Origem: Livro: Breves Meditações
Justificação pela Fé
Na dispensação de Sua graça, Deus provê ao pecador uma resposta às Suas próprias exigências que tem sobre ele. Ele lhe dá segurança no dia do julgamento da justiça. Pois Ele julga o pecado. Certamente, Ele não pode ignorá-lo. A justiça exige o seu julgamento. Mas Ele, em graça, provê ao pecador uma resposta e um refúgio: e torna-se dever e obediência do pecador usar esse refúgio – e esse uso da provisão de Deus é fé.
O Senhor, dessa forma, deu a Noé uma resposta, antes do dilúvio, ao Seu próprio juízo justo e determinado que viria sobre o mundo. “Faze para ti uma arca de madeira de gofer”, disse-lhe Deus. Noé assim o fez, crendo na palavra tanto de juízo quanto de libertação, e estava seguro.
Ele providenciou a salvação de Israel no Egito, para outro dia de juízo. Israel usou essa provisão, colocando o sangue na verga da porta, e foi protegido da espada do anjo.
Da mesma forma, Ele fez provisão para Raabe no dia do juízo de Canaã, assim como fez provisão para Israel no dia do juízo do Egito; e ela escapou, simplesmente porque recebeu a palavra pela fé e usou as provisões de Deus, pendurando o cordão escarlate na janela.
E assim continua sendo até hoje.
Há duas coisas agora sob juízo, assim como outrora o mundo antediluviano esteve sob juízo, depois o Egito e, por fim, Canaã. O homem e o mundo estão ambos marcados para o juízo. Mas Deus providenciou um refúgio para o homem pecador. O evangelho é o que o revela. O sacrifício do Seu próprio Cordeiro é uma resposta a todas as Suas exigências em justiça contra o pecador, e o próprio Deus deu esse Cordeiro e aceitou esse sacrifício. A fé aceita essa dádiva. Pela fé, o pecador recorre a essa resposta e é salvo.
Que método simples e maravilhoso! Que riquezas de graça! Nada, como vemos, entra no caminho de Deus pela graça, exceto a fé. É, portanto, a obediência da fé que agora é exigida (Romanos 1:5 – ARA). E quando alguns perguntaram ao Senhor: “Que faremos para executarmos as obras de Deus?”, Ele respondeu: “A obra de Deus é esta: Que creiais n’Aquele que Ele enviou” (João 6).
A excelência deste princípio de fé, sua operação maravilhosa e sua elevada estima diante de Deus podem ser demonstradas pelo testemunho da Escritura do princípio ao fim. Tudo cede diante dela. Até mesmo um estado de inocência no princípio, teve que ceder lugar a um estado de fé (Gn 3). O juízo é enfrentado e evitado por ele, como vimos. A lei é colocada de lado para deixá-lo entrar. E o próprio amor não será aceito por Deus em seu lugar. A fé é estabelecida como o elo entre Deus e nós.
Mas sendo assim, estando isso firme e estabelecido, é uma bênção sermos ensinados, como somos em Romanos 1 e 5, sobre as glórias morais que devem ser descobertas nesta preciosa doutrina de fé. De maneira agradecida, de fato, devemos ponderar tal instrução divina.
Esta doutrina, como ali vemos e conhecemos, expõe e humilha o homem completamente. Ela pressupõe que estamos mortos em pecados, deixados incuravelmente, irremediavelmente arruinados por nós mesmos e sob a lei. Mas, por outro lado, ela também nos assegura e nos dignifica. Dá ao pecador crente o direito claro e seguro de retornar a Deus; e, quando retorna, fala-lhe das dignidades e regozijos, das honras e dos privilégios que o aguardam naquele lugar rico e bendito.
E, além disso, é perfeita tanto naquilo que nos nega, como naquilo que nos confere. Exclui de nós a “vangloria”, enquanto nos torna “justiça de Deus” e “filhos”, e nos dá paz, graça e gozo, interesse eterno na morte de Cristo passada, na Sua vida presente e na Sua glória vindoura, da qual agora nos dá a esperança segura, com a posse do amor de Deus em sua plenitude incomensurável.
