Origem: Livro: Breves Meditações

O Israelita Mordido

É muito bom estar descobrindo as glórias da Escritura; especialmente em dias em que o atrevimento incrédulo dos homens as desafia. Amaleque, em dias passados, ousou sair e resistir ao arraial de Israel, embora naquele momento a nuvem que carregava a glória estivesse pairando sobre o arraial; e, em breve, a grande confederação incrédula dos últimos dias se erguerá tão alto em orgulho e ousadia a ponto de enfrentar o exército do Cavaleiro montado sobre o cavalo branco que descerá do céu (Êx 17; Ap 19).

Com o mesmo espírito, o coração do homem desafia agora o livro que contém as preciosas e misteriosas glórias da sabedoria de Deus. É, portanto, um bom serviço extrair essas glórias e deixar que os oráculos de Deus falem, em sua própria excelência, para a confusão dessa iniquidade. E uma dessas glórias, uma parte dessa excelência, é esta: que se encontra um sopro que anima, uma luz que brilha, uma voz que se ouve em todas as regiões deste único Volume divino. Pois, de certa forma, pode-se dizer que Moisés reaparece em Paulo, Isaías em Pedro, Davi em João e assim por diante. A luz da manhã é a luz do meio-dia e da tarde, embora, é verdade, em medidas e condições diferentes.

Voltando-nos agora para a narrativa que esta Escritura nos dá, veremos isso ilustrado. Vemos, em primeira instância, que o Senhor Se recusa a cancelar o juízo que havia pronunciado. O arraial havia pecado, e serpentes ardentes, mensageiras da morte, foram enviadas entre eles; e embora Moisés possa orar e o povo clamar em angústia de coração, o Senhor não removerá aquelas executoras de Seu justo juízo. E este é o Seu caminho no evangelho. A sentença de morte pronunciada no princípio sobre o pecado não é revertida. Isso seria o reconhecimento de algum erro ou fragilidade – e isso não poderia ser. Mas Deus tem Suas provisões diante da sentença de morte. Este é o Seu caminho. Maravilhoso dizer isso, Ele provê ao pecador uma resposta às Suas próprias exigências em justiça! No princípio era assim, e assim tem sido repetidamente; assim é no evangelho, e assim é nesta narrativa.

Deus trouxe a Semente ferida da mulher para o jardim do Éden ferido pela morte, e Adão, o pecador que se destruiu a si mesmo, recebe provisão. Noé recebeu de Deus a arca no dia do dilúvio, e Israel a verga da porta aspergida no dia do julgamento do Egito. Davi foi instruído a erguer um altar na desprezada eira de um jebuseu incircunciso; e aquele altar ali teve a virtude de silenciar a espada do anjo da morte que pairava no alto sobre a cidade condenada – assim como o sangue do Calvário teve a virtude de rasgar o véu de cima a baixo e abrir os elevados céus aos cativos do pecado e da morte.

Esta é uma das belas unidades no caminho revelado de Deus.

Não é Deus cancelando Seus julgamentos, mas provendo ao pecador uma resposta quanto a eles. Esta pequena narrativa demonstra isso de forma bela e vívida. Israel pecou, como vimos, e serpentes ardentes foram enviadas ao meio deles. Eles oraram para que as serpentes fossem retiradas; mas tal oração não poderia prevalecer. As executoras da justiça devem permanecer no arraial – a morte deve seguir o pecado, pois Deus havia dito no princípio: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Mas o Senhor ordena a Moisés que faça uma serpente de bronze e a coloque sobre uma haste, e então proclame, aos ouvidos de todo o arraial, que todo israelita mordido que olhasse para aquela serpente levantada seria curado e viveria.

Isto era a vida confrontando a morte – uma fonte secreta de vida e cura em meio aos poderes da morte; era como a revelação da Semente ferida da mulher no jardim do Éden recém-atingido pela morte. Mas isto não era a retirada das serpentes ardentes, como o arraial almejava; não era o cancelamento da sentença que havia sido proferida sobre o seu pecado; era outra coisa, diferente e mais elevada; estava capacitando o israelita no deserto a triunfar sobre aquele estado miserável em que se envolvera. Isto é o que era. Não era simplesmente uma fuga dele, mas um triunfo sobre ele; pois um israelita mordido por uma serpente ardente, se apenas olhasse para a serpente de bronze, poderia então sorrir para as serpentes ardentes, embora ainda estivessem no arraial: assim como Noé, muito antes, no lugar privilegiado onde a graça e a salvação o haviam colocado, poderia ter sorrido para as águas enquanto elas subiam ao seu redor; ou como o israelita no Egito, sob a verga da porta espargida, poderia ter sorrido para a espada do anjo destruidor enquanto ele passava pela terra.

