Origem: Livro: A EPÍSTOLA DE PAULO AOS ROMANOS
Libertação do Poder do Pecado – Cap. 5:12-8:17
Nesta próxima subdivisão da epístola, Paulo revela o segundo aspecto da libertação anunciado no evangelho – a libertação do poder do pecado. Isso tem a ver com a maneira de Deus libertar o crente das atividades da sua antiga natureza pecaminosa (“a carne” – Rm 7:5), de modo que ele seja capaz de viver uma vida santa para a glória de Deus. Esta subdivisão, portanto, poderia ser chamada de “O Caminho de Deus de Santificação Prática”, porque apresenta o caminho de Deus e o poder de Deus para a vida santa (Veja capítulo 6:19, 22 “santificação”. Os capítulos 3:21-5:11 e os capítulos 5:12-8:17 podem ser diferenciados como:
- JUSTIFICAÇÃO – torna uma pessoa judicialmente justa.
- SANTIFICAÇÃO – torna uma pessoa justa na prática.
A Diferença Entre Pecados e Pecado
Até este ponto da epístola, Paulo tem falado sobre “pecados” e a libertação de Deus do justo julgamento deles. Mas agora ele muda para falar de “pecado” e da libertação de Deus de seu poder. (H. Smith aponta que a palavra “pecado” aparece apenas duas vezes nos capítulos 1-5:11, mas nesta próxima seção da epístola ocorre não menos do que 34 vezes!) Conhecer a diferença entre esses dois termos é essencial para entender este aspecto da libertação.
- “Pecados” (plural) referem-se às más ações que fizemos. O remédio de Deus para os pecados cometidos está na morte de Cristo por nós. Isto é, pela fé no sangue de Cristo, pelo qual somos redimidos (Rm 3:24; Ef 1:7), perdoados (Rm 4:7; Hb 9:22), justificados (Rm 5:9) e reconciliados (Rm 5:11; Cl 1:20-22). (Nota: o sangue de Cristo é mencionado em cada uma dessas referências.)
- “Pecado” (singular) refere-se à natureza caída no homem (a carne). O remédio de Deus para a atividade do pecado na vida de um crente está em nossa morte com Cristo. Isto é, a aplicação da morte de Cristo pela fé, pela qual somos livrados de estarmos conectados ao pecado (Rm 6:7) e livrados do poder da atividade do pecado pelo Espírito de Deus (Rm 8:2).
Portanto, “pecados” são ações más e “pecado” é a natureza má. O primeiro é o que fizemos e o segundo é o que somos. Pode-se dizer que “pecados” são manifestações do “pecado”, ou que “pecados” são o produto do “pecado”, ou que “pecados” são frutos de uma árvore má e “pecado” é a raiz dessa árvore má. Lembremo-nos também de que “pecado” é mais do que apenas a velha natureza pecaminosa; é essa natureza má com uma vontade em si mesma, determinada a satisfazer suas concupiscências. Outra diferença entre esses dois termos é que “pecados” podem ser “perdoados” pela graça de Deus (cap. 4:7), mas “pecado” não é perdoado, mas sim, é “condenado” sob o julgamento de Deus (cap. 8:3).
Ao declarar essas distinções entre pecados e pecado, tenhamos em mente que o assunto nesta seção da epístola não é a libertação da presença do pecado em nós, mas a libertação do poder do pecado sobre nós. A libertação da presença do pecado em nós só acontecerá se morrermos ou se o Senhor vier – o Arrebatamento. A grande coisa que aprendemos aqui – que deve vir como boa notícia para todo crente que luta contra a natureza pecaminosa – é que a salvação de Deus anunciada no evangelho não apenas promete libertação do julgamento de nossos pecados, mas também libertação do poder do pecado trabalhando em nossas vidas.
“Mediante”, “Com” e “Em” Cristo
À medida que avançamos nessa nova subdivisão, há outra diferença interessante a destacar. Nos capítulos 3:21-5:11, nos é dito o que temos “mediante” (JND) (às vezes traduzido como “por” na KJV) Cristo (cap. 5:1, 2, 9, 10, 11). Enquanto nos capítulos 5:12-8:17, Paulo nos diz o que temos “com” e “em” Cristo.
A Necessidade da Libertação do Pecado
Não muito tempo depois de ser salvo, o crente descobrirá sua natureza caída pecadora impondo-se em sua vida de alguma forma pecaminosa. Assim, ele descobrirá que ainda tem a mesma natureza carnal que tinha antes de crer no Senhor Jesus Cristo. Muitas vezes, será um choque considerável quando um novo convertido perceber que ainda é capaz de cometer todos os tipos de mal. No entanto, ele deve aprender que ser perdoado, justificado e reconciliado não significa que os Cristãos não podem mais pecar. Ao contrário do que possa ter pensado, sua natureza caída não foi removida ou melhorada por sua conversão a Deus. Ele deve aprender que, se deixar a rédea solta em sua vida, poderá cometer toda sorte de pecado imaginável.
Quando Deus nos salvou, Ele poderia nos ter glorificado imediatamente e, assim, teríamos sido libertados da natureza caída pecaminosa e nunca mais pecaríamos novamente. Ele também poderia nos ter levado direto para o céu no momento em que cremos, e seríamos poupados de muitas experiências dolorosas e humilhantes com a carne. No entanto, a sabedoria divina escolheu deixar-nos neste mundo para percorrermos o caminho de fé com a natureza caída pecaminosa em nós, porém com um meio de torná-la inativa.
Favor e Liberdade
Não é intenção de Deus deixar neste mundo aqueles a quem perdoou, justificou e reconciliou, sob o domínio de suas naturezas caídas pecaminosas, sem poder para andar retamente e em liberdade diante d’Ele. O evangelho não oferece apenas uma isenção da pena do pecado, e então deixa o crente continuar neste mundo sob o poder do pecado. Nesta próxima seção da epístola, Paulo mostra que Deus providenciou para o crente um meio de total libertação da operação da natureza pecaminosa interior, capacitando-o assim a viver uma vida santa para a glória de Deus. Isto está incluído nas boas-novas do evangelho. Portanto, como mencionado anteriormente, esta subdivisão nos apresenta o caminho de Deus para a santificação prática.
Nos capítulos 3:21–5:11, vimos o crente colocado diante de Deus em uma posição de “favor” (cap. 5:2 – JND); agora nos capítulos 5:12-8:39, nos é revelado o caminho de Deus de “libertação” do pecado (cap. 6:18). Uma coisa é estar diante de Deus em todo o favor da nova posição na qual a justificação nos coloca, e outra bem diferente é caminhar diante dos homens em libertação do pecado por meio do poder do Espírito Santo.
A verdade revelada nestas duas seções da epístola leva o crente desde a depravação do pecado à salvação de Deus – mas de diferentes perspectivas. Não é que o crente seja salvo duas vezes; a verdade desenvolvida aqui é uma. É tratada na epístola consecutivamente porque essas coisas, que dizem respeito à experiência, são geralmente aprendidas separadamente. Além disso, se Paulo as tomasse ao mesmo tempo, o leitor provavelmente ficaria confuso; o caminho de Deus é repassar isso duas vezes. W. H. Westcott declarou: “Estas duas seções da epístola, propriamente falando, correm juntas como linhas paralelas; embora o Espírito de Deus tome cada uma separadamente. A segunda seção é sempre necessária para um desfrutar contínuo da primeira. Ainda assim, elas não são frequentemente aprendidas de uma vez e ao mesmo tempo” (A Letter to Rome, pág. 10).
Perfeição sem Pecado
Alguns entenderam mal este aspecto da libertação e imaginaram que Paulo estivesse ensinando que um crente pode alcançar um estado de perfeição sem pecado enquanto estiver aqui na Terra. As Escrituras definitivamente ensinam que a perfeição sem pecado será a porção de todo Cristão, mas isso não ocorrerá até a vinda do Senhor (o Arrebatamento). Naquele momento, a natureza caída pecaminosa será erradicada e “isto que é mortal se revestirá da imortalidade” (1 Co 15:54). Portanto, vamos entender que nenhum crente poderá ter a libertação da presença do pecado, enquanto estivermos na Terra, mas a libertação do poder do pecado, todos podemos ter por meio da aplicação dos princípios que Paulo está prestes a revelar.
Um Breve Resumo da Libertação do Poder do Pecado Apresentado Nesta Subdivisão
- Capítulos 5:12-7:6 apresentam a doutrina da libertação do pecado.
- Capítulo 7:7-25 – UM PARÊNTESE – ilustrando o processo experimental pelo qual uma pessoa passa ao aprender a aplicar a doutrina da libertação.
- Capítulo 8:1-17 apresenta os resultados adequados que fluem da aplicação por fé dos princípios da libertação.
A DOUTRINA DA LIBERTAÇÃO DO PECADO – Cap. 5:12-7:6
A doutrina da libertação do pecado envolve: entender algumas coisas que foram realizadas na morte de Cristo, considerar essas coisas em fé e entregar-nos a Deus na esfera da vida, onde Cristo vive para Deus, pela qual somos capacitados a viver uma vida santificada no poder do Espírito Santo.
A Origem da Natureza Pecaminosa
Cap. 5:12 – Paulo começa sua dissertação sobre a libertação do pecado voltando ao começo e explicando como que inicialmente a raça humana se tornou assolada pela natureza caída pecaminosa (a carne). Ele diz: “Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram”. Dessa forma Paulo traça a origem da natureza pecaminosa da raça humana, desde a transgressão de Adão no jardim do Éden. Ele e sua esposa (Eva) foram criados sem pecado, mas com livre arbítrio. Infelizmente, eles exerceram suas vontades e escolheram desobedecer a Deus, e assim, tornaram-se pecadores possuindo naturezas caídas pecaminosas. Assim, “o pecado (a natureza) entrou no mundo” naquele momento.
Por que Deus Permitiu que o Pecado Entrasse no Mundo?
As pessoas costumam perguntar: “Sendo Deus Todo-Poderoso e Todo-Amor, por que permitiu que o pecado entrasse no mundo?” É verdade que Ele poderia ter interferido e impedido Adão e Eva de pecarem, mas Deus sabia que Ele receberia mais glória e que os crentes receberiam mais bênçãos (por meio da morte e ressurreição de Cristo) do que se o pecado nunca tivesse entrado no mundo. Nós (crentes) estamos em uma posição supremamente mais abençoada em Cristo do que poderíamos estar em uma raça sob Adão, que não tivesse caído. Além disso, há certos aspectos e características das Pessoas da Divindade que não conheceríamos se o pecado não houvesse entrado no mundo. Por exemplo, não conheceríamos Deus como “o Deus de toda a graça” (1 Pe 5:10). Se o pecado não tivesse entrado, a graça não teria abundado sobre o pecado (Rm 5:20). Nem nós conheceríamos a Deus como “o Deus da minha misericórdia” porque em um estado sem pecado nunca faríamos qualquer coisa errada que demandasse a Sua misericórdia (Sl 59:17). Além disso, não O conheceríamos como “o Deus de toda a consolação”, porque nunca estaríamos em uma situação de doença, tristeza ou sofrimento, onde precisaríamos de Seus ternos confortos (2 Co 1:3-4). Provavelmente não teremos uma resposta definitiva a respeito do por que Deus permitiu que o pecado entrasse no mundo até chegarmos ao céu. Enquanto esperamos por esse dia, a fé percebe “quão inescrutáveis [são] os Seus caminhos” (Rm 11:33) e aceita que “o caminho de Deus é perfeito” (Sl 18:30). Isso nos dá a confiança para deixar estas perguntas difíceis em Suas mãos, sabendo que “o Juiz de toda a Terra” nunca faria nada além do que é “justo” (Gn 18:25).
Quem Pecou Primeiro?
Olhando para o registro da queda em Gênesis 3, concluiríamos que foi a mulher que trouxe o pecado ao mundo, mas Paulo diz aqui que foi pelo “homem” (cap. 5:12). Isso mostra que ele não poderia estar falando do que aconteceu cronologicamente. Claramente Eva pecou antes de Adão, e Satanás e seus anjos pecaram antes dela. (Este último ponto pode ser visto no fato de que Satanás já estava no jardim mentindo e enganando Eva antes que ela tivesse pecado.) É claro, portanto, que Paulo estava falando de Adão em seu papel como cabeça representante da raça humana. Deus o colocou no jardim na posição de cabeça da criação (Gn 2:15-17), e assim, ele foi considerado responsável pelo pecado entrar no mundo. (W. Reid disse: “A palavra ‘cabeça’ não é usada no capítulo [Rm 5], mas a verdade dela está ali” – The Bible Herald).
A natureza de Adão foi corrompida por sua queda e isso foi transmitido a cada geração de sua posteridade (Sl 51:5). E não apenas isso, mas a consequência da natureza pecaminosa estar na criação também foi passada para sua posteridade – a saber, a morte. Paulo diz: “…e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens”. (Os efeitos do pecado e da morte também foram passados para toda a criação inferior – os animais e as plantas etc. – mas esse não é seu assunto aqui. Veja o capítulo 8:20-22.)
Cabeça Federal
Paulo acrescenta: “por isso que todos pecaram”. A margem na versão King James diz: “Em quem todos pecaram”. Se esta leitura alternativa puder ser usada, isso mostra que Paulo não estava enfatizando que todos os homens são culpados por pessoalmente terem pecado (o que certamente é verdade – cap. 3:23), mas que a desobediência de Adão produziu toda uma raça de pecadores (v. 19). Quando ele caiu, se tornou a cabeça de uma raça caída (Gn 5:3). Esta frase (“todos pecaram”) está no tempo verbal aoristo em grego, indicando que a desobediência de Adão teve um efeito de uma vez por todas sobre a raça que se desenvolveria sob ele. Isso mostra novamente que Paulo estava vendo Adão como a cabeça federal[10] da raça humana. Subsequentemente, os homens provaram que eles têm a mesma natureza de seu “primeiro pai” porque todos pecaram como ele (Is 43:27). J. N. Darby disse: “É pela desobediência de um homem que muitos (todos os homens) foram feitos pecadores, e não pelos seus próprios pecados. Pecados, cada um tem os seus próprios: aqui é um estado de pecado comum a todos” (Synopsis of the Books of the Bible, on Romans 5:12). Assim, a presença do pecado (a natureza caída) e a morte na raça humana não são o resultado dos pecados pessoais dos homens, mas sim o resultado da ação de Adão, a cabeça federal da raça humana.
[10]   N. do T.: Significa aquele que age em prol de todos que estão sob seu domínio. ↑
Cabeça federal tem a ver com uma pessoa em um lugar responsável como a cabeça, agindo por e em nome de quem está subordinado a ela. Poderia ser como a cabeça de um Estado, a cabeça de uma família, a cabeça de uma corporação, etc. Por exemplo, quando o presidente de um país assina uma lei, como cabeça de Estado, ele age por todos os cidadãos daquele país, e é obrigatória a todos no país. A epístola aos Hebreus dá um exemplo da cabeça federal em uma família. O escritor fala de Abraão atuando nesse papel. Ele diz que Levi pagou dízimos a Melquisedeque pelos dízimos que Abraão deu a Melquisedeque, embora naquela época Levi ainda nem tivesse nascido na posteridade de Abraão – o que aconteceu cerca de 200 anos depois (Hb 7:9-10). Não obstante, diz-se que Levi “ainda… estava nos lombos de seu pai” quando Melquisedeque recebeu dízimos de Abraão, e assim, Abraão agiu por e em nome de Levi (e sua posteridade) como cabeça federal da família.
Duas Cabeças Federais
Em um parêntese (vs. 13-17), Paulo mostra que cabeça federal se aplica tanto a Adão quanto a Cristo. Cada um é a cabeça de uma raça de homens, e suas ações como tal tiveram um grande efeito sobre suas raças.
Cap. 5:13-14 – Paulo começa com Adão. Ele mostra que como cabeça da raça humana, Adão agiu para a raça (negativamente), e sua posteridade é vista como tendo agido com ele, mesmo que eles não existissem no momento de sua ação. Assim, quando Adão pecou, ele constituiu toda uma raça de pecadores (v. 19). Isso não significa que somos responsáveis pelo pecado de Adão, nem significa que somos responsáveis por termos a natureza pecaminosa.