Essas coisas são o que esta doutrina de fé faz por nós – como aprendemos nestes capítulos maravilhosos, Romanos 1 a 5. E o que pode ser mais bendito do que este princípio de fé, e a justificação por ele, quando assegura ao pecador tais condições e resultados como estes?
Quanto a Deus, é isso que O manifesta e, assim, O glorifica além de tudo. Esse maravilhoso mistério, que é chamado evangelho, as boas novas de Deus, apresenta Deus a toda a Sua criação nas mais elevadas formas de glória moral. Manifesta-O na plenitude da graça e da justiça combinadas, como Justo e, ainda assim, um Justificador. Apresenta-O como o Fazedor de toda a obra e o Herdeiro de toda a glória. Também O coloca igualmente diante de todos os homens, Judeus e gentios. “É porventura Deus somente dos Judeus?”, o evangelho pergunta; e ele responde: “não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente”.
Estas são consequências benditas desta doutrina ou princípio de fé, no que diz respeito a Deus.
E, além disso, como estes capítulos também nos permitem aprender, ela estabelece a lei. Este é outro belo fruto e consequência da doutrina de fé. Pois o evangelho (e é com o evangelho que a fé tem a ver) manifesta a lei como magnificada e honrosa, havendo a pena máxima da sua transgressão sido suportada por Aquele a Quem o evangelho prega a nós.
Certamente podemos então dizer: Bem pode aquela grande e divina Epístola começar dizendo que é a obediência da fé que agora é exigida de todos os homens por Deus, para a glória de Seu próprio nome.
Na Epístola do mesmo apóstolo aos Gálatas, ele nos faz perceber, como se estivesse em sua própria pessoa, que a “justificação pela fé”, que ele ali defende, não é um mero dogma ou proposição que pode exercitar o intelecto ou fornecer um tema para a mente discorrer, como nas escolas. Ele nos deixa saber que ele mesmo provou que se trata de uma verdade cheia de vida e poder.
E há esta diferença, entre outras, entre estas duas Epístolas. Em Romanos, temos esta doutrina proposta em sua glória moral, insistida, ensinada e provada, com suas implicações para a glória de Deus e para a condição do pecador crente – como vimos. Em Gálatas, o apóstolo se mostra a nós em conexão com esta doutrina. Ele a vive, em vez de ensiná-la ou prová-la – embora também o faça. Ele a defende contra os contradizentes, e não simplesmente a propõe aos pecadores – e, em fervor de espírito, ele é guiado por Deus para nos dizer como esta doutrina, este princípio de fé, ilustrou sua virtude em sua própria pessoa, e também em relacionamentos variados, como para com as criaturas ao seu redor, como para com os contradizentes, como na própria presença de Deus e como em conexão com este presente século (mundo) mau.
Quanto à criatura, aquela possessão bendita, pessoal e imediata de Deus, que esta doutrina ou princípio de fé lhe havia concedido, ela tornou Paulo independente. Ele podia ir para a Arábia. Podia virar as costas para Jerusalém e tudo o que ali havia para acolhê-lo e revigorá-lo, e contemplar a solitude do deserto (cap. 1).
Quanto aos opositores, isso o tornou tão ousado quanto um leão, não se intimidando nem mesmo pela presença de um Pedro, que, naquele momento, mais do que qualquer outro homem, tinha todos os títulos na carne (cap. 2).
Como na presença de Deus, isso o tornou livre e feliz, respirando ali o espírito de adoção e conhecendo a liberdade de alguém aceito como no Amado (cap. 4).
Como em conexão com este presente século mau, isso lhe deu vitória sobre ele. Ele foi crucificado para ele, e este para ele (cap. 6).
Estas são algumas das reflexões da doutrina da justiça divina, ou justificação pela fé, na alma deste querido apóstolo. Não era a mera possessão intelectual de um dogma que poderia fazer essas coisas pela alma. Esta doutrina implica a restauração a Deus, a restauração pessoal e imediata. Adão, pelo pecado, O perdeu; o pecador, através de fé, O recupera. É a fonte da esperança e do amor – como ele nos diz nesta mesma Epístola (cap. 5:5-6). Não é uma mera proposição escolástica[15]. A justificação pela fé é a religião de um pecador em confiança pessoal e imediata em Deus.
