Origem: Livro: Breves Meditações
A Jornada para Samaria
Todos nós somos atraídos pela jornada que o filho pródigo, em Lucas 15, faz da terra distante de sua degradação e miséria, de volta à casa de seu pai. É uma imagem tocante do retorno que um pecador faz sob a vivificação e condução do Espírito, de volta a Deus, e então encontra n’Ele um Pai que perdoa.
Há, no entanto, outra jornada diferente descrita na Escritura, a correlacionada, como posso chamá-la, àquela do filho pródigo. Refiro-me à jornada do Pai até a terra distante, em busca do Seu filho pródigo. Lemos isso em João 4.
Jesus, que veio do Pai no céu e representou o Pai neste mundo de pecadores, é ali visto fazendo essa jornada. Ele entra na contaminada Samaria, figura deste mundo poluído; pois Samaria era como um leproso, separada do lugar da justiça e tratada como algo fora do arraial. Mas lá, naquela terra reprovada, naquela terra natal dos pródigos, o Senhor vai. E Ele encontra ali uma pecadora, alguém que ainda estava como que com os porcos nos campos de um estranho, alimentando-se de bolotas, insatisfeita.
A jornada Lhe custa caro. Ele está cansado, faminto, sedento; e no calor do dia, assenta-Se onde aquela pródiga em breve iria encontrá-Lo. E ali, diante da necessidade dela, Ele imediatamente Se esquece da Sua própria, colocando-Se a servi-la, com a paciência que o amor suporta e com a habilidade que o amor sugere.
Ele busca a confiança dela da maneira mais eficaz e graciosa. Ele pede a ela um copo de água fria, o menor de todos os favores conhecidos entre os filhos dos homens. Ele deseja fazê-la sentir-se à vontade em Sua presença; e ela o faz. Mas, atraída por algo que a interessava mais do que a sede de um estranho, isto é, a novidade de toda a circunstância, Ele imediatamente segue o caminho para onde ela, sob essa atração, O estava conduzindo.
É, contudo, atrás de uma pródiga que Ele foi, e Ele não pode recebê-la nem abençoá-la de nenhuma outra forma. Foi o estado de ruína dos pecadores perdidos e rebeldes que Ele veio do céu para aliviar, e somente com tais Ele pode agora tratar, do outro lado das fronteiras entre a Judeia, lugar do santuário, e a impura Samaria.
Mas esta mulher daquele lugar impuro, esta pródiga na terra longínqua, ainda não se conhece a si mesma. Ele, portanto, Se propõe a ensiná-la a “despertá-la para sua condição”. E com que graça Ele faz isso! Ele faria tudo para poupá-la dos sentimentos, mas não pode poupá-la do pecado.
Certamente podemos dizer que, se a jornada que o filho pródigo empreendeu em direção ao lar, em Lucas 15, foi bela, por estar em devida consistência com sua condição de pecador convicto, bela é esta jornada que o Pai empreende atrás do filho pródigo na graça atenciosa e no amor paciente que lhe conferem caráter do princípio ao fim. Bendito é ver, em uma dessas jornadas, o fruto da obra oculta e eficaz do Espírito na alma de um pecador, colocando-o no caminho de volta para Deus no único caráter em que Deus poderia recebê-lo; e bendito é ver, na outra dessas jornadas, aquela graça que atua como por si mesma e em soberania, buscando e salvando o que se havia perdido, no exercício do amor mais paciente e hábil, que foi terno até onde a fidelidade admitia.
E aqui, permitam-me acrescentar, pois é feliz e edificante poder fazê-lo, que essas duas jornadas, a do Salvador em busca, e a do pecador que retorna, terminam no mesmo lugar, embora tenham sido tomadas como se viessem de pontos opostos, uma para, a outra de, uma terra distante. Ambas terminam na alegria da casa do Pai – estando, no entanto, esta excelência distinta em João 4 sobre Lucas 15, que é a alegria da família que é vista em Lucas 15, mas a alegria do Pai (do Senhor Jesus, a Testemunha do Pai neste mundo de pecadores, como notamos antes, e como Ele mesmo nos diz) que é vista em João 4. “Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis” são palavras que expressam a alegria do seio divino por alguém que estava morto, e reviveu, que tinha-se perdido, mas agora foi encontrado; e que, como o próprio Senhor sugere, estava muito além da medida tanto dos discípulos aqui, como dos anjos no céu.
Mas há uma característica que, acima de todas as outras, confere à jornada do Pai uma excelência distinta acima daquela do filho pródigo, e é esta: Ele teve que preparar o filho pródigo para Sua recepção, enquanto, ao contrário, o filho pródigo O encontra totalmente preparado para a sua recepção.
Isto vai além.
O filho pródigo, ao final de sua jornada em Lucas 15, encontra o Pai completamente preparado para recebê-lo. O coração e a casa tinham um acolhimento para ele. Todas as suas expectativas foram superadas. Seus melhores pensamentos não haviam medido o amor que o encontrou. Por causa de seu retorno, a casa foi imediatamente preparada para se encher de uma alegria como nunca antes havia experimentado ou celebrado.