Mesmo antes de a Lei ser dada, nos dias “desde Adão até Moisés” (cerca de 2.500 anos), quando os homens não tinham um comando direto de Deus, como Adão teve, “a morte reinou”. Os homens naqueles dias “não pecaram à semelhança da transgressão de Adão” quebrando um mandamento conhecido, ainda assim os efeitos do pecado foram sentidos por eles, na medida em que todos morreram – com exceção de Enoque (Hb 11:5). Adão recebeu um mandamento direto (verbal) de Deus (Gn 2:16-17), então sua desobediência foi uma evidente transgressão. Mas os homens naqueles primeiros dias (antes de a Lei ser dada) não tinham um código legal de Deus; seu único guia eram suas consciências. Já que não havia nenhum mandamento estabelecido por Deus durante aquele período, nenhuma transgressão poderia ser “imputada [levada em conta – ARA]” contra os pecadores. O argumento de Paulo aqui é que, independentemente de haver ou não uma lei estabelecida, o pecado estava no mundo, e isso pode ser provado pelo fato de que a morte manteve seu domínio sobre toda a raça durante esse tempo – todos morreram.
Paulo então diz que Adão é uma “figura daqu’Ele que havia de vir” (v.14b). Isso se refere a Cristo e mostra que Ele também é um Adão – isto é, a cabeça de uma raça de homens. De fato, como Cabeça de Sua raça, Cristo é chamado, “o último Adão” (1 Co 15:45). Ele é o “último” Adão porque nenhuma outra raça de homens virá de Deus. Esta nova raça sob Cristo é perfeita; não há necessidade, portanto, de Deus trazer outra raça de homens à existência depois desta. A raça de Cristo é completamente nova e de caráter diferente da raça de Adão, sendo uma “nova criação” de Deus (2 Co 5:17 – TB; Ap 3:14). As cabeças das duas raças são distinguidas nas Escrituras pelas frases técnicas: “em Adão” e “em Cristo” (1 Co 15:22).
Cristo Se tornou Cabeça de Sua raça da nova criação na ressurreição, e assim Ele é “o Primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8:29; Cl 1:18; Hb 1:6, 2:11-13; Ap 1:5). “Primogênito”, neste sentido, não se refere a ser o primeiro em ordem de nascimento de uma família, embora o Senhor fosse isso (Mt 1:25), mas em ser o primeiro em ordem e posição, tendo o lugar de preeminência entre os outros. “Primogênito” é usado em vários lugares nas Escrituras dessa maneira. (Compare Gn 25:25 com Êx 4:22; 1 Cr 2:13-15 com Sl 89:27; Gn 48:14 com Jr 31:9). Como o “Primogênito”, o Senhor “não Se envergonha” de chamar aqueles de Sua raça de Seus “irmãos”, porque são do mesma espécie que Ele e, portanto, são inteiramente adequados a Ele (Gn 1:25, 2:21-23; Hb 2:11).
Cap. 5:15 – Paulo argumenta: “Mas não será o ato de favor como a ofensa?” (JND). A resposta é “sim”. Quão certamente a “ofensa” de Adão, como cabeça federal, afetou toda a raça sob ele, o “ato de favor” de Cristo, como cabeça federal de Sua raça, afetou a todos sob Ele. Esta é uma grande semelhança entre Adão e Cristo; por um ato, cada um deixou uma marca em sua raça, embora ambas as raças não existissem no momento de suas ações. Isso é enfatizado quando Paulo usa duas vezes a palavra “muitos”. O primeiro “muitos” no versículo 15 refere-se a todos sob a cabeça de Adão que se tornaram sujeitos à morte como resultado da transgressão de Adão – toda a raça humana. O segundo “muitos” refere-se a todos os que fazem parte da nova raça da criação sob Cristo – apenas os crentes.
Contraste Entre a Ofensa e o Dom Gratuito
Cap. 5:15b – Paulo então contrasta a vasta diferença entre “a ofensa” de Adão e “o dom gratuito” de Cristo. Isso é enfatizado quando Paulo usa as palavras “Muito mais …”. A ofensa de Adão provocou um enorme efeito negativo na raça sob ele, ao passo que Cristo produziu um enorme efeito positivo em Sua raça. Paulo afirma “pela ofensa de um morreram muitos”, mas “o dom pela graça, que é de [por – JND] um só Homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos”. Esse contraste não poderia ser maior.
Contraste Entre Condenação e Justificação
Cap. 5:16 – Um segundo contraste que ele apresenta é que o ato de Adão trouxe “julgamento… para condenação” (ARA), enquanto o ato de Cristo veio de “muitas ofensas” dos pecadores que creem para “justificação [justiça judicial]”. Paulo usa a palavra “mas” para contrastar essas duas coisas.
Ao dizer “julgamento… para condenação”, ele mostra que essas duas coisas não são sinônimas: uma precede a outra. Seu uso da palavra “para” indica isso. W. Scott disse: “Julgamento e condenação não significam a mesma coisa. A condenação é futura e final. O julgamento precede a condenação”. Todos sob Adão estão atualmente sob a sentença de juízo, mas eles não estão sob condenação – pelo menos, não ainda. A condenação é uma coisa final e irrevogável que será a porção de todos os que passam deste mundo em seus pecados sem fé. Algumas versões da Bíblia traduzem “juízo” como “veredito” para indicar que é a sentença que foi proferida ao homem, não a execução real da punição. J. N. Darby afirma na nota de rodapé de sua tradução em Lucas 20:47 que a palavra “juízo” é “a sentença proferida sobre a coisa acusada de ser culpada, a acusação em si mesma como a base do julgamento; não o fato da condenação”. Ele também disse: “Todos nós sabemos, se é que sabemos alguma coisa, a diferença entre pecados passados (ou presentes) e a natureza má [pecado]; o fruto e a árvore. Se for perguntado, ‘Um homem é condenado por ambos?’ Eu devo dizer que ele está perdido, em vez de condenado” (Collected Writings, vol. 34, pág. 406).
É verdade que João 3:18 diz: “mas quem não crê já está condenado ; porquanto não crê no nome do Unigênito Filho de Deus”, mas é um erro de tradução nas versões King James e Almeida Corrigida e Almeida Fiel. Deveria ser “julgado” (ARA, TB e AIBB) em vez de condenado. “O mundo”, “a carne” e “o diabo” estão irrevogavelmente sob condenação (1 Co 11:32; Rm 8:3; 1 Tm 3:6), mas os homens que estão vivos hoje neste mundo não estão. Eles estão, no entanto, perdidos e sob a sentença de juízo, e se eles não se voltarem para Deus em fé, serão condenados a uma eternidade perdida. À luz dessa distinção doutrinal, podemos ver que o hino que diz: “Quando estávamos em condenação, esperando então o tormento do pecador…” (Little Flock nº 200) não está correto, porque a Escritura ensina que todos os que são sob a condenação são irrecuperáveis. A grande coisa com relação à “justificação” e estar “em Cristo” (nossa nova posição diante de Deus sob nossa nova Cabeça) é que agora é impossível entrarmos em “condenação” (cap. 8:1).
Contraste Entre o Reino do Pecado e da Morte e o Reino da Justiça em Vida
Cap. 5:17 – Um terceiro contraste que Paulo aponta é a diferença entre o reino do pecado e da morte e o reino da justiça em vida. Ele diz que em Adão “a morte reinou”, mas agora “muito mais os que recebem a abundância da graça” (isto é, os crentes) “o dom da justiça, reinarão em vida”. Novamente, ele usa as palavras “muito mais” para marcar essa distinção. Pela ofensa de Adão, desde então, o pecado e a morte reinaram sobre todos na raça de Adão. Por outro lado, como resultado do que Cristo consumou para aqueles a Ele conectados – os crentes – sob Sua cabeça, a justiça reina em “vida”. Esta é uma inversão surpreendente. Os membros da raça de Adão são vistos como escravos do pecado, morrendo sob esse senhor tirano (o pecado). Por outro lado, os membros da nova raça de Cristo são vistos como príncipes, reinando em vida e liberdade! Estes são dois estados opostos. É verdade que “a justiça reinará” em todos os sentidos no reino milenar de Cristo (Is 32:1), mas Paulo está se referindo à justiça reinando agora na vida do crente. Ele falará mais sobre isso no versículo 21.
Resumindo o conteúdo do parêntese, vemos que:
- O dom é abundante sobre a ofensa.
- A justificação é abundante sobre a condenação.
- A vida é abundante sobre a morte.
A Transferência Posicional do Crente – De Adão a Cristo
Cap. 5:18-19 – Tendo fechado o parêntese, nos versos finais do capítulo, Paulo mostra que os crentes foram transferidos da cabeça e da raça de Adão para a Cabeça e para a raça de Cristo. No parêntese ele faz contrastes, mas agora ele continua para fazer algumas comparações entre os dois usando as palavras “assim” ou “assim também”.
Ele diz, como “uma só ofensa” de Adão teve seu efeito “para todos os homens para condenação” (JND), “assim” também “um só” ato de “justiça” de Cristo foi estendido “para todos os homens para justificação de vida” (JND). Existem dois “todos” aqui. Ao contrário dos dois “muitos” no versículo 15, que estavam contrastando as duas raças de homens, esses dois “todos” referem-se às mesmas pessoas – toda a raça humana. O ato de Adão trouxe algo “para todos os homens” (JND) e assim também o ato de Cristo.
A versão King James e as em português infelizmente traduzem este versículo como se o dom gratuito da justiça tivesse chegado “sobre todos os homens”, e isso levou alguns a crerem que todos os homens serão salvos no final. (Rm 11:32 e 1 Co 15:22 também são usados para ensinar esse erro). Essa doutrina errônea é chamada de Universalismo. No entanto, essa frase deve ser traduzida como “para todos os homens” (JND), o que significa que ela foi disponibilizada a todos, mas não necessariamente alcançada por todos.
O “um só” ato de “justiça” de que Paulo fala aqui se refere a toda à vida e morte de Cristo como um ato contínuo de obediência. A. H. Rule disse, “Todos os atos, palavras e pensamentos do princípio ao fim foram obediência, de modo que toda a Sua vida e morte são vistas como um ato contínuo de obediência”. (Selected Ministry of A. H. Rule, vol. 1, pág. 138). Este ato de Cristo para com a raça humana é “para justificação de vida” àqueles que creem. Este termo (justificação de vida) refere-se aos crentes sendo colocados em uma nova posição diante de Deus, onde Ele não os vê mais como pecadores, mas também como tendo uma nova vida que não pecou e não pode pecar.
Ele diz: “pela desobediência de um só homem” muitos foram “feitos pecadores, assim [também] pela obediência de Um muitos serão feitos [constituídos] justos” (v. 19). Estudiosos nos dizem que “feitos [constituídos]” é um termo jurídico que transmite a ideia de alguém sendo nomeado. Portanto, ao serem “constituídos justos”, aqueles que creem não se tornam instantaneamente justos em um sentido prático, mas sim que Deus os designa como justos ao colocá-los na raça de Cristo sob a Cabeça de Cristo. (No grego, o verbo “constituído” é usado no tempo verbal futuro para indicar que inclui na raça todas as gerações futuras de crentes) Assim, pelo único ato de obediência de Cristo, os crentes foram transferidos da cabeça de Adão para a de Cristo. Isso significa que as bênçãos acima mencionadas relacionadas à nova raça de Cristo são concedidas aos crentes.
Cap. 5:20 – Paulo então explica que a Lei foi introduzida para revelar o pecado como sendo extremamente mau. Aqueles sob a Lei que falharam em guardá-la podem ser acusados justamente das transgressões ali definidas, porque tiveram mandamentos específicos de Deus na Lei declarando o que deviam e não deviam fazer. Como resultado, “eles, como Adão, transgrediram” (TB) uma conhecida ordem de Deus (Os 6:7). Além disso, tanto a “ofensa” quanto a “graça” abundaram em direções opostas – com a graça abundando “muito mais”. Assim, a entrada do pecado no mundo tornou-se uma oportunidade para Deus magnificar Sua graça, elevando-a acima de tudo.
Duas Esferas de Vida
Cap. 5:21 – Paulo conclui seu tratado sobre as duas cabeças declarando que, como resultado de seus dois atos, existem agora duas esferas correspondentes de vida nas quais os homens vivem: uma sob a cabeça de Adão, que pertence à morte, e a outra sob Jesus Cristo, nosso Senhor, que pertence à vida. Isso é visto no fato de que é dito que “pecado” e “graça” “reinam”, o que implica que ambos têm uma esfera de domínio na qual exercem sua autoridade. Paulo diz: “Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor”.
Como essas duas coisas reinam, elas podem, em certo sentido, ser vistas como reis ou senhores. “Pecado” reina em uma cena de “morte”. Essencialmente, esta é o mundo e tudo o que lhe pertence. Por outro lado, “graça” reina “para a vida eterna”. A vida eterna não é somente no crente (Jo 3:15-16, 36), mas é também uma esfera de vida na qual o crente deve viver em comunhão com o Pai e o Filho (Jo 17:3; 1 Tm 6:12, 19). Quanto a este último aspecto da vida eterna, o Sr. Darby disse que é “uma condição de coisas fora deste mundo”, na qual o crente vive pelo Espírito. Paulo está se referindo ao aspecto final da vida eterna aqui, quando formos levados para o céu. É um ambiente de vida que é perfeito e inteiramente livre do pecado – onde a luz, o amor e a comunhão com o Pai e o Filho é tudo e em todos. A boa notícia é que, em virtude do Espírito de Deus habitar em nós, temos a vida eterna agora e podemos viver nessa esfera de vida enquanto estivermos aqui na Terra (Jo 4:14; 1 Jo 5:11-13). Isso é essencial para o tema da libertação do pecado diante de nós nesta seção da epístola.
Em resumo, como crentes no Senhor Jesus Cristo, fomos transferidos posicionalmente da cabeça de Adão para a de Cristo. Assim, não somos mais vistos como sob aquela velha cabeça e conectados ao seu correspondente estado; somos agora parte da nova raça de homens sob Cristo (2 Co 5:17) e assim identificados com essa nova esfera de vida sob Sua Cabeça. Portanto, para o crente, o reino do pecado e da morte foi contraposto pelo reino da vida em Cristo.
A IDENTIFICAÇÃO DO CRENTE COM A MORTE DE CRISTO – Cap. 6
Como um meio de libertação prática do pecado, Paulo agora apresenta nos versículos 1-10 a verdade da nossa identificação com Cristo na morte. Esta é a verdade posicional – isto é, a verdade concernente à posição de todo Cristão diante de Deus. Em seguida, nos versículos 11-14, ele nos exorta a viver à luz dessa grande verdade, que resultará em libertação prática. Então, nos versículos 15-23, Paulo explica que um crente ainda pode ser escravizado pelo pecado se recusar a colocar em prática em sua vida a verdade que Paulo revela neste capítulo– mesmo que tenha sido posicionalmente libertado daquele mal que habita dentro dele. Assim, o capítulo 6 apresenta os princípios doutrinários necessários ao crente para a libertação prática do pecado.
Em Qual Esfera de Vida Devemos Viver?
Cap. 6:1 – O capítulo anterior terminou com duas cabeças sobre duas raças de homens com duas esferas de vida correspondentes nas quais os homens vivem. Com base nesses fatos, Paulo agora faz uma pergunta muito lógica: “Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde?” “Permaneceremos no pecado” é continuar a viver naquela esfera de coisas onde o antigo senhor (o pecado) domina sobre todos os que nela vivem. O raciocínio de Paulo é simples e lógico: se fomos separados de toda aquela ordem de coisas sob Adão, pela nossa conexão com Cristo sob Sua Cabeça, por que pensaríamos em viver nossa vida Cristã naquele estado de iniquidade do qual fomos separados?
Muitos pensaram que Paulo está se referindo aos Cristãos continuando nas ações de pecar (pecados). Mas não é isso o que ele está dizendo aqui. Se fosse esse o caso, teria dito: “Continuaremos a pecar?” Ou, como a NVI traduz, infelizmente, “Continuaremos pecando…?” É certamente verdade que não devemos continuar pecando depois que somos salvos – e Paulo procura ajudar o crente para esse fim neste capítulo – mas aqui ele não está falando de atos (pecados), mas sim do estado do pecado. R. Elliot comentou: “‘Continuaremos no pecado?’ não é o mesmo que se ele dissesse: ‘Continuaremos pecando?’ É algo mais amplo que isso. Significa que o pecado não é mais o princípio de nossa vida ou a descrição de nosso estado” (The Faith and the Flock, vol. 3, p. 340). Paulo irá abordar a questão dos Cristãos que escolhem pecar nos versículos 15-23, mas aqui no versículo 1, ele está fazendo uma pergunta óbvia sobre a razão de uma pessoa, que foi liberta do senhorio do pecado, e que continua naquela esfera onde o domínio do pecado é sentido na prática.
