Origem: Livro: DISCIPLINA CRISTÃ
3. COM QUE ESPÍRITO E MANEIRA A DISCIPLINA CRISTÃ DEVE SER EXERCIDA E APLICADA?
A disciplina Cristã deve ser exercida no espírito de graça e verdade. Pela graça somos salvos. A graça mantém nosso homem interior assim como nosso homem exterior é mantido pelo poder de Deus em nosso caminho, através do território de um inimigo cruel e sutil, em direção ao nosso descanso final e glória com Cristo. A graça, então, deveria ser a nota tônica de toda a verdadeira disciplina Cristã, e a verdade em justiça e em santidade deveria caracterizá-la. Ao longo das Santas Escrituras, graça e verdade andam de mãos dadas, de capa a capa. “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”,
Ele “habitou entre nós cheio… de graça e verdade”. Mas a Escritura não diz que da Sua plenitude recebemos “graça e verdade”, mas sim “graça sobre graça”. A graça, então, deveria ser a tônica da disciplina Cristã. Estamos demasiado inclinados a tratar com graça conosco próprios (pelo menos em nossa opinião) e com verdade com nossos companheiros Cristãos. Sempre que for necessário lidar com nossas próprias faltas, queremos que nossos irmãos nos tratem com graça e verdade; mas no caso da falha de um irmão, procedemos com muita frequência como se estivesse escrito “verdade e graça”.
Quando o Senhor falava da disciplina Cristã, Pedro Lhe perguntou: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?” Ele evidentemente pensou ter expressado a mais plena medida de graça ao dizer “sete vezes”, sendo esta a expressão da perfeição espiritual. Mas qual foi a resposta do Senhor? Ele indicou um número ainda mais perfeito. “Jesus lhe disse: Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete”, e então acrescenta a solene parábola do Rei “que quis fazer contas com seus servos”.
Caro leitor Cristão, talvez devamos nos perguntar: “Quantas vezes você e eu temos perdoado um irmão que pecou contra nós? Receio que, se o mesmo irmão pecasse contra nós pela sétima vez, a graça se tornaria um esforço para nós. Nesse caso, deveríamos estar inclinados a pensar que em nós “a graça teve sua obra perfeita” e que ele está transformando “a graça em dissolução [libertinagem – ARA]”. Mas se você e eu, leitor, já ultrapassamos o número “sete”, sentiremos tanto prazer em exercer a graça em “perdoar uns aos outros”, “assim como Cristo nos perdoou”, que muito antes de termos alcançado o número setenta, – para não falar de setenta vezes sete, isto é, 490 – teremos deixado de contar, caso realmente tivéssemos nos esforçado com aquela tarefa desagradável “até sete vezes”.
No décimo terceiro capítulo do Evangelho do apóstolo João, essa graça manifesta-se em todo o seu caráter amável e comovente. Ali contemplamos Jesus como “Filho Sobre sua própria casa”, exercendo disciplina no caso mais solene de Judas Iscariotes. Ali, a traição mais sombria que já existiu ou existirá teve que ser enfrentada. E com que espírito e maneira Jesus exerceu essa disciplina? Foi com a vara, o “azorrague de cordéis”, em Sua mão, como no caso bem diferente de João 2? Não, mas em perfeita graça do início ao fim, embora o tempo todo na verdade. Pois Ele habitou entre nós em “graça e verdade”. Quantas vezes, nos casos nos quais a disciplina da Igreja se tornou necessária, estamos inclinados a tratar graciosamente o irmão que pecou, se ele não nos ofendeu pessoalmente, especialmente se for nosso amigo ou parente nosso! Estamos então muitas vezes inclinados a colocar toda a ênfase na graça em detrimento da verdade. Porém, nos casos em que ele foi aborrecedor ou pessoalmente odiado por nós, estamos inclinados a fazer o oposto, colocando toda a ênfase na verdade. Quão diferente foi Seu procedimento, que é nosso padrão assim como nosso Salvador. Quando a santidade da casa de Seu Pai estava em questão, Ele tratou com verdade aqueles que contaminaram o templo. Mas no caso da mais negra traição e ingratidão de Judas Iscariotes contra Sua própria Pessoa, Ele age com uma graça tão perfeita que, para a mente natural, quase parece que houve muita graça adiante da verdade. Mas logo veremos que este não foi, nem poderia ser, o caso de Sua parte, com Quem a graça nunca foi separada da perfeita verdade, e a verdade nunca da perfeita graça.
Não são poucos os que se recusam a acreditar que Jesus poderia ter lavado os pés de Judas Iscariotes; como tal graça, mostrada a um traidor inescrupuloso e endurecido, não apenas pareceria jogada fora, mas dificilmente estaria de acordo com a dignidade do Senhor. Receio que aqueles que pensam assim tenham entrado muito pouco no espírito desse capítulo glorioso. De todo o seu teor e conexão, não pode haver dúvida de que o Senhor lavou os pés de Seu traidor, assim como lavou os de Seus outros apóstolos. (Compare os versículos 10 e 11).
A mesma graça e amor que fizeram o “Bom Pastor” trocar o Seu glorioso lar celestial por este mundo entenebrecido pelo pecado, o lar da miséria e da morte, a fim de procurar, primeiro as ovelhas perdidas de Israel, e depois as ovelhas que “não eram daquele aprisco”, moveram Aquele que era a graça e a verdade personificadas, a esgotar todos os meios dessa graça e verdade, para alcançar o coração e a consciência até mesmo daquele que, enquanto comia Seu pão, levantou o calcanhar contra Ele,
“Mas por que todas essas tentativas”, alguns talvez raciocinarão: “se Jesus sabia antes que seriam em vão, sendo Judas o filho da perdição?”