Quão excelente é tudo isso! E isto ainda é o evangelho; tão consistente consigo mesmo é o caminho de Deus, e sombreado com igual beleza na história de Noé no dilúvio, ou do israelita no Egito, ou do homem mordido do arraial no deserto que olhou para a serpente de bronze. Tal pessoa não poderia ser mordida uma segunda vez; o pecado contra o Senhor do arraial, que havia vivificado esses ministros da morte, havia sido enfrentado pelas provisões d’Aquele mesmo Senhor do arraial, e esta era sua segurança e seu triunfo. Ele estava agora em um estado melhor do que se nunca tivesse sido mordido. Seu estado era então vulnerável, agora é inabalável – antes ele poderia ter sido ferido pelo mensageiro da morte, agora não poderia. Assim como Adão, vestido por Deus, está além de Adão na nudez da inocência; Adão, o pecador perdoado e aceito, está além de Adão, a criatura íntegra.

O enigma de Deus – “Do comedor saiu comida, e do forte saiu doçura” – é exposto repetidas vezes. Já o vimos antes e o vemos aqui novamente. E em conexão com tudo isso, é lançado um outro olhar sobre Adão, posso dizer que, quando seus lábios se abriram sobre a mulher pela segunda vez, proferiram uma palavra mais feliz do que haviam proferido na primeira vez. “Esta será chamada mulher” não expressou uma alegria igual à que ele experimentou quando, como lemos mais adiante, “chamou Adão o nome de sua mulher Eva; porquanto era a mãe de todos os viventes”. Celebrar a vida vinda de Deus diante de uma morte produzida por si mesmo é uma ocupação muito mais elevada para o coração do que celebrar até mesmo o dom final e coroador de Deus na criação ou na providência.

Agora, tudo isso que traçamos aqui nesta pequena narrativa em Números 21 é, torno a dizer, o evangelho. Isto é como a salvação de Deus. Nada do que foi ameaçado foi cancelado. Tudo, pelo processo de ruína e redenção, é encontrado, respondido e satisfeito. O sangue da aliança eterna concedeu ao “Deus da paz” ressuscitar dentre os mortos, Jesus, como “o Pastor das ovelhas”. O próprio Deus é justificado de uma maneira justa e gloriosa, e o pecador vitoriosamente trazido a uma condição de certeza e inabalabilidade, e de desafio santo e cheio de gratidão a toda a inimizade, e às tentativas e aos recursos do antigo destruidor.

Mas há esta característica adicional do evangelho impressa nesta pequena narrativa. A vida ou cura deveria ser individual – o israelita mordido deveria olhar por si mesmo para a serpente levantada. “Todo mordido que olhar para ela viverá”, disse o Senhor a Moisés – e então a história nos diz: “tendo uma serpente mordido a alguém, quando esse olhava para a serpente de bronze, vivia” (vs. 8-9 – AIBB). Assim é agora entre nós e Deus, pessoal e individualmente, no evangelho – e podemos bendizer profundamente a Ele por ser assim. Ele nos individualiza e nos separa para Si mesmo, para nos falar sobre nossos pecados e resolver conosco a questão da eternidade. Ele se assenta conosco sozinho no poço de Sicar, ou nos vê, a nós mesmos, sob a figueira, ou sente nosso próprio toque no meio da multidão agitada, ou olha para o sicômoro para encontrar nosso olhar, ou nos encontra sozinhos fora do arraial, ou no chão do templo. Sua palavra em João 3 é como Sua palavra em Números 21: “aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”. Um olhar bastará, mas o olhar deve ser um ato pessoal e individual. A fé é o ato da alma em tratar imediatamente com Deus. Outro não pode crer por mim, nem ordenanças ou provisões religiosas humanas podem tomar o lugar de Deus em relação a mim. Eu devo olhar, e Cristo deve ser exaltado. É bendito dizer isso. Ele e eu temos que tratar Um com o outro.