Estudando cuidadosamente o capítulo, vemos que há duas questões similares que abordam essas duas coisas diferentes:
- A pergunta no versículo 1 (“Permaneceremos no pecado?”) tem a ver com continuar naquela esfera de vida onde o domínio do pecado prevalece. Isso é abordado nos versículos 1-14.
- A pergunta no versículo 15 (“Pecaremos?”) Tem a ver com os atos de pecar – crentes continuando na prática de atos pecaminosos depois de terem sido salvos. Isso é abordado nos versículos 15-23.
Morto para o Pecado
Cap. 6:2 – Paulo repudia a ideia de continuar em pecado com a afirmação: “De modo nenhum [Longe esteja o pensamento – JND]”.Para mostrar quão incongruente é isso com nossa posição Cristã, ele pergunta: “Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” Ele aplica à nossa situação o princípio da cabeça federal (estabelecido no capítulo 5). Ou seja, o que Cristo realizou na morte pode ser aplicado a toda Sua raça. Sendo assim, uma vez que Cristo morreu para o pecado, Paulo fala de nós como estando “mortos para o pecado”.
Sete Maneiras com que a Morte é Usada nas Escrituras
Podemos nos perguntar de que maneira estamos “mortos”, porque certamente não poderia estar se referindo à morte física. Lembremo-nos, a morte é usada nas Escrituras pelo menos de sete maneiras diferentes. Em todos os casos, dá a ideia de separação, mas nunca de extinção – como pensam os homens. O contexto determinará qual aspecto está em vista. Eles são:
- Morte física – ter a alma e espírito separados do corpo (Tg 2:26).
- Morte espiritual – estar espiritualmente separado de Deus por não ter vida e natureza novas (Ef 2:1; Cl 2:13).
- Segunda morte – estar eternamente separado de Deus no lago de fogo (Ap 20:6, 14).
- Morte apóstata – estar separado de Deus pelo abandono da profissão da fé (Jd 12; Ap 8:9).
- Morte nacional – deixar de existir como nação na Terra (Is 26:19; Ez 37; Dn 12:2).
- Morte judicial – estar posicionalmente separado de toda a ordem de pecado sob a cabeça de Adão, pela morte de Cristo (Rm 6:2, 7:6; Cl 2:20, 3:3).
- Morte moral – estar separado da comunhão com Deus (Rm 8:13; 1 Tm 5: 6).
É solene pensar que o pecado é a causa de cada um desses aspectos da morte! Verdadeiramente, “o salário do pecado é a morte” – capítulo 6:23.
A Morte de Cristo para o Pecado e Nossa Identificação com Sua Morte
Podemos ver pela lista acima que o aspecto da morte em Romanos 6:2 tem a ver com o fato de o Cristão estar morto judicialmente, e isto, como resultado de nossa identificação com a morte de Cristo. É importante entender que o foco neste capítulo é sobre um aspecto da morte de Cristo diferente daquele que Paulo abordou na subdivisão anterior da epístola. Naquela parte inicial da epístola, foi a morte de Cristo “por” pecados (cap. 4:25, 5:6, 8, etc.); aqui é a morte de Cristo “para” o pecado (cap. 6:10). Sua morte “para” o pecado não é fazer expiação, mas romper Suas conexões com o pecado.
Pode ser uma surpresa pensar que Cristo tinha alguma conexão com o pecado, porque as Escrituras deixam claro que Ele não tinha a natureza caída pecaminosa. A Palavra de Deus protege cuidadosamente a glória de Sua Pessoa quanto a isso, afirmando que “n’Ele não há pecado” (1 Jo 3:5). De que maneira, então, o Senhor esteve conectado com o pecado? Na verdade, começou no momento em que Ele entrou nesta cena (um ambiente de pecado) em Seu nascimento. Ao viver aqui, entrou em contato imediato com o pecado e Sua natureza santa o repudiou. Assim, Ele sofreu corporalmente por estar no próprio vaso do pecado. Então, na cruz, o Senhor foi “feito pecado” (JND), e assim foi completamente identificado com ele como o Emissário do pecado – embora não tenha pessoalmente sido contaminado pelo pecado (2 Co 5:21; Hb 7:26). Ele permaneceu diante de Deus no lugar do pecado e levou a consequente condenação do julgamento do pecado (Rm 8:3). Mas, ao morrer, Ele saiu da esfera do pecado e assim Se separou dele – para nunca mais entrar em contato com ele. Cristo agora não está mais em contato com o pecado. J. A. Trench colocou desta forma: “Tendo vindo a este mundo, Ele ficou rodeado pelo pecado de todos os lados, e foi finalmente para a cruz para ser feito pecado por nós… agora Ele não tem mais nada a ver com o pecado para sempre”. (Truth For Believers, vol. 2, pág. 78).
Aplicando aos crentes o princípio da Cabeça federal de Cristo, temos o direito de nos ver como separados do pecado e não mais participantes de todo esse princípio de vida – mesmo que ainda tenhamos a natureza pecaminosa em nós. Podemos dizer que “morremos com Cristo” (v. 8) e, assim, estamos “mortos para o pecado” (v. 2). Nossa conexão com o pecado e com seu estado de iniquidade foi quebrada, pois não poderia haver uma ruptura mais completa com algo, do que aquela que morte produz.
Neste capítulo, Paulo personifica o pecado e o vê como um senhor maligno que domina e controla os homens (seus escravos) em seus pecados. Ele mostra que um senhor tem exigências sobre seu escravo, mas apenas enquanto o escravo viver. Uma vez que o escravo morre, seu senhor não tem mais poder sobre ele. Então, assim é conosco; nós morremos com Cristo, e o pecado agora não tem direito sobre nós.
Saber, Considerar e Apresentar
Cap. 6:3-14 – Paulo agora passa a ensinar os princípios envolvidos na verdade da libertação do pecado. Ele usa três palavras-chave para marcar o ensinamento do capítulo: saber, considerar e apresentar. Há certas coisas que precisamos “saber”, então devemos “considerar” sobre esses fatos, e então devemos nos “apresentar” à justiça como servos da justiça, ao nosso novo Senhor, e assim provar o poder da graça trabalhando em nossas vidas na libertação prática do pecado.
“Saber” o Significado do Nosso Batismo
Cap. 6:3 – O fato de Paulo nos dizer que precisamos saber certas coisas relacionadas à nossa libertação mostra que o conhecimento tem um lugar nisso. Há três coisas em particular que precisamos “saber”. Primeiramente, todo crente precisa saber o significado do seu batismo. Paulo pergunta: “Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em [para – JND] Jesus Cristo fomos batizados na [para a – JND] Sua morte?”. Ele apela para a ordenança do batismo porque ela significa a identificação do Cristão com a morte e sepultamento de Cristo. Paulo não está falando aqui da forma ou modo de nosso batismo – se fomos imersos em água ou aspergidos – ele está falando de seu significado. Ele está dizendo: “Você professou, pelo ato de ser batizado, que você morreu com Cristo. E, visto que a morte de Cristo O separou do pecado, então você também está separado do pecado! Continuar nesse estado, portanto, seria uma negação prática do que você professa em seu batismo! É totalmente inconsistente com a posição que você adotou, porque não podemos dizer que estamos mortos para alguma coisa e ao mesmo tempo viver nela”.
Note que a versão King James (e as versões em português também) diz que os crentes foram “batizados em Jesus Cristo”, mas deveria ser traduzido como “batizado para Cristo Jesus”. “Para” indica uma vital conexão com Cristo em vida em nossa nova posição diante de Deus, na qual a justificação nos coloca. O batismo não pode fazer isso. Se pudesse, então o batismo poderia tornar alguém adequado ao céu. A verdade é: sendo justificados, temos um novo lugar no céu diante de Deus “em Cristo” e ao sermos batizados, temos um novo lugar na Terra entre os homens, como sendo “para Cristo”. “Para” significa identificação, e esse é o ponto de Paulo aqui – estamos identificados com Cristo em Sua morte.
Cap. 6:4-5 – Paulo menciona outra coisa que o batismo significa – sepultamento. O sepultamento tem a ver com uma pessoa morta sendo tirada de cena. Portanto, no batismo, não apenas “morremos com Cristo” (v. 8), mas também fomos “sepultados com Ele” (v. 4). Ao estarmos mortos com Cristo, professamos ter rompido nossas conexões com Adão e com o pecado. Mas, sendo sepultados com Cristo, professamos ter deixado para trás toda aquela ordem de vida em que o mundo vive e onde o pecado reina. Hamilton Smith disse: “O batismo é uma figura de morte e sepultamento. É evidente que um homem morto terminou a vida de vontade própria em que uma vez viveu, e um homem sepultado saiu da vista do mundo em que uma vez viveu”. Portanto, o batismo é o modo formal de renunciarmos à nossa conexão com a antiga posição e estado de Adão. Não torna no entanto, uma pessoa mais santa. Um caso em questão é o homem sobre quem ouvimos que foi salvo e batizado e depois perdeu o contato com o homem que o batizou. Algum tempo depois, eles se encontraram e ele disse: “Fiquei totalmente desapontado com meu batismo; achei que não pecaria mais”. O outro homem disse astutamente: “Bem, se eu soubesse que era isso que você esperava do batismo, suponho que poderia tê-lo segurado debaixo d’água por mais tempo quando te batizei!”
Paulo continua falando sobre a ressurreição de Cristo, declarando que, como Cristo vive em vida ressurreta, “andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos plantados [identificados – JND] juntamente com Ele na semelhança da Sua morte, também o seremos na da Sua ressurreição”. Isso significa que Deus abriu uma nova esfera de vida na ressurreição de Cristo, onde Ele e os membros de Sua raça devem “andar” em “novidade de vida”. F. B. Hole disse corretamente: “Nossa morte com Cristo é em vista de vivermos com Ele na vida do mundo em ressurreição” (Paul’s Epistles, vol. 1, pág. 21). Paulo dirá mais sobre isso nos versículos 8-10. (Nota: a epístola aos Romanos não vai tão longe a ponto de ver o crente como presentemente identificado com Cristo em ressurreição. Efésios e Colossenses nos veem em terreno mais elevado como ressuscitados com Cristo e em união com Ele – Ef 2:5-6; Cl 2:12-13).
“Saber” que o Nosso “Velho Homem” Foi Crucificado com Cristo
Cap. 6:6 – A segunda coisa que Paulo diz que precisamos saber é o significado da cruz em relação ao “velho homem”. Ele diz “sabendo isto, que o nosso velho homem foi com Ele crucificado”. O “velho homem” (Rm 6:6; Ef 4:22; Cl 3:9) é um termo abstrato que descreve a condição corrupta da raça caída de Adão – seu caráter moral depravado. O termo inclui cada horrível aspecto que marca a raça humana caída. Para ver corretamente o velho homem, devemos olhar para a raça de Adão como um todo, pois é improvável que uma pessoa seja marcada por todos os terríveis aspectos que caracterizam esse estado corrupto. Por exemplo, um dos filhos de Adão pode ser caracterizado por ser irado, mas ele não é imoral; outro filho de Adão pode ser conhecido por não perder sua paciência, mas ele é terrivelmente imoral. Mas quando as características de todos os membros da raça são reunidas, vemos o velho homem em sua totalidade.
Paulo diz que o velho homem foi “crucificado” com Cristo. Isso significa que Deus julgou aquele corrupto e velho estado de Adão. F. B. Hole disse: “Tudo o que éramos como filhos do caído Adão, foi crucificado com Cristo, e devemos saber disso. Não é uma mera noção, mas um fato real. Foi um ato de Deus concluído na cruz de Cristo, e foi tanto um ato de Deus, e tão real quanto é a aniquilação de nossos pecados” (Paul’s Epistles, vol. 1, p. 21). Portanto, não apenas fomos separados de todo o sistema do pecado (por estarmos mortos e sepultados com Cristo no batismo), mas Deus também julgou esse estado corrupto (ao crucificar o velho homem).
Nota: Paulo não diz que a crucificação do velho homem é algo que nós devemos fazer. Não é o exercício do julgamento próprio no crente, mas sim um julgamento que Deus executou na cruz sobre todo o estado corrupto do homem caído. A cena desse julgamento foi na cruz, não dentro do coração humano. É verdade que o crente deve julgar a si mesmo (1 Co 11:31), mas esse não é o assunto aqui. Capítulo 6:1-10 é verdade posicional; a prática do crente não está em vista aqui. Paulo está se referindo à condição ou estado caído e corrupto em que nascemos e de que fomos parte como filhos de Adão – isso foi julgado por Deus.
Uma parte integrante de nossa confissão Cristã é que fomos “despojado do velho homem” (JND). Deus não apenas julgou o velho homem na cruz, mas confessamente temos nos despojado dele quando assumimos nossa posição como Cristãos. Efésios 4:22-32 e Colossenses 3:5-9 afirmam isso claramente. (Infelizmente, a versão King James e as em português traduzem essas passagens como se fosse responsabilidade do Cristão se despojar do velho homem [vos despojeis], mas essas passagens deveriam ser traduzidas como “Tendo vos despojado…” (JND), indicando que isso é algo que já fizemos em nossa confissão de sermos Cristãos.) Como foi o caso com o julgamento do velho homem, também é o despojamento do velho homem – nenhum dos dois é realizado por um processo de exercício espiritual dentro do crente. Eles estão no tempo verbal aoristo no grego, significando que foram feitos de uma vez por todas. O argumento de Paulo em Efésios 4 e Colossenses 3 é que, se nos despojamos do velho homem ao nos tornarmos Cristãos, então, sejamos coerentes com isso e paremos de praticar as coisas que caracterizam o estado que Deus julgou e do qual professamente nos despojamos.
Muitos usam o termo “velho homem” em substituição “a carne”, como se o velho homem fosse a nossa natureza caída pecaminosa, mas isso não está correto. O velho homem e a carne não são sinônimos. J. N. Darby observou: “O velho homem tem sido habitualmente usado de forma incorreta para referir-se a carne” (Food for the Flock, vol. 2, pág. 286). As versões NASB (New American Standard Bible), NIV (New International Version) e ESV (English Standard Version) traduzem-no como “nosso velho eu”, mas isso é confundi-lo com a carne. Se o velho homem fosse a carne, então Efésios 4:22-23 e Colossenses 3:9 nos ensinariam que os Cristãos se despojaram da carne e não a têm mais em si, mas todos nós sabemos por experiência que isso não é verdade; a carne ainda está em nós. O “velho homem” nunca é dito como sendo algo em nós, mas a carne certamente o é. F. G. Patterson disse: “Não acho que a Escritura nos permitirá dizer que temos o velho homem em nós – porquanto ela ensina mais plenamente que temos a carne em nós” (A Chosen Vessel, pág. 51). Nem nos é dito para considerar morto o “velho homem” (como as pessoas costumam dizer). Isso novamente é confundir o velho homem com a carne e assumir que é algo vivo em nós que precisamos julgar. Outros erroneamente falam do velho homem como estando morto, o que novamente implica que é a velha vida que uma vez esteve viva no crente.
Portanto, não é doutrinariamente correto falar do “velho homem” como algo vivo em nós que tem apetites, desejos e emoções, como é o caso da “a carne” (a natureza do pecado). Os Cristãos costumam dizer coisas como: “O velho homem em nós deseja coisas pecaminosas”. Ou: “Meu velho homem quer fazer isso ou aquilo que é mau…”. Novamente, essas declarações confundem o velho homem com a carne. H. C. B. G. disse: “Eu sei o que um Cristão quer dizer quando perde sua paciência e diz que é ‘o velho homem’, mas a expressão está errada. Se ele dissesse que era ‘a carne’, teria sido mais correto” (Food for the Flock, vol. 2, pág. 287).
O “velho homem” não é Adão pessoalmente e nem o “novo homem” é Cristo pessoalmente (Ef 4:24; Cl 3:10). O novo homem é um termo que denota a nova ordem moral que caracteriza a nova raça de homens sob Cristo. G. Davison disse: “O novo homem não é Cristo pessoalmente, mas é Cristo caracteristicamente”. Toda característica moral do novo homem foi vista em Sua vida em perfeição. No entanto, assim como o velho homem foi usado erroneamente como a carne (a velha natureza), o novo homem é universalmente confundido com a nova natureza do crente. São feitos comentários como: “O novo homem em nós precisa de um objeto para o qual olhar…” ou “Precisamos nos alimentar de coisas que satisfarão o novo homem”. Essas observações estão claramente confundindo o novo homem com a nova vida em nós. Na realidade, o velho homem e o novo homem são termos abstratos que descrevem o estado das duas raças de homens sob Adão e sob Cristo.
