zombando do pecador com uma sombra vazia. Mas ela é coerente com sua impiedade, pois recusa o cálice aos leigos, e ensina seus membros que eles têm o corpo e o sangue e tudo mais em uma hóstia. Mas se o sangue continua no corpo, está claro que ele não está derramado, e então voltamos ao mesmo ponto obscuro, ou seja, “não há remissão”. “Sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9.22).
Quão completamente diferente é a preciosa e tão revigorante instituição da Ceia do Senhor, como nos é apresentada no Novo Testamento. Ali encontramos o pão partido, e o vinho despejado – os significativos símbolos de um corpo oferecido e de sangue derramado. O vinho não está no pão porque o sangue não está no corpo, pois se assim fosse não haveria “remissão”. Em poucas palavras, a Ceia do Senhor é o memorial singular de um sacrifício eternamente consumado; e por isso mesmo ninguém pode participar dela, com inteligência e graça, senão aqueles que conhecem a plena remissão dos pecados. Não é que nós, de modo algum, façamos do conhecimento um termo de comunhão, pois muitos filhos de Deus, devido ao ensino errôneo e por muitas outras razões, não conhecem a perfeita remissão de pecados, e se fossem excluídos com base nesse fato, seria fazer do conhecimento um termo de comunhão, em vez de vida e obediência. Contudo, se eu não souber, por experiência própria, que a redenção é um fato consumado, verei muito pouco significado nos símbolos do pão e do vinho; e, além disso, corro, então, grande perigo de ligar uma espécie de eficácia aos símbolos memoriais, eficácia esta que pertence somente à grande realidade que eles simbolizam.

Há alguns que pensam que na Ceia do Senhor a alma faz, ou renova, um concerto com Deus, desconhecendo que se tivéssemos que fazer um pacto com Deus estaríamos inevitavelmente arruinados; visto que o único resultado possível de um pacto entre Deus e o homem seria o rompimento do pacto por uma das partes (no caso o homem), e o consequente juízo.

Graças a Deus que não existe nada que se pareça com um pacto entre Deus e nós. O pão e o vinho, na Ceia, falam de uma verdade profunda e extraordinária: fala do corpo oferecido e do sangue derramado do Cordeiro de Deus – o Cordeiro provido pelo próprio Deus. Aqui a alma pode descansar perfeitamente satisfeita; trata-se do NOVO TESTAMENTO NO SANGUE DE CRISTO, e não de um pacto entre Deus e o homem. O concerto do homem falhou de forma notória, e o Senhor Jesus teve que deixar passar de Si o cálice do fruto da vide (símbolo de gozo na Terra). O mundo não tinha para Ele nenhuma alegria – Israel havia se tornado “uma planta degenerada, de vide estranha” (Jr 2.21). Por conseguinte só podia dizer: “Porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus” (Lc 22.18). Um período longo e sombrio teria que vir sobre Israel, antes que o seu Rei pudesse encontrar algum gozo na sua condição moral; porém durante este período, a “Igreja de Deus” devia fazer “a festa” dos asmos, em todo o seu significado e poder moral, pondo de lado “o fermento velho… da maldade e da malícia” (1 Co 5.8) como resultado da comunhão com Aquele cujo sangue purifica de todo o pecado.

Contudo, o fato da Ceia do Senhor ter sido instituída imediatamente após a Páscoa, nos ensina um mui valioso princípio de verdade, a saber, que os destinos da Igreja e de Israel estão inseparavelmente ligados com a cruz do Senhor Jesus Cristo. É verdade que a Igreja tem um lugar mais elevado, identificada, até, com sua Cabeça ressuscitada e glorificada; todavia, tudo se baseia na Cruz. Sim, foi na cruz que o puro feixe de trigo foi moído e o suco da videira viva espremido pela mão do próprio Jeová, para conceder força e alegria aos corações do Seu povo celestial e terrenal, para todo o sempre. O Príncipe da Vida tomou da justa mão de Jeová o cálice da ira, cálice de horror, e bebeu-o até o fim, a fim de poder colocar nas mãos do Seu povo o cálice da salvação, cálice do amor inefável de Deus, para que eles pudessem beber d’Ele e esquecer a sua pobreza, e da sua miséria não se lembrarem mais. A Ceia do Senhor expressa tudo isso. Ali o Senhor preside; ali os redimidos deveriam se reunir em santa comunhão e amor fraternal, para comer e beber na presença do Senhor; e enquanto fazem isto, podem olhar para trás, para a noite de profunda angústia do seu Senhor, e olhar para diante, para o Seu dia de glória – essa “manhã sem nuvens” (2 Sm 23.4), “quando vier para ser glorificado nos Seus santos, e para Se fazer admirável naquele dia em todos os que creem (2 Ts 1.10).

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