Origem: Livro: Duas Naturezas
Capítulo Sete de Romanos
O deserto do Sinai era apenas a terra pela qual Israel viajou em seu caminho para a terra prometida de Canaã. Nós também temos um destino diante de nós – estar com Cristo no céu. Na epístola aos Efésios, somos vistos como assentados nos lugares celestiais em Cristo (Ef 2:6).[20] Posicionalmente, Deus nos vê dessa maneira, e isso deve caracterizar nossa vigilância e caminhar. O livro de Romanos não nos leva tão longe quanto Efésios. Ele está ocupado com a experiência do crente no deserto – nossa senda atual por este mundo. Isso não diminui o valor do livro. A experiência no deserto é necessária, pois é aí que somos testados em termos de responsabilidade. No deserto, os filhos de Israel foram provados e humilhados (Dt 8:2). Da mesma forma, devemos aprender o que somos na carne.
[20]  Isso não é a mesma coisa que estar nos lugares celestiais com Cristo – que é algo que esperamos ansiosamente. ↑
O Cristão tem duas naturezas diametralmente opostas – a carne e a nova natureza. A natureza de Adão deve ser vista no lugar de morte e a natureza divina deve governar nossa vida. Deus não nos diz para morrermos para o pecado – devemos mortificar toda manifestação do pecado (Cl 3:5). Como viva em Cristo (que morreu), a natureza de Adão é vista por Deus como morta. Devemos considerar da mesma forma. “Considerai-vos como mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6:11). No batismo, o velho foi enterrado. A quem nos apresentamos agora? “Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça” (Rm 6:13). Neste versículo, o primeiro apresentar-se é uma ação no presente; o segundo, por outro lado, poderia ter sido traduzido como “tendo-se apresentado a Deus”. A menos que tenhamos feito o segundo, não podemos esperar alcançar o primeiro. Uma vida Cristã feliz surge quando nos rendemos totalmente a Deus e permitimos que Ele assuma o controle. Não podemos olhar para nós mesmos em busca do poder da vida Cristã; devemos olhar além de nós mesmos, para o Espírito de vida em Cristo Jesus. Antes de chegarmos a isso – ao estado feliz de Romanos oito – devemos, entretanto, passar pelo capítulo sete.
A primeira metade do sétimo capítulo considera nosso livramento da condenação de uma Lei infringida. Isso é dirigido ao judeu – o gentio nunca esteve sob a Lei. O judeu ficou aquém do padrão estabelecido pela Lei de todas as maneiras concebíveis. O homem supõe que a graça baixou o nível estabelecido pela Lei, tornando-lhe possível cumpri-la, mas isso seria injusto da parte de Deus. Os tribunais dos homens podem reduzir uma sentença com base em uma violação menor, mas não é o caso de Deus. O livramento da condenação da Lei vem, não pelo enfraquecimento da Lei, mas pela morte. Uma mulher é casada por lei com seu marido enquanto ele estiver vivo; se ele morrer, ela estará absoluta e inquestionavelmente livre (Rm 7:3). A Lei da mesma forma, nada tem a dizer a um homem morto. Estamos mortos para a Lei. Observe, a própria Lei não está morta – nós é que estamos.
A segunda metade do capítulo aborda um assunto relacionado. Alguém nascido de Deus tem o desejo e o zelo de agradar a Deus. Eles olham para si mesmos e comparam com o que Deus requer. Mais do que isso, eles procuram cumprir o padrão justo de Deus; isso é, em princípio, lei. É um passo necessário para reconhecermos nosso verdadeiro estado, mas é um caminho que leva à escravidão. Este foi o filho pródigo entre seu monólogo e o encontro com o Pai – “Faze-me como um dos teus trabalhadores” (Lc 15:19). Cada um de nós deve aprender por experiência própria que a carne é tão atraída por seus antigos vícios como sempre foi – que a carne não mudou e não vai mudar. Esta parte de Romanos sete descreve a luta de alguém que busca controlar o comportamento da carne seguindo um conjunto de regras. Qualquer tentativa desse tipo pressupõe um poder interno capaz de controlar e reformar a carne. A descoberta deve ser feita – e ela é importante e necessária – de que somos totalmente impotentes para controlar a carne.