Além disso, o “velho homem” não deve ser confundido com o “primeiro homem” (1 Co 15:47), que denota um aspecto diferente da raça humana sob Adão. O velho homem denota o estado corrupto da raça caída, enquanto o primeiro homem denota o que é natural, terreno e anímico[11] na raça – eles não são termos idênticos. Nunca é dito do primeiro homem ser corrupto ou pecador, mas o velho homem não é nada além disso. O primeiro homem tem a ver com o que é humano e natural; é o que Deus fez no homem. Por esta razão nunca é dito que o primeiro homem é julgado por Deus (crucificado com Cristo), como é o velho homem.
[11]   N. do T.: Anímico provém da palavra latina “anima” que significa aquilo que é relativo ou pertencente à alma. ↑
Paulo acrescenta: “para que o corpo do pecado seja desfeito [anulado – JND]”. Ele usa a palavra “corpo” aqui, não para se referir aos nossos corpos físicos (como alguns pensaram), mas para descrever “pecado” como todo um sistema de vida em sua totalidade. Da mesma forma, usamos a palavra “corpo” para expressar a totalidade de uma determinada coisa. Por exemplo, poderíamos dizer: “O corpo do conhecimento científico”, ou “o corpo do conhecimento médico”, etc. J. A. Trench explicava dessa maneira: “‘O corpo do pecado’ – ou seja, todo o seu sistema e força, como dissemos, o corpo de um rio… É todo o sistema e a totalidade dele”. (Truth for Believers, vol. 2, págs. 77, 83). J. N. Darby disse: “Ele [Paulo] toma a totalidade e o sistema de pecado em um homem como um corpo o qual é anulado pela morte” (Synopsis of the Books of the Bible). E. Dennett disse algo semelhante: “Pode estar bem dizer que ‘o corpo do pecado’ é a totalidade do pecado em sua energia dominante” (The Christian Friend, vol. 23, pág. 182).
“O corpo do pecado” não poderia estar se referindo aos nossos corpos humanos porque eles são uma criação de Deus. O corpo humano foi afetado pelo pecado – o envelhecimento e a morte provam isso – e pode estar envolvido em todo tipo de atos pecaminosos, mas o corpo humano não é caracteristicamente pecaminoso. Se nossos corpos fossem pecaminosos, Deus nunca nos diria para apresentá-los a Ele para Seu uso no serviço (Rm 12:1). (A KJV traduz Filipenses 3:21 – “nosso corpo vil”, que no inglês de hoje transmite a ideia de algo repugnante e pecaminoso. Entretanto, quando essa tradução foi feita há 400 anos, vil significava “de pouco valor.” Compare com Tg 2:2. Para evitar esse mal-entendido, traduziu-se melhor para: “Nosso corpo de humilhação” (JND). Mais tarde, em Romanos 6, Paulo faz uma referência aos corpos físicos dos crentes e para certificar-se de que não há mal-entendido sobre a que ele se refere, ele chama, nosso “corpo mortal” (caps. 6:12, 8:11) para distingui-lo do “corpo do pecado”.
Então, o que Paulo está dizendo aqui é que no julgamento do velho homem, todo o sistema do pecado em sua totalidade foi “anulado” (JND) para o crente. A versão King James traduz “desfeito” como “destruído”, mas o corpo do pecado ainda não foi destruído; nós vemos a evidência da presença do pecado em todo lugar no mundo. O pecado será destruído e, então, será inteiramente removido da criação no estado eterno. Esta é a força da observação de João Batista: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. (Jo 1:29). Muitos têm pensado que João estava se referindo à obra de Cristo na cruz para tirar os pecados dos crentes, mas ele estava realmente falando de uma futura obra de Cristo quando Ele removerá todos os vestígios do pecado do universo. É só então que “o corpo do pecado” será destruído e desaparecerá. Ele foi presentemente “anulado” para os crentes. Isso não significa que a natureza pecaminosa é removida de nossos corpos, mas que todo o sistema de pecado em sua totalidade foi derrotado para nós e, consequentemente, não precisamos mais ser controlados pelo poder do pecado. Essa anulação abriu o caminho para os Cristãos serem libertados dos ditames do antigo senhor (pecado) e, assim, “doravante” (KJV) não “sirvamos mais ao pecado”.
Cap. 6:7 – Paulo conclui: “Porque aquele que está morto está justificado do pecado” (v. 7). J. N. Darby disse: “A afirmação de que ‘aquele que está morto está justificado do pecado’, eu entendo que signifique, ‘você não pode acusar de pecado, de vontade própria, de concupiscência, a um homem morto’. Isso se torna verdade de nós quando estamos mortos” (Collected Writings, vol. 7, pág. 242). Assim, estando mortos com Cristo, temos um honrosa libertação do antigo senhor – o pecado.
“Saber” o Significado da Ressurreição de Cristo
Cap. 6:8-10 – A terceira coisa que todo crente deve saber é o significado da ressurreição de Cristo. Paulo diz: “Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com Ele viveremos: Sabendo que, havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre: a morte não mais terá domínio sobre Ele. Pois, quanto a ter morrido, de uma vez morreu para o pecado, mas, quanto a viver, vive para Deus”. Por um breve momento a morte teve domínio sobre o Senhor, e isso somente porque Seu Pai O chamou para dar Sua vida, e Ele o fez em obediência (Fp 2:8; Jo 10:17-18). Como dito anteriormente, tendo morrido para o pecado, Ele deixou toda essa ordem de coisas para trás. Mas, sendo ressuscitado dentre os mortos, o Senhor entrou em uma nova esfera de vida, onde Ele vive “para Deus”. Ao declarar que “também com Ele viveremos” (v. 8), Paulo está indicando que, como a Cabeça da nova raça está vivo na esfera de vida ressurreta, essa esfera também está aberta para nós para nela vivermos pela fé. De fato, é a esfera apropriada de vida do Cristão. Entender isso é essencial para a libertação do pecado; se na prática vivemos nessa esfera de vida eterna que agora está aberta para nós, o pecado não pode impor seu poder em nossas vidas.
O “Considerar” de Fé
Cap. 6:11 – Tendo estabelecido esses fatos doutrinários referentes à libertação, Paulo prossegue para a próxima coisa – o considerar de fé. Ele diz: “Assim também vós, considerai-vos como mortos para o pecado”. Esta é a primeira exortação na epístola e, como toda a exortação, introduz a nossa responsabilidade. Deus quer que sejamos responsavelmente exercitados neste assunto. Devemos “considerar” os fatos que nossa fé abraçou. Ou seja, devemos considerar o que sabemos. É por isso que o conhecimento é importante e vem primeiro. Se não soubermos corretamente, não podemos considerar corretamente.
Como mencionado em nossos comentários no capítulo 4:1-5, “considerar” significa “pensar ou julgar que seja assim”. Em primeiro lugar, devemos aplicar essas coisas a nós mesmos em nossas mentes. Devemos considerar e crer que o que é verdade sobre Cristo é verdade também sobre nós. Uma vez que a ligação de Cristo com o pecado foi rompida por meio da morte, temos o direito, por conta de nossa identificação com Ele, de nos considerarmos como “mortos para o pecado” e, assim, também ter nossas conexões rompidas com o pecado! Isto tem sido ilustrado da seguinte forma: É como um homem que pagou a outro homem uma grande quantia para ir à guerra em seu lugar. Quando o governo lhe escreveu dizendo que aquele homem havia morrido em batalha, e que ele agora teria de ir para a guerra, ele respondeu e disse que não poderia ir porque estava morto. Ele percebeu que tinha o direito de se considerar morto porque seu substituto havia morrido.
Este considerar não deve ser confundido com o considerar do capítulo 4:5. O capítulo 4:5 refere-se a considerar que ocorre na mente de Deus quando cremos no evangelho. Aqui no capítulo 6:11 é o que ocorre na mente do crente em vista da morte de Cristo para o pecado. A história de Isaque e Ismael ilustra isso. Isaque é um tipo de Cristo e Ismael é um tipo da carne. Quando Isaque recebeu seu lugar de direito como filho na casa de Abraão, Deus não mais reconheceu Ismael como filho de Abraão (Gn 21). Depois disso, Ele chamou Isaque de “único filho” de Abraão, embora Ismael ainda estivesse vivo! (Gn 22:2, 12, 16) Isso ilustra a verdade de que Deus não mais reconhece a primeira ordem do homem segundo a carne no crente. Assim sendo, temos o direito de considerar desta forma também. Assim, devemos considerar como Deus considera esse fato.
Um crente poderia dizer: “Mas o pecado não está morto em mim”. Mas o apóstolo não diz que o pecado está morto em nós; ele diz que nós estamos mortos para o pecado. A natureza pecaminosa ainda está em nós e continuará a atrair-nos, mas devemos nos considerar mortos para o pecado. Estamos mortos e, portanto, separados dele. Isso significa que devemos nos ver como separados e dissociados do pecado (o princípio do mal), mesmo que o pecado (a natureza) ainda esteja em nós.
Alguns, tendo lido o que Paulo disse aqui, ficaram pensando: “Agora eu entendi; eu preciso morrer para o pecado para que Cristo possa viver em mim!” Mas isso não é o que Paulo está ensinando. Ele não está nos exortando a morrer para o pecado; está afirmando que estamos mortos para o pecado – que estamos separados dele. Este é um fato consumado; não é algo que precisamos fazer por um processo de autodisciplina, etc. J. N. Darby observou: “Nunca é dito nas Escrituras que temos que morrer para o pecado” (Collected Writings, vol. 34, pág. 406). Nem deveríamos pensar que a aplicação da verdade de nossa identificação com a morte de Cristo é algo para nos enganar mentalmente; Porém é acreditar em algo que é realmente verdadeiro diante de Deus. Deus julgou o pecado, e Ele não mais o reconhece como sendo nós[12]. Então, devemos acreditar no que Ele diz e agir de acordo com isso.
[12]   N. do T.: Paulo estava usando a palavra “pecado” para representar a própria pessoa. Então Deus olha para um crente e não o vê mais como sendo dominado pela natureza do pecado; somos vistos em uma nova posição, em uma nova vida, tendo a vida de Cristo e uma nova natureza. Deus não vê a “natureza pecaminosa” como sendo “nós”. Ele vê o verdadeiro “nós” como sendo a vida que está em uma “nova” posição diante dele que não é capaz de pecar. Nossa nova natureza não quer pecar e não pode pecar. ↑
“Considerar” tem a ver com a nossa forma de pensar. Paulo está nos mostrando aqui que precisamos raciocinar a partir da perspectiva correta. Quando a tentação se apresenta e a natureza pecaminosa em nós gostaria de responder, não devemos mais raciocinar a partir da perspectiva de quem éramos sob Adão, mas de quem somos sob Cristo. Temos o direito de tratar o pecado como não sendo nós. Podemos dizer – e sinceramente dizer – “Eu não quero essa coisa má…” porque a nova natureza em nós certamente não a quer. (Se, no entanto, permitirmos que a carne aja, devemos nos apropriar do pecado e confessá-lo nosso pecado a Deus, nosso Pai, com verdadeiro arrependimento, e Ele nos restaurará à comunhão Consigo mesmo – 1 Jo 1:9).
O homem sem fé do mundo não entende este princípio. Ele nos diria que estamos apenas mentindo para nós mesmos porque realmente queremos essas coisas más, como qualquer outra pessoa. Mas isto não é um artifício mental, que Paulo está nos dizendo, para aplicarmos em nós mesmos; é simplesmente acreditar no que Deus diz sobre nós e raciocinar a partir dessa perspectiva.
Paulo também diz que estamos “vivos para Deus em Cristo Jesus”. Isso mostra que também somos privilegiados por nos considerarmos vivos com Cristo nessa nova esfera de vida onde Ele vive para Deus. Temos uma nova vida de Deus que é adequada para essa esfera de vida onde Cristo está em ressurreição. Assim, devemos viver nessa esfera em comunhão com Deus, e raciocinar a partir da perspectiva do novo “eu”. Este é um privilégio que temos por causa dessa grande verdade.
Cap. 6:12 – Paulo prossegue e diz: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal”. Não podemos impedir que o pecado reine no mundo onde é o senhor de todos, mas por causa do que aconteceu na morte de Cristo, não precisamos deixar que ele “reine” em nossas vidas. Nota: ele não diz: “Não habite, portanto, o pecado em vosso corpo mortal” – porque não nos livraremos da velha natureza do pecado até que o Senhor venha no Arrebatamento. Porém, ele diz: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal”. Isso mostra que, uma vez que Deus providenciou um meio de libertação do pecado pelos princípios que Paulo nos deu, temos a obrigação de recusar ao pecado quaisquer direitos que queira ter sobre nós. O crente é quem segura as rédeas agora; ele pode escolher em qual estado ou esfera deseja viver, e assim é responsável por não permitir que o pecado use seu corpo para suas concupiscências. Portanto, não temos desculpa para deixar o pecado ter lugar em nossas vidas. Paulo menciona que nossos corpos são “mortais”, que se refere a eles estarem sujeitos à morte, mas há um dia chegando (o Arrebatamento) quando “isto que é mortal se revista [revestirá] da imortalidade” (1 Co 15:53). Então estaremos livres da natureza do pecado e de todos os efeitos que o pecado teve em nossos corpos.
“Apresentar” – Pelo Princípio do Deslocamento
Cap. 6:13 – Poderíamos perguntar: “Como o raciocínio, a partir da perspectiva do novo ‘eu’, pode nos libertar da tentação quando ela ataca?” É bem verdade que conhecer certos pontos da doutrina e ter raciocínio correto não são suficientes; deve haver um apresentar a Deus. Paulo diz: “Nem tão pouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça”. Ele introduz aqui o princípio do deslocamento[13]. Ele diz que já que somos “como vivos dentre mortos” e vivendo para Deus nessa nova esfera de vida que foi aberta para nós na ressurreição de Cristo, no poder dessa vida, podemos agora recusar a carne. Não precisamos mais apresentar os “membros” de nossos corpos (nossos ouvidos, olhos, mãos, pés etc.) aos desejos da carne. Vivendo nessa esfera de vida com o que temos em Cristo em comunhão com Deus, haverá o poder prático para resistir à carne. No capítulo 8, Paulo nos mostrará que esse poder não é resultado de nossos esforços pessoais para manter a carne controlada, mas por meio do Espírito Santo trabalhando em nós para neutralizá-la.
[13]   N. do T.: H. P. Barker deu a seguinte conveniente ilustração sobre o princípio do deslocamento, dizendo: “Suponha que eu tenha em minha mão um copo, aparentemente vazio. Na verdade, ele está cheio de ar. Como posso esvaziá-lo do ar? Não por agitá-lo freneticamente com a boca para baixo, nem limpando-o com um pano. Ele é esvaziado por simplesmente estar parado em uma mesa enquanto é enchido com água. Eu o esvazio de ar enchendo-o com água.” (The Holy Spirit Here Today, pág. 78). ↑
Nota: devemos nos apresentar “como vivos dentre mortos” – isto é, da perspectiva daqueles que vivem nessa nova esfera de vida com Deus. Se tentarmos nos apresentar à justiça, mas ao mesmo tempo, estivermos vivendo nossas vidas no antigo estado de Adão, falharemos miseravelmente. Recordamos de um irmão que lutava contra as concupiscências da carne que controlavam sua vida, queixando-se de que a libertação da carne prometida pelo Cristianismo não funcionava. Essencialmente, ele culpou Deus por prometer algo que não estava acontecendo em sua vida como ele achava que deveria estar. Mas quando sua vida foi examinada, descobriu-se que ele se cercava de quase todos os objetos e atividades mundanos imagináveis – livros, revistas, vídeos, músicas, jogos, companhias mundanas, etc. Ele vivia nesse ambiente todos os dias desde a manhã até a noite. É evidente que seu problema era que ainda vivia no estado do velho Adão – (ou esfera de vida) ao qual o Cristão está declaradamente morto e separado – e esperando ficar livre da influência e do domínio do pecado! Ele estava fazendo exatamente aquilo que Paulo insiste nos versículos 1-2, que não devemos fazer. Ele continuava em pecado (no estado), depois de ser salvo. Não era de se admirar por que a carne estava se impondo em sua vida e ele estava experimentando uma “falta de energia”.
