Origem: Livro: DISCIPLINA CRISTÃ

De que modo deve ser aplicada a disciplina Cristã?

Tendo já falado sobre o modo de exercer disciplina Cristã nos seus dois primeiros aspectos, agora só temos que considerar o modo e a maneira pela qual a disciplina da assembleia deve ser aplicada.

Em primeiro lugar, faremos bem em lembrar que a forma de aplicar a disciplina na Igreja está intimamente ligada ao espírito com que deve ser praticada, sobre o qual me detive no artigo anterior. Pois se no exercício da disciplina da Igreja o Espírito da graça e da verdade estiver ativo dentro de nós, esse Guia divino, habitando em nós, não entristecido, Ele não deixará de guiar no caminho e na maneira de realizá-la. Apenas estejamos sempre conscientes de que este bendito Espírito da verdade pode e nunca nos levará a agir sem, e muito menos contrariamente, a Palavra ditada por Ele mesmo, que é a verdade.

E o que é especialmente que encontramos expresso de forma tão distinta e decidida na Palavra de Deus quanto à maneira de pôr em prática a disciplina da Igreja? Não é a responsabilidade comum dos membros de Cristo diante d’Ele, nosso Cabeça em glória, bem como a responsabilidade mútua deles, quanto a qualquer pecado não julgado que desonra a Deus, contaminando a assembleia como tal? Tomemos novamente o caso de Corinto. Aquela Igreja havia caído a uma condição espiritual tão baixa, que se tornou desatenta à sua responsabilidade de purificar-se “do fermento velho”.

Como agiu o apóstolo nesse caso desesperador, humanamente falando? Ele convocou uma conferência privada com Tito, Timóteo, Estéfanas, Fortunato e Acaico e alguns outros de seus companheiros de labuta, a fim de chegarem a uma conclusão e decisão neste assunto? Será que ele disse a eles: “A condição da Igreja em Corinto está tão ruim e espiritualmente tão baixa, a vida espiritual tão fraca, a carne tão forte e prevalecente, e as consciências tão sonolentas e inertes, que não resta nada além de tomar o problema em nossas próprias mãos, e nós decidirmos, em vez deles, em tirar aquela pessoa ímpia da assembleia”? Será que ele envia Tito ou Timóteo ou Estéfanas a Corinto com uma mensagem à assembleia, de que ele, como apóstolo, ou, digamos, ele e os outros irmãos com ele resolveram tomar a disciplina necessária da Igreja em suas próprias mãos, e, realizando isso por eles, expulsou aquela pessoa má do meio deles?

Qual teria sido o efeito de tal ação? Ora, se a Igreja de Corinto, tivesse se “curvado” a tal resolução, e, agindo de acordo com ela – tivesse considerado aquela pessoa iníqua como tendo sido expulsa do meio deles – teria agido no temor do apóstolo e dos irmãos com ele, em vez de agir sob a direção do Espírito Santo e no temor do Senhor. A consciência e o coração dos coríntios não teriam sido exercitados diante de Deus, em Sua santa e graciosa presença, quanto ao mal que haviam permitido em seu meio. Ao se livrarem de um mal, teriam apenas aberto a porta para outro mal, trocando assim um “fermento” por outro.

Mas o que o apóstolo fez? Em seu caráter e autoridade como tal, ele realmente disse: “Eu, na verdade, ainda que ausente no corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente, que o que tal ato praticou, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, juntos [reunidos – ARA, congregados – TB] vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo, seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus”.

Mas antes de tudo o apóstolo diz (v. 4): “vós e o meu espírito estando juntamente reunidos, com o poder do Senhor Jesus Cristo” (JND). Embora falando como apóstolo, ele se identifica inteiramente com a Igreja de Corinto simplesmente como um membro do corpo de Cristo, dizendo: “vós e o meu espírito estando juntamente reunidos, com o poder do Senhor Jesus Cristo” (não “com meu poder apostólico”). Ele procura trazer a consciência dos coríntios para a presença de Cristo, em vez de para a sua própria presença apostólica, para que possam agir “no temor de Cristo”, e não no temor do apóstolo, isto é, no temor dos homens. Embora, em virtude de sua autoridade apostólica, ele estava entregando aquele ímpio a Satanás para a destruição da carne (Jó 2:6-7), ele ao mesmo tempo tem o cuidado de lembrar aos coríntios de sua própria responsabilidade por agirem eles próprios na aplicação da disciplina da Igreja, pois ele continua: “Não julgais vós os que estão dentro? Mas Deus julga os que estão de fora”. Ele não diz: “Nós excluímos essa pessoa do meio de vocês, e tudo o que vocês precisam fazer é notificar isso à assembleia”, mas: “Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo”.