Seus pensamentos não são nossos pensamentos, leitor, nem Seus caminhos e Seu coração são nossos. A onisciência e o conhecimento perfeito do Filho de Deus não poderiam limitar a atividade da graça do perfeito Filho do Homem. O que poderia ser mais adequado para atingir a consciência até de um Judas e amolecer seu coração duro, do que vê-Lo, a Quem ele estava prestes a trair, inclinando-Se a seus pés para realizar o humilde serviço de lavá-los? Deveríamos ter pensado que (cada vez que aquelas mãos, que alimentaram aqueles milhares de famintos, curaram os enfermos e abençoaram as criancinhas, e durante mais de três anos deram ao Seu apóstolo o pão de cada dia e o abençoaram e o partiram com ele, com seu toque suave, aplicaram a água purificadora nos pés de Judas Iscariotes), seu coração deveria ter jorrado e descarregado através de seus olhos, até que as correntes purificadoras de lágrimas penitentes se misturassem com a água purificadora ao redor de seus pés. E quando Ele ouviu Pedro dizer: “Senhor, Tu lavas-me os pés a mim?… Nunca me lavarás os pés”, e então a voz santa, mas sempre graciosa, do Mestre dizendo: “Vós estais limpos, mas não todos” e quando Ele, a Quem Judas também chamou de Senhor e Mestre, Se agachou a seus pés para lavá-los da mesma forma, não deveríamos ter pensado que os pés trêmulos do traidor teriam recuado, trazendo-o de joelhos publicamente para assumir sua profunda queda e a cobiça que causou isso? E quando a mesma voz calma, imperturbável e ao mesmo tempo tão graciosa acrescentou aquelas palavras de advertência: “O que come o pão Comigo levantou contra Mim o seu calcanhar”; e quando Jesus, “turbou-Se em espírito e afirmou, dizendo: Na verdade, na verdade vos digo que um de vós Me há de trair” (estas últimas palavras de graça e verdade, dirigidas ao coração e à consciência de Judas Iscariotes); e quando “os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem de quem Ele falava” – não deveríamos ter pensado que se a menor centelha de um sentimento melhor estivesse em seu coração, ou o menor movimento de arrependimento em sua consciência, tal palavras ditas por tal Mestre teriam evocado ali uma resposta?
Mas o coração e a consciência de Judas Iscariotes tornaram-se tão duros quanto as trinta moedas de prata que ele recebeu dos principais sacerdotes e dos fariseus. Por mais de três anos ele tinha caminhado ao lado do Filho de Deus. Ele tinha visto e ouvido Suas poderosas e graciosas palavras e ações. Mas enquanto caminhava dia após dia como testemunha ocular e auditiva, ou melhor, como um apóstolo ao lado d’Ele que era “Deus manifestado na carne”, seu coração era um oculto santuário de ídolos, onde o “mamon da injustiça” (Lc 16:9 – JND) estava entronizado. Somente o seu corpo, mas não o seu coração, estava na presença do Filho de Deus. Assim, todos os seus privilégios serviram apenas para endurecer inteiramente sua alma e tornar ainda maiores sua medida de responsabilidade, sua profunda queda e o julgamento que se seguiu.
O discípulo do seio “a quem Jesus amava”, e que em nosso capítulo mais solene e ao mesmo tempo tão abençoado Lhe pergunta com simplicidade infantil: “Senhor, quem é?” dirigiu em sua velhice a todos os filhos de Deus a solene ordem: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”.
Jesus respondeu à pergunta de Seu amado discípulo com “É aquele a quem Eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão”.
A graça chegou ao seu ponto mais extremo possível e esgotou seu último remédio. Nada restou além do julgamento. Aquela parte das Santas Escrituras, pronunciada em solene advertência por nosso gracioso mas verdadeiro Mestre, foi cumprida: “O que come o pão Comigo levantou contra Mim o seu calcanhar”[10]. “após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-o depressa”. “E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite”. Palavras solenes!
[10]  Até agora nenhum árabe comeria pão com alguém contra quem nutre quaisquer intenções hostis. ↑
O Senhor, o “Filho sobre Sua própria casa”, exerceu disciplina, mas não até que todos os meios da graça tivessem sido esgotados. Compare 1 Coríntios 5:2.
Leitor Cristão, demorei-me mais do que o habitual neste caso de disciplina, único em sua terribilidade, não para julgar um traidor, mas para julgar nosso próprio coração traiçoeiro. Judas, embora não convertido, era um homem de paixões naturais semelhantes às nossas. Quão pouco, infelizmente, temos aprendido com nosso gracioso Mestre, que mostrou tanta paciência e graça ao Seu traidor, a exercer graça e paciência para com nossos irmãos errantes em Cristo, ignorando a ordenação do apóstolo da Igreja: “Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai [restaurai – TB] o tal com espírito de mansidão, olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado” (Gl 6:1).
Ouça as palavras do inspirado Tiago: “Irmãos, se algum de entre vós se tem desviado da verdade, e alguém o converter, saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador salvará da morte uma alma e cobrirá uma multidão de pecados” (Tg 5:19-20).
Quantas vezes exercemos a graça sem a verdade, ou lidamos com a verdade sem a graça! É difícil dizer qual das duas formas seria a pior.