No entanto, quando estamos ocupados com a bem-aventurança do que é nosso nesta nova esfera de vida em comunhão com Deus, não seremos controlados pelo pecado. Esse novo estado no qual Cristo vive para Deus é caracterizado pelas “coisas do Espírito” (cap. 8:5). Essas são coisas espirituais relacionadas aos interesses de Cristo. São coisas como: ler as Escrituras, orar, participar de reuniões Cristãs para adoração e ministério, cantar hinos e cânticos espirituais, ler literatura Cristã, ouvir ministério Cristão gravado, ensinar a verdade, compartilhar o evangelho, meditar nas coisas espirituais ao ocupar-nos de nossas responsabilidades diárias, servindo ao Senhor com boas obras, visitando, etc. Se vivemos nesta esfera, o poder do Espírito será evidente em nossas vidas mantendo a carne sob controle (cap. 8:2).
Assim, o princípio do deslocamento é o segredo do poder moral. Este princípio é encontrado em vários lugares nas Escrituras. Por exemplo, “Manteiga e mel comerá, até que ele saiba rejeitar o mal e escolher o bem” (Is 7:15). Leite e mel eram coisas boas relacionadas à herança de Israel (Êx 3:8; Dt 11:9). Eles tipificam as ricas coisas espirituais de nossa herança celestial (1 Pe 1:4). Quando estas coisas são apreciadas, o mal pode ser evitado. Gálatas 5:16 diz: “Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne”. Isto é, quando vivemos em nossa apropriada esfera Cristã de vida (“em Espírito”), o poder do Espírito vai manter a carne sob controle.
“Apresentar” é mencionado duas vezes no versículo 11, mas cada ocorrência tem um tempo verbal diferente no grego. Um está no tempo presente ou contínuo: “Nem tão pouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade”. Isso significa que em nenhum momento devemos pensar em nos apresentar ao pecado. O outro é o tempo verbal aoristo, que se refere a algo para ser feito de uma vez por todas: “mas apresentai-vos a Deus”. Este deve ser um ato consumado. (“vos” incluiria nossos espíritos, almas e os membros de nossos corpos, etc.) Há, portanto, algo que deveríamos estar fazendo diariamente – isto é, não continuar “apresentando” (NASB – New American Standard Bible) os membros de nossos corpos como instrumentos de injustiça. E também há algo que deveríamos ter feito de uma vez por todas – que é “apresentar” nós mesmos e nossos membros como instrumentos de justiça.
Cap. 6:14 – Paulo conclui afirmando enfaticamente: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós”. Isto é, literalmente, “O pecado não governará como senhor sobre você”. Isto é uma promessa. Não é o que poderia ser, ou o que esperamos ter, mas o que teremos em nossas vidas se aplicarmos esses princípios de libertação a nós mesmos. Paulo acrescenta outra coisa: “pois não estais debaixo da Lei, mas debaixo da graça”. A Lei é um sistema de demanda, mas a graça é um sistema de oferta. Deus não está demandando dos crentes poder para andarem corretamente porque Ele sabe que não o temos. Ele, portanto, oferece-nos poder!
As reivindicações da Lei supõem que temos poder para obedecer aos seus mandamentos – e podemos ter pensado (equivocadamente) que tínhamos esse poder – mas a graça supõe que não temos absolutamente nada. Isso nos ensina que, vivendo em vida ressurreta no poder do Espírito Santo – naquela esfera de coisas onde Cristo vive para Deus – obtemos Seu poder vitorioso em lugar de nossa própria completa impotência.
Corra João e viva, a Lei ordena vá,
No entanto, nem pernas ou mãos há;
Excelentes novas o evangelho traz,
Estimas-me voar e asas me dás.
A lição básica que devemos aprender com esta passagem é que a verdadeira santidade não será efetivada em nossas vidas por nossos próprios esforços, mas pelo poder da graça que opera em nós. H. Smith disse: “Estar debaixo da graça não apenas traz bênçãos para nós, mas nos sustenta e nos capacita a vencer… Uma pessoa insubmissa [que não se apresenta] está sempre em perigo de pecar, mas uma pessoa submissa [que se apresenta a Deus] será fortalecida com poder pela graça de Deus”. A libertação, portanto, só pode ser operada pelo princípio do deslocamento.
Para resumir até agora, tivemos três coisas diante de nós na primeira metade do capítulo 6:
- Aprendendo de Deus (vs. 1-11).
- Considerando com Deus (v. 12).
- Apresentando-se a Deus (vs. 13-14).
Servos do Pecado ou Servos da Justiça?
Cap. 6:15-23 – O pecado assumiu o domínio sobre nós em tempos passados, mas pela aplicação desses princípios, não precisa mais ser assim. No entanto, precisamos entender que a libertação do pecado não é algo automático. Como Paulo demonstrou nos versículos 11-13, Deus quer que sejamos responsavelmente exercitados no assunto. Assim sendo, a grande questão para nós é: “Em que estado ou esfera de vida estou escolhendo viver, agora que sou Cristão?” Se uma nova esfera de vida foi aberta para eu viver por meio da morte e ressurreição de Cristo (v. 11), por que então eu quereria viver na velha esfera, da qual Cristo me salvou? Não estou livre de toda essa ordem de vida no mundo que foi julgada por Deus? Como posso encontrar meu prazer naquela cena iníqua, pela qual Cristo morreu para romper minhas conexões?
Um Cristão que escolhe viver nesse velho estado e busca nele prazer e satisfação, manifesta uma ignorância (ou incredulidade) a respeito do que a Palavra de Deus diz sobre a carne. Nesta passagem, Paulo nos ensina que, embora a carne tenha sido julgada (“anulada” – Rm 6:6 – JND), ela é um inimigo que ainda não foi destruído, e se possível, o diabo buscará oportunidade por meio dela para controlar a vida do crente e levá-lo para todas as maneiras de pecados. É um fato que, se escolhermos viver nesse velho estado (esfera de vida), a carne se levantará em nós e irá se mostrar em nossas vidas. Todo Cristão, portanto, precisa aprender – e aprender bem – que “carne para nada aproveita” (Jo 6:63), e desistir de procurar algo nessa esfera para satisfazer seu coração. É uma esfera perigosa para se viver espiritualmente, e certamente não é onde Deus quer que vivamos. Ela levará ao fracasso.
Os crentes geralmente demoram a aceitar essa verdade e, portanto, precisam aprender por experiência que o que Deus diz sobre a carne é verdadeiro. Nesta próxima série de versículos, Paulo mostra que a santificação prática é algo progressivo na vida de um crente.
Cap. 6:15 – Paulo agora aborda o assunto dos crentes escolhendo pecar porque estão sob a graça. Ele faz uma pergunta similar àquela do versículo 1: “Pois quê? Pecaremos porque não estamos debaixo da Lei, mas debaixo da graça?” Ele responde da mesma maneira que respondeu à pergunta no versículo 1 – “De modo nenhum [longe esteja o pensamento – JND]”. De modo algum a graça de Deus foi planejada para encorajar os Cristãos a pecar. Tal ideia é completamente ilógica. Como podemos louvar e agradecer ao Senhor por sofrer na cruz as agonias do julgamento de Deus, para pagar pelos nossos pecados e, ao mesmo tempo, continuar cometendo esses mesmos pecados? Isso deveria ser abominável para todo crente sensato. Os Cristãos podem falhar no caminho da fé e pecar, e se o fizerem, julgam a si próprios em arrependimento, se levantam e continuam (1 Jo 1:9; Pv 24:16). Mas seguir voluntariamente o curso do pecado porque estamos sob a graça não é o Cristianismo normal. Isso leva a questionar se tal pessoa realmente entende o evangelho que professa ter crido. Uma pessoa que justifique esse tipo de andar geralmente não é salva.
Podemos nos perguntar por que Paulo tomaria tempo para tratar dessa questão, quando todo Cristão de mente sóbria nem mesmo cogitaria tal ideia. No entanto, devemos lembrar de que Paulo estava enfrentando as objeções de mestres judaizantes que eram que se opunham à doutrina da justificação pela fé. Eles eram legalistas que acreditavam que pregar o evangelho que Paulo pregava (“uma vez salvo, sempre salvo”, como se diz) encorajava a frouxidão e o pecado entre os Cristãos. O remédio encontrado por eles era colocar os crentes sob a Lei e fazê-los tentar se aperfeiçoarem em santidade aderindo às exigências dela. Acreditavam que, se os Cristãos fossem mantidos com medo de perder sua salvação se pecassem, seriam mais cuidadosos e diligentes em viver de maneira correta.
Essa ideia, no entanto, manifesta uma ignorância do que é a Lei e o que a Lei pode e não pode fazer. Simplificando, a Lei pode exigir uma vida santa, mas não pode produzi-la. Não foi dada para esse propósito. Mesmo que guardar a Lei pudesse produzir uma vida santa, ainda assim erraria o alvo. O objetivo de Deus é produzir um companheirismo dedicado e afetuoso para com Cristo, naqueles que têm um relacionamento com Ele, que é motivado pelo amor (Jo 14:15, 15:9; 2 Co 5:14). O legalismo não fará isso. Sob os ditames legais, o Cristianismo se torna um conjunto mundano de regras e regulamentos, deixando intocados os corações daqueles sob tal sistema. Todos esses meios não produzem afeição por Cristo, nem encorajam um íntimo relacionamento com Ele. Nem viver nessa linha legal dá ao crente o poder de resistir às tentações de pecar.
Uma Ilustração do Poder da Graça
É claro que aqueles que têm essas ideias não entendem o poder da graça – o favor imerecido de Deus para com o homem. Quando a graça de Deus toca os corações do Seu povo, o seu grande poder efetua mudança em suas vidas. Isso resulta em serem afetuosamente ligados a Cristo, com o desejo de agradá-Lo. Uma história que G. Cutting menciona em seu livreto, “Peace; Is It Yours?” ilustra o poder da graça. Transcrevemo-la aqui textualmente. “Uma empregada doméstica está ocupada com seu trabalho diário na sala de jantar de seu patrão. Enquanto está espanando o pó da lareira, ela não percebe que seu espanador se enroscou em um vaso caro, e ao puxá-lo, derruba o vaso da lareira, quebrando-o em muitos pedaços! Ela sabe muito bem como seu patrão vai se sentir em relação a isso; além de ser uma obra de arte selecionada, o vaso vinha sendo transferido como relíquia na família desde gerações passadas. Quão amargamente ela se repreende por seu descuido, e está dizendo para si mesma: ‘Como posso encarar meu patrão a respeito disso’, quando justamente a sineta da sala de visitas à chama à presença do patrão. Com o coração pesado e tremendo, ela atende ao chamado.
Assim que ela entra, ele diz: ‘Queremos lhe dizer que sua patroa e eu acabamos de falar sobre você e decidimos dar-lhe uma semana de folga’. ‘Obrigado, senhor; mas o senhor está esquecendo que eu já tive minha folga este ano?’ ‘Não nos esquecemos disso, mas é nosso desejo dar-lhe uma semana especial’. Então, estendendo a mão, ele diz: ‘Por favor, pegue este dinheiro. Isso ajudará você a aproveitar melhor sua folga’. ‘Oh, senhor’, ela diz, rompendo em lágrimas, ‘eu não poderia aceitar nem o dinheiro nem a folga, pois tenho certeza de que senhor não me oferecerá nada quando souber o que eu fiz. Em meu descuido, eu quebrei o lindo vaso que estava em cima da lareira da sala de jantar’. ‘Eu sei’, ele diz. ‘De fato, aconteceu de eu estar passando pela janela na hora e vi você fazer isso; mas apesar de ambos sentirmos muito a perda, há muito tempo temos o desejo de lhe fazer uma mostra especial de nossa apreciação e consideramos que este é um bom momento para fazê-lo’. Será que essa nova e inesperada experiência da bondade de seu patrão a tornaria mais descuidada em relação ao seu trabalho no futuro? Não, não; exatamente o oposto”. A graça exibida para com a empregada doméstica a tornaria mais diligente e conscienciosa em seu trabalho.
Da mesma forma, se reservarmos tempo para meditar sobre a surpreendente graça que nos foi demonstrada por Deus, que nos salvou e nos abençoou mais ricamente do que a todas as outras criaturas do universo (incluindo os anjos), isto produzirá devoção a Cristo. Haverá o desejo de retribuir aqu’Ele que nos abençoou tão grandemente, e isso será expresso em querer agradá-Lo de qualquer maneira que pudermos. Nessa linha de resposta, o salmista disse: “Que darei eu ao Senhor, por todos os benefícios que me tem feito?” (Sl 116:12) Assim, a meditação diária sobre a graça de Deus produz um desejo diário de agradá-Lo. Isso é algo que nenhum sistema legal pode fazer. Paulo se refere ao poder prático da graça operando nos corações dos crentes em Tito 2:11-12: “Porque a graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens. Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente”. A graça de Deus não apenas nos salva do julgamento de nossos pecados, mas também nos ensina a nos afastarmos da vida ímpia.
Servindo à Justiça
Cap. 6:16 – Nos próximos versículos, Paulo nos diz algo que todo Cristão precisa saber sobre o pecado e a justiça prática. Ele diz: “Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” Isso mostra que há um poder cativante tanto na prática do pecado quanto na prática da justiça. Ao apresentar-nos a qualquer um deles, ficamos sob seu poder – para o mal ou para o bem. Se nós, como Cristãos, escolhermos viver no antigo estado de Adão (esfera de vida) e apresentar-nos ao chamado da natureza pecaminosa, resultarão sérias consequências. Nós ficaremos sob o poder do pecado e nos tornaremos escravos dos pecados que permitirmos! O Senhor Jesus ensinou isso a Seus discípulos; Ele disse: “todo aquele que comete pecado é servo do pecado” (Jo 8:34). Este é um princípio universal que se aplica a toda a humanidade. É tão verdadeiro para um crente quanto para um incrédulo. Assim, ao escolher pecar, violentamos nossas próprias almas (Pv 8:36).
Todo Cristão deve aprender – e pode ter de ser por meio da correção do Senhor – que a “liberdade” apresentada no evangelho (v. 18) não é liberdade para pecar, mas sim liberdade do pecado. Deus quer nos libertar do poder do pecado para que possamos fazer a Sua vontade – não para que possamos continuar pecando! O evangelho anuncia liberdade, não permissividade. Se fomos separados de toda aquela ordem de coisas sob Adão por nossa conexão com Cristo sob Sua Cabeça, por que pensaríamos em viver nossas vidas Cristãs naquele estado iníquo, quando sabemos que isso nos levará à escravidão? Como mencionado anteriormente, quando os Cristãos escolhem pecar, isto manifesta incredulidade no fato de que “a carne para nada aproveita” (Jo 6:63). O problema é que ainda pensamos que há algo de bom nela que irá servir para nossa felicidade e satisfação. E ao ceder à carne, somos enganados por ela, e ficamos sob o poder daqueles pecados que cometemos. Deus permite que seja assim, e usa isso como uma disciplina para corrigir nossa atitude errada em relação ao pecado. Podemos dizer, felizmente, que para o crente que vai nessa direção e permite pecados em sua vida, há uma saída por meio do arrependimento e do julgamento próprio. Mas para o incrédulo, os pecados que ele permite em sua vida apenas o levam para maior escravidão.
Como mencionado, essa servidão funciona igualmente em ambas as linhas: “ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” Ao dizer: “sois servos daquele a quem obedeceis…” Paulo personifica “pecado” e “justiça”, e os vê como dois senhores opostos com servidões opostas. A qualquer um desses que nos apresentemos, dele nos tornamos servos. Como crentes no Senhor Jesus Cristo, nos apresentado ao novo senhor (justiça), formamos novos e bons hábitos que levam à santificação prática. Paulo vai falar mais sobre isso no versículo 19. Uma coisa solene a considerar aqui é que, embora estejamos posicionalmente em um novo lugar diante de Deus – onde a graça reina por meio da justiça – o pecado ainda pode ser, na prática, nosso senhor, se escolhermos viver naquele velho estado de Adão. Todo Cristão precisa considerar isso seriamente.
Cap. 6:17-18 – Paulo estava convencido de que os santos romanos a quem estava escrevendo tinham obedecido “de coração à forma de doutrina” à qual foram “entregues [instruídos – JND]”. Isto é, eles haviam crido na verdade do evangelho, e assim estavam “libertados do pecado” posicionalmente. Se eles se apresentassem como “servos da justiça”, iriam provar o poder da graça trabalhando em suas vidas, produzindo santificação prática – porque isso é Cristianismo normal. Para indicar essas duas servidões, Paulo usa oito vezes a palavra “servos” nos versículos 16-23.