É verdade que o mesmo apóstolo escreve aos hebreus: “Obedecei a vossos pastores [guias – ARA] e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossa alma, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil”. Também faremos bem em lembrar que o apóstolo escreve aos Coríntios no final da mesma Epístola: “vos rogo, irmãos (sabeis que a família de Estéfanas é as primícias da Acaia e que se tem dedicado ao ministério dos santos), que também vos sujeiteis aos tais e a todo aquele que auxilia na obra e trabalha”.

Não permita Deus que alguém diga ou escreva qualquer coisa que tenha a tendência de enfraquecer ou minar a autoridade espiritual dada pelo próprio Senhor aos que lideram, aos pastores, mestres, aos que supervisionam, e que incite ou fomente nas Igrejas um espírito de desrespeito e oposição contra qualquer verdadeira autoridade espiritual, designada por Deus. Tal espírito não vem de cima, mas de baixo, como aprendemos na Epístola de Judas, onde somos advertidos contra dois extremos malignos. Um é o de “admirando as pessoas por causa do interesse”, e o outro é o de “desprezam a dominação e maldizem as dignidades” (TB). Cada um dos dois é um grande pecado, mas enquanto o primeiro é inerente à natureza humana (embora não seja menos pecaminoso e odioso), o último é diretamente diabólico e abominável.

Mas quando aqueles que têm sido vistos como líderes, tornaram-se tão desatentos à sua responsabilidade para com o Senhor e à sua obrigação para com a Igreja de Deus, decorrente da posição que ocupavam ali, a ponto de tentarem, especialmente em casos da disciplina da assembleia, conduzir as consciências dos santos praticamente para longe de Cristo sob sua própria superintendência e autoridade, eles não devem mais ser considerados nem tratados como “líderes”, mas como “enganadores” ou “impostores”.

Apenas alguns anos atrás, o escritor destas linhas permaneceu algum tempo como visitante em um determinado distrito (não da Grã-Bretanha), onde havia numerosas reuniões constituídas por aqueles que professavam, defendiam e ensinavam as verdades simples da igreja de Deus, conforme apresentadas nas Escrituras. Entre eles, tornou-se uma prática comum que, por meio de uma certa reunião em uma grande cidade (a “Jerusalém”, por assim dizer, para todas as reuniões no país, pelo menos para tantas quantas estivessem dispostas a reconhecer tal lealdade e dificilmente havia alguma que ousasse renegá-la), casos de disciplina da assembleia eram tomados em mãos e levados a efeito, não apenas para reuniões vizinhas, mas também para reuniões distantes. Durante suas sessões privadas de sábado à noite numa casa particular, alguns “irmãos governantes”, como eram chamados, resolviam entre si qualquer caso de disciplina da assembleia que tivesse surgido em alguma reunião daquele centro metropolitano, A decisão deles então era divulgada à assembleia na manhã do Dia do Senhor como um fato consumado que não admitia contradição. Mas esses “irmãos governantes” não limitaram a sua atividade aos casos de disciplina na assembleia a qual eles pertenciam. Eles também se ocupavam de questões de disciplina da Igreja que surgiram em reuniões vizinhas e até mesmo em reuniões distantes, e então enviaram um ou dois delegados à reunião em questão, a fim de notificar aquela reunião no próximo dia do Senhor como um fato consumado que tal irmão ou irmã foi tirado fora da assembleia pelos irmãos em “Jerusalém”. Numa dessas ocasiões, ocorreu até que um irmão, que protestou contra tal procedimento, também foi excluído por “insubordinação”.