John Newton[21] em sua autobiografia, “Out of the Depths”, relata essa luta. Tendo quase perdido sua vida no mar (e não pela primeira vez), John começou a orar e buscar fervorosamente a Deus. É evidente que ele se tornou um homem diferente depois dessa experiência, embora ainda fosse cativo – o cativeiro, creio eu, mencionado em Romanos sete. Newton escreve: Não posso duvidar de que essa mudança, na medida em que prevaleceu, foi operada pelo Espírito e pelo poder de Deus, embora eu fosse muito deficiente em muitos aspectos. Em certo grau, eu senti os meus mais enormes pecados, tinha pouca consciência do mal inerente ao meu coração.[22] Isso é consistente com aquele que tem uma nova vida. Há zelo em fazer o que é certo, e pensamentos e conduta pecaminosos são intensamente sentidos. Quem não tem nova vida, embora tenha consciência, não sente o pecado. Sua condição é dada em Efésios: “mortos em ofensas e pecados” (Ef 2:1). Newton lutou por anos neste estado até que finalmente teve paz. “Ele é capaz de salvar até ao mais profundo”, deu-me grande alívio. …e esperar ser preservado, não por meu próprio poder e santidade, mas pelo grande poder e promessa de Deus, por meio da fé em um Salvador imutável.[23] A chave para a descoberta de Newton foi um poder de fora de si. Infelizmente, a compreensão de John Newton sobre sua experiência e as verdades de que falamos foram limitadas pelo sistema teológico a que ele se associou.[24]
[21]  Um clérigo anglicano, autor e redator de hinos, 1725–1807. Talvez mais conhecido como o autor do hino “Amazing Grace”.↑
[22] John Newton, Out of the Depths, pg. 83 ↑
[23] John Newton, Out of the Depths, pp. 113-114 ↑
[24]  John Newton viu as Escrituras através das lentes da Teologia da Reforma: Comecei a entender a segurança da aliança da graça (pág. 115). As Escrituras não falam de tal aliança – este é um dispositivo inventado para explicar várias doutrinas. Este sistema ensina que há uma renovação da natureza decaída. O fato de que temos uma nova natureza inteiramente distinta da antiga não foi compreendido. ↑
Voltando agora a Romanos sete, lemos como a Lei, longe de subjugar a carne e suprimir a pecaminosidade, provoca exatamente o comportamento que ela condena: “O pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda a concupiscência” (Rm 7:8). A culpa, deve-se admitir, não é da Lei, mas da carne. Esta é a primeira descoberta do orador: a carne é pior do que fraca; ela está vendida sob o pecado. “Porque bem sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado” (Rm 7:14). Assim que nos apoderarmos dessa verdade, deixaremos de nos surpreender com os pensamentos e o comportamento da carne – ela fará o que a carne sempre faz. E, no entanto, apesar disso, há um verdadeiro desejo de fazer o que é certo: “Porque o que faço, não o aprovo, pois o que quero, isso não faço; mas o que aborreço, isso faço” (Rm 7:15). De onde vêm esses desejos corretos e apropriados, e quem é o “eu” que faz aquilo que “eu” odeio?
Isso leva à segunda descoberta: “E, se faço o que não quero, consinto com a Lei, que é boa. De maneira que, agora, já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim” (Rm 7:16-17). O indivíduo aprende que existe um novo princípio – um novo “eu” – operando dentro dele, distinto da carne. A responsabilidade não foi abandonada; o orador claramente aceita a responsabilidade por seu próprio comportamento – é isso que o incomoda tanto. No entanto, ele chegou à conclusão de que agora existe um princípio inteiramente novo em ação, distinto do antigo “eu”. Na verdade, ele se recusa a identificar-se com o velho “eu” e o chama pelo que é, pecado (a velha natureza, a carne). Alguém disse: Você tem três “eus” na Escritura e, em termos, eles são contraditórios: “E vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20). Então não tenho carne em mim? Sim, de fato, e esse é outro “eu”.[25] A vida que agora vivemos é aquela nova vida em Cristo – não o velho “eu”, que é visto como tendo sido crucificado com Cristo. Embora a expressão disso possa parecer estranha, ela é clara para quem já passou por isso. Quanto ao terceiro “eu”, é o narrador refletindo sobre a experiência.