Cap. 6:19-20 – Paulo então demonstra o caráter progressivo de se andar em santidade (santificação prática). Ele diz: “assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia, e à maldade, para a maldade [iniquidade para a iniquidade – JND], assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação”. Os crentes romanos tinham praticado iniquidades (antes de serem salvos) e, ao fazê-lo, só se tornavam mais iníquos; eles agora deveriam praticar a justiça e isso resultaria em se tornarem progressivamente mais santos. Isso mostra que é algo progressivo em ambas as direções. Assim como um homem praticando iniquidade torna-se cada vez mais iníquo (“iniquidade para a iniquidade”), assim também quanto mais um Cristão pratica a justiça, mais santo ele se torna (“justiça para santificação”).
No lado negativo, um homem não se torna um monstro de uma só vez; pode levar anos de prática do pecado. Ele pode cometer um ato mau hoje que há cinco anos teria hesitado em cometer. Foi relatado que Nero chorou por matar uma mosca na sua juventude, mas terminou sua carreira rindo enquanto Roma era destruída em chamas! O argumento de Paulo aqui é que, assim como o pecado age progressivamente em uma pessoa, também a justiça age progressivamente na vida de um crente. Toda vez que fazemos algo certo, nos fica mais fácil o fazê-lo novamente. G. Cutting apropriadamente disse: “Toda nova vitória lhe dará novo poder”. Assim, nos é “dado crescimento para salvação” na prática (1 Pe 2:2 – ARA). O cântico das crianças enfatiza esse ponto – “Cada vitória vai ajudá-lo a obter outra”. Assim, os Cristãos estão agora em uma nova e feliz servidão como “servos [escravos – JND] da justiça”.
Uma diferença que devemos notar é que “justiça” e “santidade” não são a mesma coisa. Justiça tem a ver com fazer as coisas certas porque elas são certas. A santidade tem a ver com fazer as coisas certas porque você ama o que é certo e odeia o mal.
Cap. 6:21-23 – Paulo conclui apontando para a enorme diferença nos resultados dessas duas servidões opostas. Ele pede aos crentes romanos que considerem o fim do curso em que trilhavam antes de serem salvos – “E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte”. Que proveito havia nisso? Só trouxe a morte em todos os sentidos. Mas tendo sido libertados, Paulo lhes diz para olharem os grandes e bons resultados que agora estavam sendo produzidos em suas vidas; havia “fruto para santificação, e por fim a vida eterna”. Eles estavam agora livres para fazer a vontade de Deus em comunhão com Deus, e o caminho que agora estavam trilhando terminaria em glória num dia vindouro. (Como no capítulo 5:21, Paulo vê aqui a “vida eterna” como algo que alcançaremos no fim do caminho de fé, quando chegarmos ao céu em estado glorificado. É claro que também a temos agora, que o apóstolo João chama de “vida eterna” – Jo 3:16, 36, etc., tradução J. N. Darby).
O versículo 22 é uma espécie de resumo da verdade apresentada no capítulo 6. Ele diz:
- Somos feitos “livres do pecado”.
- Tornamo-nos “servos de Deus”.
- Temos o nosso “fruto para a santificação”.
- O “fim é a vida eterna”.
V. 23 – A conclusão de toda a questão é: “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor”. Como mencionado, um curso conduz à “morte” e o outro conduz à “vida”. “O salário do pecado” mencionado aqui é muitas vezes considerado como pecados (más ações) que os homens cometem. Os evangelistas usarão esse versículo para dizer aos pecadores que, como consequência de seus pecados, eles morrerão e irão para o inferno. Mas devemos ter em mente que esta seção da epístola não está tratando de pecados, mas sim do pecado, a natureza má e pecaminosa no crente. Paulo já mostrou no capítulo 5 que a morte na raça humana não é o resultado de pecados pessoais, mas o resultado de ser descendente de uma cabeça caída. A morte pode levar uma criança com apenas um dia de vida. É claro que a morte não a levou porque a criança é culpada de pecar, mas porque ela tem uma natureza pecaminosa e os efeitos dela em seu corpo causaram a morte. Além disso, os crentes no Senhor Jesus Cristo, cujos pecados são perdoados, ainda morrem. Se os pecados deles causassem sua morte, poderíamos erroneamente concluir que Deus não os perdoou afinal de contas! Sobre este versículo, J. N. Darby disse que “não é um apelo aos pecadores como às vezes é usado, mas àqueles já libertos” (Synopsis of the Books of the Bible on Romans 6:23).
A Lei e Cristo
Cap. 7:1-6 – Tendo sido apresentada a verdade da libertação no capítulo 6, poderíamos perguntar: “Esta libertação se aplica em relação à Lei de Moisés?” Esta seria uma preocupação especial para os crentes dentre os judeus, pois os gentios, como sabemos, nunca estiveram nesse relacionamento legal com Deus. A resposta é sim; os crentes judeus não estão mais sob a Lei. Ao abordar essa questão, Paulo se dirige especialmente a seus irmãos judeus. Isto é indicado por sua declaração: “Pois que falo aos que sabem a Lei”.
Há uma diferença óbvia entre a libertação do pecado (cap. 6) e a libertação da Lei (cap. 7). O pecado é algo mau que veio ao mundo por meio do fracasso do homem, ao passo que o mandamento é “santo, justo e bom” (v. 12) e foi dado pelo próprio Deus. É fácil entender porque precisamos ser libertos do pecado, mas podemos nos perguntar por que alguém precisaria ser liberto de algo que é bom. A resposta é que a Lei é realmente boa – boa para o propósito para o qual foi concebida – que é mostrar aos homens o que eles fizeram e o que são. No entanto, a Lei não pode produzir vida santa. J. N. Darby apontou que há três coisas que a Lei não faz (Collected Writings, vol. 31, pág. 155); estas são:
- Não dá vida.
- Não dá força para realizar suas demandas.
- Não nos dá um objeto para nossos corações.
Por isso, é um grande equívoco pensar que a Lei foi dada para ajudar uma pessoa a caminhar em santidade. Não é – e nunca foi – intenção de Deus produzir santidade nos homens por meio da Lei.
A ideia equivocada de pensar que os crentes gentios deveriam ser colocados sob a Lei foi resolvida com autoridade pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém. Isso está registrado em Atos 15. Mas a pergunta permaneceu: “Os crentes no Senhor Jesus, que estão entre os judeus, ainda estão sob a Lei?” Paulo responde aqui a essa questão.
Os Dois Maridos
Nesta passagem, Paulo explica porque a Lei não tem conexão com os Cristãos – sejam eles Cristãos judeus ou Cristãos gentios. No capítulo 7:1-3, ele estabelece o princípio, dando uma ilustração hipotética da improbabilidade de uma mulher ser casada com dois maridos ao mesmo tempo. Então, no capítulo 7:4-6, ele mostra que, como os Cristãos estão mortos com Cristo, o vínculo, que uma vez reteve os crentes judeus às obrigações da Lei, foi quebrado.
Cap. 7:1-3 – Paulo vê a Lei como estando na posição de um marido e os judeus (antes de serem salvos) na posição de uma esposa. A mulher nessa situação estaria sujeita a certas obrigações para com o marido. Paulo declara: “A mulher casada está ligada pela Lei a seu marido, enquanto ele vive” (TB). F. B. Hole disse: “Todo judeu achava o velho marido – a Lei – muito severo e inflexível, na verdade um espancador de esposas, embora tivessem de admitir que francamente mereciam tudo o que recebiam” (Paul’s Epistles, vol. 1, pag. 26). Sob a Lei, eles estavam cansados e “sobrecarregados” (ARA) em seus esforços para fazer tudo o que ela ordenava, e também em cumprir coisas acessórias que os rabinos lhes acrescentavam. (Mt 11:28, 23:2-4).
Então, Paulo diz: “Mas, morto o marido, livre está da lei do marido”. Nesta declaração, Paulo não está ensinando que a Lei morreu – mesmo que ele se refira à morte do marido. O grande ponto que está estabelecendo aqui é que a morte encerra a vigência da Lei; o vínculo envolvido nesse relacionamento legal é quebrado com a chegada da morte.
Cap. 7:4 – H. Smith aponta que na ilustração o marido morre, mas na aplicação do princípio, é a esposa que morre. Paulo deixou claro no versículo 1 que aqueles nessa relação legal, que estão agora identificados com Cristo, chegaram ao fim pela morte. Ele disse: “a Lei tem domínio sobre o homem por todo o tempo que ele vive” (AIBB). Paulo não disse que a Lei tem domínio sobre um homem por todo o tempo que ela (a Lei) vive, mas “por todo o tempo que ele (o homem sob ela) vive”.
Aplicando o princípio da Cabeça federal de Cristo aos crentes judeus em seu relacionamento legal com Deus, Paulo mostra que, uma vez que Cristo morreu, eles têm o direito de também se considerarem mortos. Ele diz: “Assim, meus irmãos, também vós estais mortos para a Lei pelo corpo de Cristo” (v. 4). Assim, os crentes no Senhor Jesus Cristo não apenas estão mortos para o pecado (cap. 6); eles também estão mortos para a Lei (cap. 7). A Lei não tem mais domínio sobre aqueles que estavam nessa relação e que creem, porque são vistos como mortos e se foram – e a Lei não tem domínio sobre um homem morto. J. N. Darby disse: “Ele morre para aquilo no qual estava retido. A Lei só poderia impor sua reivindicação sobre o homem como um filho vivo de Adão. A ‘Lei tem poder sobre o homem enquanto ele viver’; mas eu estou morto para a Lei pelo corpo de Cristo; o vínculo com a Lei, de forma absoluta, total e necessária cessou, pois a pessoa está morta; e a Lei tem poder sobre ela somente enquanto viver” (Collected Writings, vol. 10, pág. 10).
“O corpo de Cristo”, do qual Paulo fala aqui, não é o corpo místico de Cristo do qual somos membros (1 Co 12:12-13), mas o corpo pessoal (físico) de Cristo que Ele tinha ao Se tornar um Homem (Hb 10:5; Cl 1:22). Foi por meio desse corpo no qual Ele morreu que Cristo levou os crentes à morte por sua identificação com Ele.
A versão King James diz: “Casado com outro…”. Isso é mencionado três vezes nesta passagem se referindo a Cristo, mas a palavra “casado” não está realmente no texto grego. Deveria dizer: “Pertencer a outro” (Tradução W. Kelly). Isso ocorre porque nosso relacionamento com Cristo atualmente é o de alguém comprometida a um marido; estamos aguardando o casamento que acontecerá no futuro (Ap 19:7-10). (É verdade que, em Efésios 5, a Igreja já é vista em união com Cristo, mas aquela epístola apresenta a verdade a partir da perspectiva do propósito eterno de Deus – como algo completo e totalmente fora do tempo.)
Paulo conclui seu pensamento dizendo: “A fim de que demos fruto para Deus” (v. 4). O “fruto” a que se refere aqui é a justiça prática manifestada no viver santo. Este é o objetivo de Deus ao libertar o crente do pecado e da Lei. Contudo, a verdadeira frutificação só pode ser produzida vivendo-se no gozo consciente da vida eterna com “aqu’Ele que ressuscitou de entre os mortos”. Quando permanecemos com Cristo nessa nova esfera de vida, o Espírito de Deus está livre para trabalhar em nós para manter a carne sob controle e produzir frutos em nossas vidas no caminho da justiça prática. Paulo falará mais disso no capítulo 8.
Cap. 7:5 – Paulo lembra aos crentes judeus de que quando estavam “na carne” sob a Lei, seus esforços em guardá-la falharam; não produziram santidade em suas vidas. De fato, em vez de a Lei controlar a carne, fez o oposto – ela provocou a carne! Paulo menciona este fato: “Pois, quando estávamos na carne, as paixões dos pecados, suscitadas (provocadas) pela Lei, operavam em nossos membros para darem fruto para a morte” (AIBB). Assim que a carne é instruída a não fazer algo, isso se torna a exata coisa que ela quer fazer. J. N. Darby disse: “Se eu dissesse a um amante do dinheiro: ‘Você não deve desejar aquele ouro’, isso apenas lhe despertaria o desejo” (Collected Writings, vol. 26, pág. 158). Aqueles que aplicam princípios legais para refrear a carne descobrirão que a carne levantará sua medonha cabeça de uma maneira mais vigorosa do que nunca! Os crentes dentre os judeus deveriam saber disso melhor do que qualquer um, tendo estado sob a Lei formalmente.
Sabemos disso por experiência, mesmo que não tenhamos formalmente estado sob a Lei. Se colocarmos alguma restrição à carne, ela imediatamente se rebela contra a restrição. Isto é porque “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à Lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (cap. 8:7). Assim, colocar-se sob restrições legais em um esforço para aperfeiçoar a santidade é contraproducente, porque o guardar da Lei só produz “morte” moral naqueles que se colocam sob suas exigências. Legalistas evidentemente não sabem disso e continuam colocando seus convertidos sob a Lei. Quanto mais cedo aprendermos isso melhor; então vamos parar de procurar sucesso por meio de lei.
Paulo usa uma frase aqui (“na carne”) que é única para sua doutrina. Existem outras frases desse tipo:
- “Em Adão” é a nossa velha posição diante de Deus (1 Co 15:22).
- “Em Cristo” é a nossa nova posição diante de Deus (Rm 3:24).
- “Na carne” é o nosso antigo estado ou condição (Rm 7:5).
- “No Espírito” é o nosso novo estado ou condição (Rm 8:9).
Deve notar-se que, embora não estejamos na carne, a carne ainda está em nós. Ela não será removida até estarmos com o Senhor.
Cap. 7:6 – Paulo resume o que precede, dizendo: “Mas agora estamos livres da Lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra”. Nisso, ele reafirma o grande princípio contido nesses capítulos. É simplesmente que não podemos estar vivos naquilo em que morremos – seja em conexão com o pecado ou com a Lei. A Lei não foi posta de lado, invalidada ou revogada; é o crente que se foi. Ele está morto em virtude de sua identificação com a morte de Cristo. O crente judeu, portanto, não está mais sob a Lei.
Assim, o caminho de Deus para a santificação prática não é pelo guardar da Lei. O guardar da Lei para a santidade é um princípio carnal que pressupõe que há força no homem para produzir o bem. Este não é o caminho de Deus para a santificação prática. O legalista argumenta que o crente pode guardar a Lei porque ele tem uma nova natureza e o Espírito Santo que nele habita o capacita a fazê-lo. É verdade que a nova natureza (que nos dá vontades corretas) e o Espírito Santo (que dá o poder) capacitam o crente a andar em santidade, mas o crente não o faz por causa de exigências legais, mas porque Cristo é o seu objetivo. Quando ocupado com Cristo, o crente, na prática, excede em muito as exigências morais da Lei. Em Gálatas 5:22-23, Paulo lista várias coisas que são “o fruto do Espírito” no crente – “caridade [amor], gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança [autocontrole]”. Ele então acrescenta: “Contra estas coisas não há lei”. Isto é, não há lei que possa ser colocada sobre o crente que produza essas coisas! No sistema da graça de Deus, o crente avança sob um princípio muito mais alto do que a obediência legal à Lei de Moisés.
Uma Ilustração do Poder do Amor
A ilustração a seguir dá a ideia desse novo princípio do viver Cristão. Um homem de relevante condição contrata uma empregada para limpar sua casa enquanto ele está em seu trabalho. As responsabilidades dela são colocadas em uma lista detalhada de dez coisas, que ele pendura na parede. Sob este acordo contratual, ela é requisitada a fazer essas coisas dando o melhor de sua capacidade, pelo que é respectivamente paga. Com o passar dos dias, o homem se interessa pela moça e eles se apaixonam e se casam. Ao voltar de sua lua de mel, ele prontamente tira a lista pendurada na parede, pois o relacionamento deles agora não está mais nos termos de um contrato. Mas quando retorna do trabalho para casa, descobre que ela fez aquelas mesmas coisas da lista, mesmo não estando sob aquele contrato! Na verdade, ela fez coisas para ele que nem mesmo estavam na lista! E tudo foi feito com mais entusiasmo e alegria do que antes! O que tinha acontecido? O poder da graça e do amor do homem que conquistara o coração da moça foi derramado sobre ela, e isso a fez querer agradá-lo – e achou um gozo fazê-lo.
Assim, pelo reinar da graça no coração do crente por meio da justiça, temos o caminho de Deus para a santificação, realizado pelo poder do Espírito Santo. Com base nesse princípio, somos capazes de servir “em novidade de espírito, e não na velhice da letra”.
Uma Breve Revisão da Doutrina da Libertação em Romanos 5:12-7:6
Ao considerar os muitos detalhes que Paulo abordou nesta parte da epístola, é bem possível que se tenha perdido a linha de seu ensino sobre a libertação; portanto, uma breve revisão deve ser feita.