O Pai, porém, em João 4, vivencia algo muito diferente disso. Como vimos, o Senhor Jesus precisa preparar a pobre pródiga samaritana para Sua recepção. Ele levou Consigo a bênção para uma terra longínqua, mas lá descobre que Ele precisa preparar o coração e a consciência de Sua eleita para recebê-la, lutando com aquela convicção que a fazia perceber que não poderia viver sem a bênção; e Ele precisa, na prolongada e incansável paciência da graça, assentar-se diante de um material áspero e relutante e moldá-lo em um vaso adequado ao tesouro que Ele estava trazendo.
Certamente, posso dizer novamente, isso vai além; e se a jornada que o pecador empreende sob a vivificação e direção do Espírito é bela, esta jornada que o Salvador empreende, nas riquezas de Sua graça e nos serviços de Seu amor, é ainda mais bela – ou se preferirmos deixá-las incomparáveis, podemos deixá-las repousar juntas sob nossos olhos e diante de nosso coração, mais atraentes do que as jornadas que as glórias estreladas do céu realizam em suas órbitas designadas e misteriosas.
Mas como a graça é magnificada! Tudo é graça – a casa do Pai pronta para receber o filho pródigo em seu retorno, e o serviço do Pai (como sabemos pelo Filho e pelo Espírito) preparando o filho pródigo para a casa!
Acaso recebemos graça em cada uma dessas maneiras, pergunto eu? Alguns podem dizer: “Sei que sou devedor da graça pelo entendimento de retornar a Deus”, e isso me ensina a me reconhecer como pecador, capacitando-me “a cair em mim mesmo”, como o filho pródigo. Será, então, eu digo, mais duvidoso que a Sua casa esteja pronta para recebê-lo com boas-vindas, do que que Ele mesmo (por Seu Filho, Sua Palavra e Seu Espírito) estivesse pronto para lhe dar um entendimento para buscá-la? Certamente podemos dizer que a graça que nos vivificou na terra longínqua de nosso exílio voluntário e nos fez “cair em nós mesmos” e aprender nossa necessidade d’Ele, a graça daquela obra eficaz e oculta do Espírito, aplicando a verdade e Jesus à nossa consciência, teve um custo mais rico e um caráter mais profundo e maravilhoso do que a graça que nos abrirá o lar da glória para nos receber para sempre. Se O conhecemos como na terra longínqua para onde nossos pecados O haviam trazido, podemos certamente confiar que Ele nos conhecerá em Sua própria casa, para onde Sua graça há de nos levar.
E há ainda outra coisa fornecida por João 4 a Lucas 15. Já notei que em Lucas testemunhamos a alegria da família depois que o filho pródigo realmente retornou para casa, e a família foi convocada e reunida. Em João, lemos a alegria mais plena e profunda do Pai enquanto Ele ainda estava completamente sozinho, quando Ele apresentou o perdido e o achado à família.
Mas não somente isso; a alegria do filho pródigo em João 4 tem um caráter diferente do que em Lucas 15. Neste último, é a satisfação silenciosa do coração, na simples, agradecida e crente aceitação da bênção; é o filho que retornou assentando à festa enquanto a família se alegra; no primeiro, é a alegria ativa de uma alma perfeitamente livre, buscando, com parte da graça que recebeu, tornar outros tão felizes quanto ela mesma. E isso, talvez, também vai além; ou, digo novamente, se não quisermos compará-las, que a satisfação silenciosa do filho pródigo e a alegria ativa da samaritana, juntas, nos falem da plenitude da bem-aventurança que Deus prepara para nós.
Tudo o que o filho pródigo trouxe de volta consigo, quando se preparou para a longa jornada, foi o seu pecado, a confissão dele e a ruína que havia causado para si; e tudo o que a samaritana era enquanto Jesus estava assentado com ela, era uma pecadora convicta. Mas isso bastava. O Pai estava ao pescoço de Seu filho convicto, embora ainda em farrapos e miséria; e Jesus estava revelando Sua glória à mulher samaritana, enquanto ainda estava assentado em graça sobre uma pedra com ela.
Como essas duas preciosas Escrituras se combinam e, ainda assim, se completam! As duas jornadas, com suas fontes e seus resultados, nos levam às glórias e aos caminhos de Deus no evangelho de Sua graça e nossa salvação. “É bastante fácil para nós”, como alguém disse anos atrás; “mas custou-Lhe tudo”. Fato maravilhoso e poderoso! O rico se fez pobre para que os pobres pudessem ser ricos; Aquele que era cheio Se esvaziou para que o vazio pudesse ser enchido; Aquele que era o Altíssimo Se curvou para que pudéssemos ser exaltados; Aquele que era a vida eterna estava sob o domínio da morte, para que pecadores mortos pudessem viver para sempre!