[15] N. do T:. Escolástica ou filosofia escolástica é um método que concilia a fé cristã com um sistema de pensamento racional, especialmente o da filosofia grega. ↑
Nesta mesma Epístola, o apóstolo, sob o Espírito Santo, protege esta verdade contra todos os transgressores, sejam eles tão augustos e cheios de autoridade quanto você desejar; sejam, por assim dizer, os principais na criação, como os anjos, os principais no ofício, como os apóstolos, ou os principais nos caminhos de Deus, como a lei (cap. 1:8; 2:11-21; 4:19-31). Os anjos devem ser anátemas se contestarem esta verdade. Pedro será confrontado na cara, sem poupá-lo, se ele a obscurecer. A lei, que foi a própria voz de Deus em seu tempo e lugar, deve se silenciar quando esta verdade se proclama a si mesma.
Esta verdade, o evangelho de Deus, traz-me uma mensagem sobre mim mesmo, eu acrescentaria aqui, bem como sobre Deus. Fala-me tanto do pecado quanto da salvação. Diz-me que o mundo inteiro está em estado de revolta e rebelião, e que eu mesmo sou um pecador que se destruíra a si mesmo. Se eu receber uma mensagem como essa, a convicção e as afeições que acompanham essa convicção serão despertadas em mim. Tão naturalmente a alma se ocupará com elas, quanto com a paz, a segurança e o gozo que a mensagem da salvação inspirará. “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo”, foi dito a um pecador assustado. A samaritana foi convencida pelo Senhor como pecadora, antes que Ele Se revelasse a ela como Salvador. O evangelho fala de juízo e de paz – mas coloca o juízo à porta de todos, e a paz na consciência daqueles que são despertados.
A justificação pela fé nunca é tratada como uma mera proposição escolástica. De fato, não é. É a religião da confiança pessoal e imediata de um pecador convicto em Deus, e isso também desfrutado sob um título que o próprio Deus, por assim dizer, escreveu para ele. Podemos ver a riqueza daquele lugar, para o qual (de acordo com esta mesma Epístola aos Gálatas) ela traz o pecador. Ela o traz para a família de Deus, tornando-o um filho. Ela o traz para a esperança ou perspectiva de glória como sua herança. E ali, nesses lugares ricos, ela o ensina a respirar o ar da liberdade e do amor (Gálatas 3:26; 5:1, 5-6).
A grandeza moral deste dogma (pois podemos chamá-lo assim) é, em todos os sentidos, maravilhosa. A justificação pela fé está infinitamente distante de simplesmente nos deixar liberados do julgamento ou da maldição. Tampouco é o ser trazido de volta a Deus em meio à dúvida e ao medo. É um retorno pleno a Ele, um retorno completo, uma restauração a algo mais do que o belo estado que Adão perdeu pela transgressão, um estado de tranquilidade e segurança insuspeita. Não seria redenção se não nos desse o estado, em todas as suas ricas qualidades, que perdemos pelo pecado. Ela nos dá mais do que isso, eu sei. Mas deve nos dar isso, pelo menos, para ser o que é: redenção. Isso já foi observado por outros há muito tempo; e deve ser assim.
A fé coloca a alma perto de Deus e com Ele. Ela faz do próprio Deus a grande circunstância em nossa condição. Abandonar a religião de fé é afastar-se de Deus. As coisas intermediárias desaparecem, tudo o que interveio foi descartado, quando a fé entra. A mesma Epístola ensina essas coisas (Gálatas 1:6; 3:25; 4:9).
E mais. Ao tratar deste grande dogma, o apóstolo nos mostra como ele assegura as reivindicações de santidade.
Ele ensina que a redenção de debaixo da lei se dá somente pela morte de Cristo; e que não temos direito algum de nos libertar daquele velho marido, exceto pela união com Aquele que ressuscitou dentre os mortos, o novo Marido; e por essa união, o fruto é produzido para Deus. Esta é a religião de fé e, dessa maneira, é a fonte e a segurança da santidade (Rm 7).
Assim também, em Gálatas. O mesmo apóstolo ensina que a pregação da fé é o recebimento do Espírito; e andar no Espírito é não satisfazer as concupiscências da carne (caps. 3:1-5; 5:16-18).