Onde está o temor de Deus em tais procedimentos? Onde está a Palavra de Deus para justificá-los? O que acontece com a direção do Espírito Santo na assembleia? E quanto ao devido respeito à consciência dos santos? “Dominais sobre elas com rigor e dureza” (Ez 34:4). Eu “livrarei as Minhas ovelhas da sua boca, e lhes não servirão mais de pasto” (v. 10).

Pode haver questões de disciplina da assembleia, como por exemplo, em casos de imoralidade, desonestidade e doutrina maligna, onde a verdadeira sabedoria, amor e cuidado piedoso pelo rebanho de Cristo proibiriam igualmente fazer com que toda uma assembleia, jovens e velhos, se familiarizasse com todos os detalhes de tais pecados graves. Tal procedimento não só não seria útil para a condição espiritual dos santos, especialmente dos jovens, mas muitas vezes seria exatamente o oposto. Dificilmente se pode imaginar algo mais prejudicial à vida espiritual, ao progresso e ao crescimento de uma assembleia do que tal procedimento. O mesmo aconteceria em casos de doutrina maligna, onde a influência envenenadora da alma muitas vezes se mostraria ainda mais desastrosa.

Em casos como estes, parece não apenas aconselhável, mas indispensável para o bem-estar espiritual de uma assembleia, que alguns irmãos mais velhos, de peso e inteligência espiritual, assumam os casos de disciplina mencionados acima e peneirem o todo antes de serem apresentados à assembleia para decisão. Desta forma, a consciência dos santos que formam a assembleia é devidamente exercitada diante de Deus, sem que o coração deles tenha sido contaminado por estarem ocupados com as peculiaridades do fermento que teve que ser eliminado. Tendo a assembleia então decidido quanto à necessidade da exclusão, ela é divulgada no primeiro dia da semana seguinte.

Esta maneira de levar a efeito o ato solene de disciplina está de acordo com Deus e Sua Palavra, e é muito diferente das formas ímpias de procedimento mencionadas acima. No primeiro caso, onde alguns “irmãos governantes” assumem sobre si a disciplina a ser exercida pela assembleia, a consciência dos santos é deixada sem exercício diante de Deus e, em vez disso, colocadas sob a autoridade humana. No último desses dois procedimentos perversos, é onde toda a reunião, jovens e velhos, são informados e, por assim dizer, familiarizados com os detalhes do fermento contaminador em todos os tipos de casos vergonhosos, há um perigo muito grande para o coração, especialmente dos tenros cordeiros do rebanho, familiarizando-se com o mal e, consequentemente, insensíveis ou indiferentes, se não forem realmente envenenados por ele. É difícil dizer qual dos dois seria o pior: o endurecimento da consciência pela falta de exercício diante de Deus; ou a contaminação e envenenamento do coração devido ao excesso de exercícios e detalhes que exigem disciplina.

Que o Deus de toda graça, por meio do Espírito da verdade, do poder, do amor e de uma mente sã, nos guie e abençoe com aquela sabedoria que vem do alto, para que sejamos cheios “do fruto da justiça” até o dia de Cristo, e não nos envergonhemos diante d’Ele na Sua vinda.

Finalmente, gostaria de observar que há dois casos em que a retirada pessoal de um santo de uma reunião seria não apenas justificada, mas imperativa. O primeiro caso é o de uma assembleia que se recusa obstinadamente a excluir aqueles que são culpados de injustiça e imoralidade. O segundo é o de uma assembleia que permanece em comunhão com pessoas culpadas de heresia e heterodoxia (doutrina maligna). Sendo a disciplina uma das características essenciais da Igreja, como “casa do Deus vivo”, uma assembleia que recusa essa disciplina, deixa de ser uma assembleia no sentido da Palavra de Deus, por abrigar voluntariamente o mal e recusar julgá-lo e excluí-lo. Somente que todo o esforço bíblico é devido em advertência e súplica antes que tal passo extremo possa ser legitimamente dado.

Quanto à obrigação divina de cada crente de separação absoluta em casos de heresia e heterodoxia, isto tornou-se, especialmente nestes “tempos trabalhosos” e “últimos dias”, um assunto de tão suma importância, que, antes de encerrar estas observações sobre a questão Cristã disciplina, pretendo oferecer em meu próximo artigo algumas observações distintas sobre esse assunto.

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