Assim é, como se reflete nesta pequena narrativa, e assim é no evangelho espalhado pelo mundo. E certamente estas são testemunhas maravilhosas da maneira como a graça e a salvação de Deus têm tratado conosco. Deus não impediu o pecado. Nem cancelou o juízo que a ele vinculou. Nem simplesmente fez as coisas voltarem a ser como eram antes. Ele tira da ruína algo melhor do que aquilo que havia sido arruinado – e Ele realizou isso por meio de justiça imaculada e de infinita demonstração de Seu próprio nome e glória. É redenção e ressurreição, vida em vitória, vida conquistada por Ele mesmo do poder da morte.

Mas devo meditar mais particularmente sobre o Senhor Jesus no Evangelho de João, em conexão com isto.

O momento registrado em nossa narrativa não era tempo para nada além de um olhar, e este também, um olhar para a serpente levantada. Não teria servido de nada para um israelita mordido se ocupar com qualquer outro objeto. A morte estava diante dele, se não olhasse para lá. E teria sido um gracioso serviço de qualquer irmão israelita chamá-lo de volta para aquele objeto, se ele visse que seus olhos, ou temesse que seus pensamentos, estivessem dispostos a se concentrar em qualquer outro.

É uma parte como esta que o próprio Senhor age com Nicodemos em João 3. Nicodemos viera a Ele como a um Mestre. O Senhor imediatamente o desviou para outra direção e o fez saber que ele deveria vir a Ele como Salvador ou Doador da Vida. Nicodemos buscava instrução. O Senhor lhe disse que ele precisava de vida. E então, Ele ordenou Sua fala com ele de modo a afastá-lo de todo pensamento e objeto, exceto da serpente de bronze levantada na haste no deserto. Ele o fez saber que ele e todos os homens, como israelitas mordidos, estavam a caminho da morte, mas que a Serpente de bronze, a Curadora ou Doadora da vida, a Salvação de Deus, estava novamente no arraial, e que o olhar deveria ser novamente dado, deveria interpor-se novamente como entre a mordida e a morte, ou o reino estaria perdido e o pecador pereceria.

De fato, é de acordo com isso, ou no espírito d’Aquele que desviava o olhar de todo aquele que vinha a Ele, de qualquer objeto, exceto da serpente levantada, que o Senhor Jesus conduz Seu ministério por todo aquele Evangelho de João. Pois Ele Se recusa a agir em qualquer outra forma que não a de Salvador. Os homens podem vir a Ele em outros relacionamentos e para outros fins, mas Ele não os receberá. Alguém pode rogar a Ele como um Fazedor de milagres, outro pode bajulá-Lo como um Rei, outro pode ser a favor de assentá-Lo em um trono de julgamento, outro, como Nicodemos, pode vir a Ele como um Revelador das profundas e misteriosas lições do céu; mas Ele não acolhe tais pessoas; Ele não aceita abordagens e apelos como esses. Ele não Se compromete com nenhum deles nem a qualquer deles. Mas quando um pecador convicto vem a Ele ou está diante d’Ele, quando, dessa forma, um israelita mordido olha para Ele como a Serpente levantada, o Curador ou Vivificador do homem designado por Deus, então Ele responde imediatamente, e a vida e a salvação são concedidas.

Que consolo! Que graça n’Ele, que libertação e bênção para nós! Que gozo encontrar Deus em tal caráter, e vê-Lo assim, como o Jesus do Evangelho de João, tão zelosamente Se apresentando diante de nós nesse caráter, recusando-Se a ser recebido em qualquer outro. Seu amado Nicodemos estava sob longo e paciente treinamento, até que Lhe lançou o olhar de um israelita mordido. Mas ele o fez no final, e então o fez de forma abençoada e vigorosa (veja João 19).

Verdade preciosa, de fato, e precioso Salvador que a concedeu a nós, pecadores! O olhar que foi pregado há tanto tempo, no meio do arraial de Israel no deserto, no dia de Números 21, o Senhor Jesus, o Jeová de Israel e a verdadeira Serpente de bronze, ainda prega e novamente o faz, e com todo o fervor e seriedade, no Evangelho de João.

Mas, novamente. O Senhor nos permite saber mais, nesse mesmo Evangelho, como Ele acolhe esse olhar quando Lhe é dirigido, e como imediatamente Ele o responde com a cura e a salvação de Deus. Observe isso no caso de André e seu companheiro, e de Natanael, no capítulo 1. Veja esse acolhimento expresso de forma bela e de coração em Seu trato mais gracioso com a samaritana, no capítulo 4; e leia-o novamente em Suas palavras à mulher, no capítulo 8; e ouça-o em Suas palavras a Pedro, no capítulo 6, quando Ele Se volta para ele, diante da multidão que se recusa a Lhe lançar esse olhar. E temos outro testemunho do mesmo no capítulo 12, quando Ele fala de Si mesmo novamente como a Serpente de bronze levantada, e exulta com a ideia de reunir todos os homens a Si mesmo nesse caráter (veja versículo 32).