No capítulo 5:12-21, Paulo nos ensinou como obtivemos a natureza do pecado, da qual tão desesperadamente precisamos libertação – foi pela queda de Adão. Ele também nos ensinou que, como crentes no Senhor Jesus Cristo, não estamos mais sob a cabeça de Adão e, portanto, não estamos mais naquela velha raça, no que diz respeito à nossa posição diante de Deus. Também explicou que agora somos “feitos justos” e somos parte de uma nova raça de homens sob a Cabeça de Cristo, onde a graça reina por meio da justiça para a vida eterna.
Em Romanos 6:1-10, ele explica como esta transferência da cabeça de Adão para a Cabeça Cristo aconteceu para o crente. Agindo como nossa Cabeça federal, Cristo, ao morrer, separou-Se de todo o sistema de pecado sob Adão, e ao fazê-lo, Ele nos separou também. Por meio de nossa identificação com a morte de Cristo, Deus nos vê como “mortos” e, portanto, desconectados da raça de Adão e do princípio do pecado que a domina (v. 7). Paulo apontou para o nosso batismo como significando este grande fato. Também apontou para a cruz como sendo o lugar onde Deus julgou toda essa ordem pecaminosa de coisas, na crucificação do “velho homem”. Além disso, sendo “ressuscitado dentre os mortos” (JND), Cristo entrou em uma nova esfera de vida onde Ele “vive para Deus”, e essa esfera agora está aberta a todos os que estão em Sua nova raça, onde “também com Ele viveremos” em liberdade do pecado (vs. 8-10). Então, nos versículos 11-12, Paulo exorta o crente a “considerar” com Deus, de que essas coisas que são verdadeiras em relação a Cristo são também verdadeiras para nós. Assim, devido à nossa identificação com a morte de Cristo, temos o direito de nos considerar “certamente mortos para o pecado”, mas “vivos para Deus” naquela nova esfera em que Cristo vive para Deus.
Então, no capítulo 6:13-14, tendo nossa ocupação com Cristo e Seus interesses, onde Ele vive para Deus em ressurreição, somos exortados a nos apresentar a Ele e a começar a praticar a justiça, um ato de cada vez. E, pela repetição de bons hábitos, nos tornamos servos da justiça. Assim, sob o princípio do deslocamento, a carne não tem a oportunidade de agir em nossas vidas.
No capítulo 6:15-23, Paulo adverte que, se escolhermos viver nossas vidas na esfera da carne, a carne ganhará o controle sobre nós, e ficaremos sob sua escravidão. É, portanto, imperativo que vivamos na prática na esfera certa de vida, onde há uma nova ordem de objetos (“as coisas do Espírito” – cap. 8:5) para ocupar nossos corações. Ele também mostra que andar em santidade é algo progressivo: quanto mais praticamos a justiça como um hábito, mais santos nos tornamos.
Por fim, no capítulo 7:1-6, o princípio da identificação do crente com a morte de Cristo é aplicado àqueles sob a Lei. Uma vez que eles estão mortos com Cristo, e a Lei não tem domínio sobre um homem morto, o crente é libertado da escravidão da Lei.
UM PARÊNTESE: O PROCESSO EXPERIMENTAL PELO QUAL PASSA UMA ALMA AO APRENDER A APLICAR OS PRINCÍPIOS DA LIBERTAÇÃO – Capítulo 7:7-25
Neste ponto do texto, um longo parêntese é inserido para nos mostrar que a libertação do poder e da ação da natureza pecaminosa não é obtida por nossa própria força. Essa é uma lição importante para se aprender e, na maioria dos casos, é aprendida lentamente. Essa lentidão decorre de não se entender que não apenas fazíamos coisas más, mas que nós mesmos somos completamente maus. Devemos aprender que não há nada em nós, naturalmente falando, que possa nos capacitar para um viver santo e, portanto, é inútil olharmos para nosso interior para a libertação do pecado. O problema é que somos lentos em desistir de nós mesmos e admitir que somos impotentes. Achamos que ainda existe algo de bom em nós – mesmo que seja um pouco – e, consequentemente, tentamos ajudar o processo. Mas esta é uma fórmula para o fracasso. Portanto, é necessário que tenhamos alguma experiência prática quanto à verdadeira maldade de nossa carne e, assim, desistamos de nós mesmos e nos voltemos para Cristo para a libertação prática. Nesse parêntese, Paulo ilustra o processo experimental pelo qual uma pessoa passa ao aprender a desistir de si mesma e a aplicar os princípios de Deus de libertação (conforme dados no capítulo 6) – os quais levam à libertação e à santificação prática.
O Propósito da Lei
Paulo acaba de nos ensinar que os crentes no Senhor Jesus Cristo não estão debaixo da Lei porque estão mortos com Cristo (cap. 7:1-6). Muitos Cristãos aceitam esta verdade intelectualmente, mas acreditam que, embora não estejam sob a Lei formalmente, ela é uma boa regra de vida a ser seguida para uma vida santa. Com boas intenções, eles podem tentar viver pelos Dez Mandamentos, ou por algum outro conjunto de regras impostas a si mesmos. Isso é bem-intencionado, mas não é o caminho de Deus para a santificação prática.
A pessoa que pensa nessa linha não aprendeu o que Paulo nos ensina no capítulo 7:5 – a saber, que todos esses esforços são contraproducentes e apenas estimulam a carne. Como precisamos aprender esta verdade não apenas doutrinalmente, mas também praticamente, Paulo demonstra este processo neste parêntese nos versículos 7-25.
Toda essa passagem entre parênteses é escrita na primeira pessoa do singular para enfatizar o fato de que cada crente deve aprender por si mesmo que a libertação do poder do pecado não é encontrada no esforço próprio. O versículo 14a é uma exceção porque está falando do que é o conhecimento Cristão normal – “Porque [nós] bem sabemos que a Lei é espiritual”. Como regra, na epístola, quando Paulo fala do que é comum aos Cristãos – seja em nossa posição e estado ou o nosso conhecimento – ele dirá: “[nós] temos” (cap. 5:1, 2, 11, etc.) ou “[nós] sabemos” (cap. 7:14, 8:22). Fora essa única exceção, o apóstolo usa “eu” ao longo desta passagem para retratar as experiências pessoais de um homem que não são experiências Cristãs normais, não obstante ser ele nascido de Deus.
Quem é a Pessoa no Conflito Descrito em Romanos 7?
Muitos pensam que Paulo estava se referindo à sua experiência pessoal, porque ele fala na primeira pessoa. Mas isso não poderia ser assim porque ele diz: “E eu, nalgum tempo, vivia sem Lei” (v. 9). Paulo nunca esteve nessa posição antes de ser salvo; ele foi criado como um austero fariseu que viveu sob a Lei desde o nascimento (At 23:6, 26:5; Fp 3:5). Se não é o próprio Paulo, a quem ele se refere? É um incrédulo? Não, não poderia ser um incrédulo porque ele diz: “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na Lei de Deus” (v. 22). Tal desejo só poderia ser o de uma pessoa com uma nova natureza – isto é, alguém que nasceu de novo. Ele está falando então de um Cristão? Não exatamente. Embora essa pessoa seja nascida de Deus e, portanto, é uma criança de Deus, o estado em que ela está não é certamente o de um Cristão. Ele diz: “mas eu sou carnal, vendido sob o pecado” (v. 14). Por estar em escravidão do pecado, como tal pessoa está, dificilmente poderia se tratar do estado de um Cristão. Um Cristão é aquele que está descansando na obra consumada de Cristo em relação aos seus pecados, e ele sabe que eles se foram. Ele é, portanto, habitado pelo Espírito Santo, e como resultado, tem paz com Deus e libertação do pecado. Este parêntese não descreve uma pessoa nessa feliz condição.
Vivificado, Mas Ainda Não Salvo
Que tipo de pessoa Paulo está descrevendo então? É uma alma vivificada (uma criança de Deus) que ainda não tem paz ou libertação, porque não está selada com o Espírito. A obra de Deus começou em sua alma, mas essa obra não está completa. Por isso, a pessoa está vivificada, mas ainda não está salva. Como já mencionado, a palavra “salvo”, no sentido quando Paulo a aplica à nossa eterna salvação da pena dos nossos pecados, tem a ver com um crente estar descansando em sua alma por confiar na obra consumada de Cristo e estar selado com o Espírito Santo. (Ef 1:13). Esta pessoa hipotética em Romanos 7 ainda não chegou lá ainda. Por mais estranho que possa parecer, ela não é nem salva nem perdida! Isso pode ser um pouco chocante para os Cristãos evangélicos que ensinam e pregam que todos os homens são salvos ou perdidos, e não há nada entre os dois. No entanto, isso é o que a Escritura ensina.
Concernente a este homem em Romanos 7, C. H. Brown disse: “Ele está meio salvo!” Ele está seguro no que diz respeito ao seu destino eterno (porque ele tem vida divina), mas ele não está salvo – no sentido que Paulo dá à palavra. Cornélio é um exemplo da vida real de uma pessoa neste estado intermediário. Antes de Pedro encontrá-lo, Cornélio não estava perdido. Ele era evidentemente nascido de Deus, sendo um homem temente a Deus, devoto, e um homem cujas orações foram consideradas diante de Deus (At 10:2-4); o Senhor disse a Pedro que Ele havia purificado esse tal homem (At 10:15, 28). Mas Cornélio não era salvo! Isso fica claro pelo fato de que Pedro deveria dizer-lhe “palavras” pelas quais ele e toda a casa dele poderiam ser “salvos” (At 11:14).
Neste estado descrito em Romanos 7, a pessoa entra em conflito para manter as exigências de lei (ou algum conjunto de regras impostas a si mesma), mas falha porque sua antiga natureza prevalece sobre ela. Seu problema é que está buscando libertação por meio de seus próprios esforços, e isso, ela tem de aprender pela experiência, que não é possível.
“Nascido de Novo” e “Salvo” Não São Sinônimos
A Escritura distingue “nascer de novo” (vivificado) de ser “salvo”. Nascido de novo tem a ver com a comunicação da vida divina para uma pessoa (Jo 3:3-5; Tg 1:18; 1 Pe 1:23); é o começo da obra de Deus em uma alma. Ao passo que a salvação é a conclusão dessa obra, e é confirmada como tal pelo crente sendo selado com o Espírito (Ef 1:13). A libertação do poder do pecado, como veremos, está conectada com uma alma estando salva no pleno sentido Cristão da palavra.
J. N. Darby disse: “Uma vivificação interior nunca é tratada nas Escrituras como salvação; a ideia de regeneração foi perdida. Cornélio foi vivificado sem qualquer dúvida, mas foi instruído a ir a Pedro para ouvir as palavras por meio das quais ele poderia ser salvo… Eu não posso dizer que um homem é salvo a menos que sua consciência seja purificada. A Igreja perdeu o sentido de ser salvo. As pessoas acham que é suficiente nascer de novo. Regeneração é confundida com possessão de vida… Um desejo por santidade seria uma evidência de uma alma vivificada. Mas não digo que ele é salvo; As Escrituras não dizem isso” (Collected Writings – J. N. Darby, vol. 28, p. 368).
W. Kelly disse: “De fato, acho que um grande erro no momento presente é tornar a salvação muito barata e uma palavra muito comum. Você encontrará muitos evangélicos dizendo constantemente que quando um homem é convertido ele é salvo: no entanto, provavelmente, é muito prematuro dizer isso. Se for verdadeiramente convertido, ele será salvo, mas não há garantia em se afirmar que toda pessoa convertida é salva, porque ela ainda pode estar com dúvidas e medos. ‘Salvo’ tira a pessoa de todo o senso de condenação – traz a pessoa para Deus conscientemente livre em Cristo, não meramente diante de Deus com sinceridade de desejo, segundo a piedade. Uma alma não é convertida a menos que seja conscientemente trazida a Deus; mas aí a pessoa pode ficar mais infeliz e desesperada nesse estado. As Escrituras nos permitem chamar tal pessoa de ‘salva’? Certamente que não. O ‘salvo’ é alguém que sendo justificado pela fé, tem paz com Deus… Por isso, é um erro considerar como salva qualquer pessoa que não tenha sido trazida para um relacionamento feliz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Lectures Introductory to the Study of the Minor Prophets – W. Kelly, págs. 375-379).
A pessoa que Paulo hipoteticamente descreve nesta passagem em Romanos 7 está no estado que o Sr. Darby e o Sr. Kelly comentam. Ela está, quanto à sua experiência, entre o nascer de novo e o ser salva. Nota: não há menção aqui de que ela creia na obra consumada de Cristo ou de que tenha o selo da habitação do Espírito. De fato, você não pode ler esta passagem sem ficar impressionado com a ausência marcante dessas duas coisas. Contudo, há evidências inequívocas de que ela nasceu de Deus (por exemplo, o v. 22).
Quatro Descobertas
Como mencionado, nesta passagem, Paulo descreve o processo pelo qual uma alma vivificada passa para obter a libertação. É realmente uma série de quatro descobertas que alguém faz para ser salvo – embora não esteja completamente consciente disso. (Dizemos isso porque os que foram salvos na infância geralmente não experimentam essa luta em grau significativo, antes de confiar na obra de Cristo e, muitas vezes, passam por algo parecido algum tempo depois de serem salvos, o que é descrito em Gálatas 5:16-17. É algo semelhante, mas não exatamente a mesma coisa. Gálatas 5 descreve alguém com o Espírito Santo, enquanto que em Romanos 7 ele não tem o Espírito).
Essas descobertas estão descritas na segunda metade do capítulo 7 da seguinte maneira:
1) ELE DESCOBRE A PRESENÇA E A ATIVIDADE DA NATUREZA PECAMINOSA EM SUA ALMA (cap. 7:7-13)
Na seção anterior da epístola, que tem a ver com os pecados, Paulo explicou que a Lei ilumina a consciência dos homens e mostra-lhes que eles pecaram (Rm 3:19-20). Isto testemunha o fato de que todos pecaram e estão destituídos (aquém) da glória de Deus (cap. 3:23; 1 Tm 1:8-10; Tg 2:9-10). Agora nesta seção da epístola, que vem tratando do assunto do pecado (a natureza maligna no homem), Paulo mostra que a Lei também fará com que uma alma vivificada detecte a presença da natureza do pecado em si mesma, e assim se torne consciente do que ela é diante de Deus em seu estado pecaminoso.
Cap. 7:7-8 – Como mencionado, a primeira obra de Deus em nossas almas é a comunicação da vida divina por meio do novo nascimento (vivificação), pelo qual nos tornamos conscientes de Deus de uma nova maneira. Como resultado de ter vida divina, haverá uma genuína busca por Deus e por santidade. Se a pessoa teve uma educação na qual foi exposta à Lei – como Paulo supõe aqui – ela tentará sinceramente atender às exigências da Lei. Tendo luz limitada, irá presumir que o guardar da Lei é o caminho para obter santidade, não sabendo que esse não é o caminho de Deus para a santificação prática.
Já que o guardar da Lei não é o caminho de Deus para a santidade, poderíamos concluir que a Lei é inútil, até mesmo pecaminosa. Paulo antecipa essa suposição equivocada e diz: “Que diremos pois? É a Lei pecado? De modo nenhum [longe esteja o pensamento – JND]: mas eu não conheci o pecado [a natureza pecaminosa] senão pela Lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a Lei não dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião [um ponto para ataque – JND] pelo mandamento, obrou em mim toda a concupiscência: porquanto sem a Lei estava morto o pecado”. Isso mostra que a Lei certamente tem um uso. O décimo mandamento que Paulo cita aqui se distingue dos outros nove, pois não trata de uma ação má, mas sim de uma concupiscência no coração. Somos condenados por este mandamento, sem termos feito nenhum ato específico de pecado, e assim somos levados a perceber que temos uma natureza corrupta. Enquanto a Lei certamente trata de atos de pecado (obras más), dificilmente precisamos dela para nos dizer que fizemos algo errado porque temos consciência. Mas a consciência não nos revelará nosso estado interior de pecado. A Lei, por outro lado, faz com que a alma vivificada descubra a presença de sua natureza maligna.