[25] J. N. Darby, Notes and Jottings, pg. 11 ↑
Agora chegamos à terceira e libertadora descoberta: “Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a Lei do meu entendimento e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros. Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. Assim que eu mesmo, com o entendimento, sirvo à Lei de Deus, mas, com a carne, à lei do pecado” (Rm 7:23-25). Apesar das duas descobertas anteriores, elas não trouxeram felicidade. Dois princípios estão em ação – a palavra lei agora é usada para significar um princípio governante, como na lei da gravidade. Qual é a solução? A lição final aprendida é que não podemos nos livrar a nós mesmos. O pedido é quem e não o que me livrará. Devemos olhar para fora de nós mesmos; a resposta é encontrada no poder do Espírito Santo – ou, como Romanos 8 coloca: “Porque a Lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 8:2 JND).
Em certo sentido, nada mudou; as duas naturezas ainda estão presentes – uma governada pela Lei de Deus e a outra pela lei do pecado. É importante reconhecer isso. Embora alguns ensinem o contrário, esses versículos nos mostram que a velha natureza permanece em nós (Rm 7:25). Se o crente pudesse se livrar da velha natureza nesta vida, isso teria sido declarado nesses versículos – mas não o foi. Encontramos o oposto; a carne permanece em nós. No entanto, não estamos mais na carne, ou seja, sob seu poder. “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito” (Rm 8:9). Há um poder de fora de nós – um novo princípio – que nos livra do domínio do pecado. Essas coisas são desenvolvidas em Romanos oito.
Embora escrito na primeira pessoa, Romanos sete não é autobiográfico. O relato começa, “E eu, nalgum tempo, vivia sem Lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri” (Rm 7:9). Isso não era verdade sobre o apóstolo Paulo; como judeu, ele estivera sujeito à Lei (Fp 3:5-6). E, ao contrário de uma linha alternativa de raciocínio (e uma caracterização ainda pior), este capítulo não nos dá a luta diária do apóstolo contra o pecado – uma sugestão que diz muito sobre o coração daqueles que ensinariam assim. O capítulo apresenta as descobertas de quem conhece o perdão (Rm 1-5), mas não a liberdade. Essas são as lições aprendidas por uma alma vivificada que busca controlar a carne por seus próprios meios. É uma retrospectiva; alguém em tal condição não está em condições nem em posição de analisar seu conflito.
Romanos sete é frequentemente confundido com Gálatas capítulo cinco. Nesse capítulo, lemos sobre o conflito entre a carne e o Espírito Santo (Gl 5:17). O Espírito Santo não é mencionado nenhuma vez em Romanos sete. Não é até chegarmos a Romanos 8 que encontramos o Espírito de Deus e lá Ele aparece cerca de 20 vezes! Essa observação é a chave para entender Romanos sete. O tom dos capítulos sete e oito é muito diferente. Romanos sete e Gálatas cinco são, por sua vez, frequentemente confundidos com Efésios seis. Lá, a guerra não é interna, mas externa, “Contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (Ef 6:12). A experiência de Romanos sete é uma luta única (mas necessária) para o crente; ela pode ser breve ou longa, como foi para John Newton. O conflito de Gálatas cinco pode ser diário, mas não deve ser considerado como o caminhar normal Cristão. A experiência de Efésios seis, entretanto, será a experiência normal de um Cristão que está indo bem para com Deus.
Romanos sete descreve as experiências de alguém que tem uma nova vida, embora ainda não habitado pelo Espírito Santo. No entanto, experimentamos luta semelhante sempre que procuramos controlar a carne por nosso próprio poder. Se ignorarmos as duas naturezas e acreditarmos genuinamente que devemos reformar a carne ou fazê-la obedecer à Lei, Romanos sete caracterizará nossa vida Cristã. Muitos se encontram neste estado miserável porque não sabem disso. Os monges da antiguidade tentaram destruir a concupiscência matando-a com uma vida austera; nunca funcionou e nunca funcionará. Tudo o que sempre fez foi provocar a carne e produzir concupiscência da pior espécie. Posso dirigir pela estrada confortavelmente a certa velocidade, com a consciência tranquila. Quando, no entanto, vejo um limite de velocidade numa placa, o que eu faço? Eu não dirijo a cinco por hora a menos, mas a cinco por hora a mais! Quando sou multado, a lei estabelece minha culpa. Ela me disse o que era certo, mas não me deu poder para o fazê-lo.