Ora, estas são características da verdadeira ordenança que não poderíamos ter obtido na ordenança típica de Números 21. Não encontramos ali um israelita, na doce afeição do Jesus de João, guiando com fervor e cuidado o olhar de seu irmão mordido para a Serpente levantada. Este era um exercício afetuoso do coração que estava reservado para o próprio Salvador praticar e exibir. Nem encontramos (pois não poderíamos) a Serpente levantada ali acolhendo e encorajando o olhar que se voltava para ela. Mas isto também estava reservado para o verdadeiro, o vivo, o divino Curador dos pecadores arruinados pela antiga serpente ardente da morte. N’Ele obtemos estas coisas. E assim, em grande sentido, não nos é dita a metade pela figura – o Original excede a fama que tínhamos ouvido d’Ele. Felizes aqueles pobres pecadores que estão diante da Serpente de bronze que agora é levantada diante de seus olhos no Evangelho de João. Eles recebem a cura de Deus ali, e também uma calorosa acolhida.

Temos, no entanto, algo mais. Temos essa mesma seriedade e afeição no Espírito Santo que vimos haver no Filho. Encontramos isso na Epístola aos Gálatas. Quão zelosamente Paulo está ali, no Espírito, ocupado em manter o olhar dos gálatas em Cristo crucificado, ou em fazê-los voltar a esse objetivo! Ele os alarmava com o medo de alguma feitiçaria. Ele os desafiava e os repreendia, e isso duramente. Ele ansiava por eles e consentia de bom grado em ter dores de parto com eles novamente. Ele, com a mais profunda afeição, os lembrava dos dias passados de bem-aventurança e os contrastava solenemente com o presente. Ele também argumentava com eles. E lhes conta sua própria história e o propósito de seu coração ao tocar esse grande Objeto, o Cristo crucificado de Deus, a verdadeira Serpente de bronze levantada, como ele A havia contemplado e pretendia ainda contemplar, viver pela fé n’Ela e se gloriar somente n’Ela.

Tudo isso é certamente excelente. O Espírito no apóstolo está em companhia do Filho do Evangelista – e a sombra é superada pela substância. Afeições são exercidas nos Originais divinos, o que jamais poderia ter sido expresso nas ordenanças simbólicas.

Será que ainda descobrimos um segredo adicional, posso perguntar, quando comparamos este capítulo de Números com João? Sim; a luz que brilha ali, embora seja a mesma luz, é ainda mais brilhante aqui. Descobrimos isso novamente no capítulo 3.

Ali, o Senhor conecta esse olhar para a serpente levantada com o novo nascimento. Isso não havia sido feito em Números 21, embora pudesse ter sido derivado dele. A nova vida eterna poderia ter sido descoberta no israelita que olhou para aquela serpente, porque ele estava então respirando a vida da ressurreição, que é a vida eterna. Ele estava desfrutando de uma vida que lhe havia sido provida por Aquele que havia enfrentado, em seu favor, a ferida da antiga serpente, a serpente que tinha o poder da morte. Quando ele olhou, ele viveu; e essa vida era uma vida conquistada da morte, uma vida vitoriosa. Em princípio, era vida eterna, tal como o poder curador de Deus, a salvação de Deus, o Filho ressuscitado e vitorioso sopra nos eleitos. Não digo que todo israelita que olhou foi introduzido a esta vida eterna. Não é necessário dizer isso; mas é a expressão disso – e isso, em sua substância e realidade, encontramos em João 3, e somos instruídos pelo próprio Senhor a saber que o olhar da fé para a verdadeira Serpente de bronze carrega consigo a vida eterna. “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado; Para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E essa verdade é ensinada distintamente em 1 Pedro 1: “Sendo de novo gerados,”, diz o apóstolo inspirado, “não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela Palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”. E então ele nos ensina ainda mais onde essa palavra pode ser encontrada, onde essa semente da vida eterna deve ser recolhida; “E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada” – o evangelho sendo, como sabemos, a publicação da virtude da verdadeira Serpente de bronze, o Cordeiro de Deus, o Curador dos pecadores destruídos pela mentira da antiga serpente da morte.

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