J. N. Darby observou: “A Lei tem seu uso, a saber, em trazer a consciência do que somos – do nosso estado. Foi culpa da Lei, este domínio do pecado, enquanto estávamos sob ela? Não, foi culpa do pecado e da concupiscência que a Lei condenou. ‘Mas isso’, diz o apóstolo, ‘eu não conheceria, se a Lei não dissesse: Não cobiçarás’. Se ele tivesse cometido um homicídio, teria se dado conta do fato; sua consciência natural teria tomado conhecimento disso. Mas não estamos tratando dos pecados agora (como antes observado), mas do pecado. Eu não tinha conhecimento disso, a menos que a Lei tivesse lidado com seus primeiros movimentos como malignos. Muitos não cometeram crimes – nem mataram, nem roubaram nem cometeram adultério; mas quem nunca cobiçou?…. O objetivo aqui é detectar a natureza maligna por seu primeiro movimento – concupiscência. Não é, de fato, o que fizemos, mas o que somos” (Collected Writings, vol. 26, pág. 158-159). Assim, se permitirmos que o décimo mandamento da Lei nos examine, ele nos mostrará o que somos diante de Deus quanto à nossa natureza.
Paulo diz: “porquanto sem a Lei estava morto o pecado” (v. 8b). Isto é, antes que a Lei tenha ação sobre a alma de uma pessoa, ela está inconsciente quanto à presença e atividade de sua natureza pecaminosa. Nesse estado, ela não está ciente das obras do pecado em seu interior porque sua consciência não foi penetrada pela voz de autoridade das santas exigências de Deus. A pessoa vive de acordo com a energia irresistível do pecado e é levada inconscientemente por sua força. Nesse estado, não é possível que esteja sensível à presença da natureza pecaminosa, porque está “absolutamente identificada” com ela.
Cap. 7:9-10 – Ele diz (hipoteticamente): “E eu, nalgum tempo, vivia sem Lei”. Isto é, na condição de estando “morto o pecado”, ele estava vivo para a vida aqui na Terra sob os ditames do pecado, mas bastante inconsciente do seu poder e seu caráter escravizador. Mas quando Deus começou a trabalhar em sua alma vivificada, tudo mudou. Ele diz: “mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri”. Quando a voz autoritária de Deus na Lei alcançou sua alma vivificada, isto colocou o pecado em ação – “reviveu o pecado”. A Lei traçou uma linha e o proibiu de passar por sobre a linha. Dizia: “Não cobiçarás”. O pecado respondeu prontamente passando por cima dela, e ele desejou em seu coração a exata coisa que a Lei proibia. E, como consequência de quebrar a Lei, a Lei o condenou à morte como um transgressor, e assim ele diz, “e eu morri”. Ele concluiu: “E o mandamento que era para vida, achei eu que me era para morte”. Isto é, a Lei coloca a vida diante de nós, dizendo: “faze isso, e viverás” (Lc 10:28), mas como ele não guardou as exigências da Lei, ela o condenou à morte.
M. C. G. disse: “Como um nadador tranquilamente flutuando na correnteza. Ele não sente a força da correnteza, enquanto nela flutua, pois está temporária e absolutamente identificado com ela. Todo movimento dessa correnteza é também seu movimento; para ele, a quantidade de energia viva da correnteza é desconhecida e sem vida. Mas, enquanto desfruta de forma indiferente dos momentos que passam, uma voz da margem o alcança com séria e autoritária advertência sobre as quedas que estão escondidas da vista, em direção às quais a correnteza traiçoeira certamente o carrega. E agora? Coloque novamente em termos das Escrituras: ‘mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri’. Sendo ouvida a advertência, a indiferença é banida rapidamente. O nadador, alarmado com o perigo repentinamente descoberto, se empenha para esforçar todos os seus músculos para avançar contra a correnteza que outrora o carregava em seu seio perfeitamente sem perturbações; ele agora se tornou perfeitamente consciente da energia viva da correnteza; ela está viva com um poder invencível para ele agora, e com ela a sentença de morte, qual seja, que o esforço próprio, foi provado ser inútil, ‘eu morri’” (The Christian Friend, vol. 23, pág. 157).
Cap. 7:11-13 – Paulo diz (hipoteticamente) que o pecado o havia “enganado” totalmente, tornando-o insensível à sua condição deplorável. Também, pelo 10º mandamento, o “matou”. A questão é: “Quem é o culpado por esta morte?” Podemos pensar que, se a Lei provoca a concupiscência na alma e causa a morte, então certamente deve ser algo mau. Longe de ser mau, Paulo diz que o mandamento é “santo, justo e bom”. Assim, a Lei não tem culpa nesta morte. Ele então pergunta: “Logo tornou-se-me o bom em morte?” Isto é, foi a Lei que morreu? Ele responde: “De modo nenhum [longe esteja o pensamento – JND]”. A Lei não havia morrido; foi ele quem morreu! A Lei (particularmente o 10º mandamento) apenas fez com que o pecado se “mostrasse” como realmente é; ela traz à luz o verdadeiro caráter da natureza pecaminosa como sendo “excessivamente maligno”.
Assim, a Lei não só fará com que um homem descubra que pecou, mas se entendida apropriadamente, também lhe mostrará que seu estado é excessivamente pecaminoso. J. N. Darby disse: “A Lei se aplica ao homem na carne; mas nós morremos, não estamos na carne: quando estávamos, aplicava-se. Esta, aplicada à carne, provocou o pecado e condenou o pecador. Mas ele morreu quando estava sob a Lei – morreu sob ela em Cristo” (Collected Writings, vol. 10, pág. 10). Isso mostra que a Lei serve a um propósito; ao condenar a concupiscência no coração humano, manifesta o fato de que todos os homens têm uma natureza pecaminosa – quem não cobiçou? E, no fracasso de uma pessoa em manter a Lei, ela o condena à morte. Mas tendo operado a morte na pessoa, a Lei então não tem mais aplicação para ela, pois não tem nada a dizer a um homem morto. Assim, está livre dela! (cap. 6:7) Esse conhecimento é importante no processo de obtenção de libertação, pois não será por meio da Lei. Ela detecta a concupiscência, mas não pode libertar uma pessoa dela.
2) ELE DESCOBRE QUE NÃO TEM PODER EM SI MESMO PARA CONTROLAR A SUA NATUREZA PECAMINOSA (cap. 7:14-19)
Tendo descoberto a presença e atividade da natureza pecaminosa em nossas almas, frequentemente somos lentos em aceitar o verdadeiro caráter da carne – que é incorrigivelmente mau. Assim, temos de aprender esse triste fato pela experiência – e isso pode ser amargo e terrivelmente humilhante.
Sendo uma alma vivificada, a pessoa que busca a libertação terá um desejo genuíno de agradar a Deus, e responderá com um esforço honesto tentando controlar a atividade de sua natureza pecaminosa. Tendo neste estágio de sua experiência uma luz limitada quanto aos princípios envolvidos no caminho de Deus para libertação, ela pensará que é seu dever lutar contra a carne para mantê-la dominada. Assim, o conflito começa em sinceridade. Mas invariavelmente, ao combater, ela descobre – como Philip Melancthon (amigo mais próximo de Martinho Lutero) – descobriu e disse, “O velho Adão é forte demais para o jovem Filipe!” Enquanto Melancthon usa “Adão” – substituindo-o pela carne – o que não está doutrinariamente correto, nós entendemos bem o que ele quis dizer.
A imagem real retratada nestes versículos é a de uma pessoa (quanto à sua consciência) estando sob a Lei, e lutando na carne para guardar as exigências da Lei – mas continuamente fracassando. Em vez de encontrar libertação por combater a carne, quanto mais conflito, mais ele o leva ao cativeiro. A pessoa não encontra nenhuma libertação nessa linha. Em seu fracasso em atender as exigências da Lei, ela corretamente justifica a Lei, afirmando que ela é “espiritual” (v. 14); o problema, conclui corretamente a pessoa, é consigo mesma – porque é “carnal” e “vendida (como escravo) sob o pecado (seu senhor)”.
Vs. 15-18 – Paulo descreve o conflito: “Porque o que faço não o aprovo, pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a Lei, que é boa. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum: e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem”. (Antes de prosseguir, tenhamos em mente que este não é um conflito para ser perdoado, justificado ou salvo da pena de nossos pecados. Pelo contrário, é um conflito para libertação da atividade interior da natureza pecaminosa. Portanto, ele não está buscando libertação da pena eterna do pecado, mas do poder presente do pecado.) Há coisas boas que ele quer fazer, mas acaba não as fazendo. E há coisas más que não quer fazer; essas ele acaba fazendo! Por repetidos fracassos, ele se torna frustrado e extremamente infeliz consigo mesmo porque continua fazendo as coisas que odeia e não consegue encontrar o poder para parar!
F. B. Hole disse: “Vamos lembrar do que aprendemos no capítulo 6, pois aí nos foi mostrado o caminho. Percebendo pela fé que somos identificados com Cristo em Sua morte, entendemos que devemos nos considerar mortos para o pecado e vivos para Deus, e consequentemente, devemos apresentar a nós mesmos e nossos membros a Deus para Sua vontade e prazer. Nossas almas concordam plenamente com isso como correto e adequado, e dizemos a nós mesmos, talvez com considerável entusiasmo: ‘Exato! Isso é o que vou fazer’. Nós tentamos fazer isso, e daí recebemos um choque muito desagradável. Nossas intenções são as melhores, mas de alguma forma estamos sem poder para colocar essas coisas em prática. Nós vemos o bem e o aprovamos em nossas mentes, mas falhamos em fazê-lo. Nós reconhecemos o mal o qual desaprovamos, e ainda assim somos enganados por ele. É um estado de coisas muito angustiante e humilhante” (Paul’s Epistles, vol. 1, pág. 28).
Vemos por isso que desejar fazer as coisas boas ordenadas na Lei não é suficiente para dar poder à pessoa para fazê-las. Seu desejo está correto, mas falta poder. Seu problema é que está tentando com sua própria força guardar a Lei e fazer o que é correto e bom. Isso é visto pelo uso repetido dos pronomes na primeira pessoa – eu, mim, meu, eu mesmo – que ocorrem mais de 40 vezes nesse parêntese! Alguém disse: “Ele teve uma overdose de vitamina Eu”. Seu erro é que está esperando algo de si mesmo para efetuar essa libertação – ou pelo menos ajudá-lo nisso. Essencialmente, ele está tentando fazer isso na sua carne natural, mas não percebe que a carne bem-intencionada ainda é a carne. Ele está tentando realizar algo que Deus declarou ser uma impossibilidade absoluta – a saber, tornar a carne “sujeita à Lei de Deus” (cap. 8:7). Isso nos mostra que uma pessoa pode ter bastante clareza em seu entendimento de que a libertação da pena de nossos pecados não pode ser assegurada por seus próprios esforços, mas de alguma forma pensar que a libertação do poder do pecado interior é algo que pode efetuar por meio de seu próprio esforço. A verdade é que todos os aspectos da salvação de Deus – passados, presentes e futuros – são por Sua graça e somente por isso.
Como mencionado, o problema é que a pessoa retratada aqui está procurando pelo poder de libertação no lugar errado. Ela precisa aprender que o remédio não está em si mesma, mas em outro. É triste dizer que esse erro está no fundo de grande parte da psicologia e aconselhamento Cristãos de hoje. Concentra-se na pessoa e em seu problema, o que não resolve a questão e, em alguns casos a intensifica. Não haverá vitória por meio de introspecção. O que a pessoa precisa é tirar os olhos de si mesma. No entanto, ela não desistirá de si mesma nem deixará de procurar a solução até entender sua verdadeira maldade. Ela precisa entender que não só fez coisas más (pecados), mas que ele mesmo (pecado) é completamente mau. Esta é uma lição importante para se aprender e muitas vezes dolorosa. J. N. Darby disse: “Esta lição de falta de força é muito mais humilhante de se aprender do que admitir o fato de que certos pecados foram cometidos em algum momento passado da minha vida”. H. Smith disse: “O fato de não termos força é, talvez, a verdade mais difícil e mais humilhante de se aprender”. Mas devemos aprendê-la.
Podemos perguntar: “Como uma pessoa descobre sua completa maldade?” A resposta é: “Tentando viver uma vida boa e santa”. Essa é na verdade a razão por que Deus permite que a pessoa, em busca de libertação, passe por esse conflito. No processo, a pessoa é permitida tentar tudo o que for humanamente possível (em sua própria força) para obter a vitória sobre a carne. Ao fazê-lo, descobrirá que não há nada em si que possa fazer isso e só então começará a buscar ajuda em outro lugar. Quanto mais diligentemente ela em sua carne natural fizer o que é certo e bom, melhor será a lição aprendida – pois, mais cedo descobrirá a verdade sobre si mesma e desistirá de olhar para dentro. Em conexão com isto, J. N. Darby disse: “Estude bem estas palavras: ‘a carne para nada aproveita’” (Jo 6:63). Quando tivermos aprendido isso em certo nível, diremos com convicção: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (v. 18) e deixaremos de olhar internamente em busca da solução. Note que ele não diz: “Eu não faço nada de bom”, mas “em mim… não habita bem algum”. Isso, mais uma vez, mostra que não é uma questão do que temos feito (pecados), mas do que somos (pecado). Conhecer este grande fato sobre nós mesmos é um lugar importante para se chegar em nossas almas, porque não pode haver progresso real em santidade até que tenhamos aprendido isso. Esse conhecimento em si não é o que traz a libertação, mas é necessário no processo.
Essa verdade – de que não há bem no homem na carne – é algo que diferencia o Cristianismo de todas as outras religiões do mundo. As religiões do mundo ensinam que há algo de bom em todos os homens. Elas acham que, embora o homem faça coisas más, ele é inerentemente bom. “O evangelho de Deus” (cap. 1:1), por outro lado, anuncia que o homem na carne é tão incuravelmente mau que Deus não tenta consertar ou reabilitar a natureza caída do homem. Em vez disso, Ele começa de novo, comunicando uma nova vida e natureza por meio de um novo nascimento, e depois trabalha isso nos crentes para trazê-los à bênção. De fato, ambas as naturezas (a velha e a nova) não podem ser melhoradas! A velha natureza é tão má que não pode ser melhorada; Deus a condena(cap. 8:3), e a nova natureza que é a própria vida de Cristo, é tão boa e perfeita que também não pode ser melhorada! As falsas religiões do mundo operam na premissa errada de que o homem é inerentemente bom e ensinam que a religião e a prática religiosa são o que o homem na carne precisa – e isso (eles pensam) evidenciará o bem no homem, e como resultado, o mundo será um lugar melhor. No entanto, a Bíblia ensina que não é religião que o homem caído precisa; é uma nova vida com uma nova natureza!
Assim, o homem retratado aqui aprende que não só não há nada de bom nele – que ele é completamente pecador – mas também que ele não tem força para controlar a carne – que ele está completamente perdido.
Todo o problema com o homem descrito neste parêntese é que ele está procurando por algo bom naquilo que Deus condenou como não sendo bom (cap. 8:3). Embora ele tenha mentalmente concordado com a verdade de que “não há homem justo sobre a Terra, que faça bem, e nunca peque” (cap. 3:12; Ec 7:20), ele evidentemente não aprendeu que “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (v. 18). Isso mostra que reconhecer certas verdades (e até mesmo expressá-las claramente) não é necessariamente o mesmo que conhecê-las. A palavra “sei” nesse versículo é “oida” no grego, que denota um conhecimento consciente interno, em vez de um mero conhecimento superficial. Por isso, há uma diferença entre entender intelectualmente esta verdade sobre nós mesmos, e conhecê-la por uma percepção prática dela. Um caso em questão é ilustrado em um grupo de estudantes de uma escola bíblica que estava estudando a queda do homem. Quando o professor chegou, disseram-lhe: “Encontramos o pecado original na Bíblia!” Ele respondeu: “Mas vocês o encontraram em seus corações?” Esta é a lição que está sendo aprendida pelo homem neste capítulo.
3) ELE DESCOBRE QUE TEM DUAS NATUREZAS (cap. 7:20-23)
No processo deste conflito, ele faz outra descoberta – que tem duas naturezas conflitantes. Ele diz: “Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta Lei em mim: que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na Lei de Deus. Mas vejo nos meus membros outra lei que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros”. Então, identifica dois princípios opostos em ação em sua alma, e ele é capaz de distingui-los claramente: existe o “eu” que se deleita em fazer o bem, e o “eu” que faz o mal. As pessoas chamam isso de dupla personalidade, mas a Bíblia indica que é porque os nascidos de Deus têm duas naturezas. Isso os torna a mais singular das criaturas de Deus. Anjos, homens caídos e todos os animais da criação inferior têm apenas uma natureza, mas os Cristãos têm duas! Uma de suas naturezas é mais inferior do que a de um animal, e a outra é mais superior que a de um anjo!
Como resultado dessa descoberta, o homem então se vê como separado e distanciado desse seu princípio maligno. Ele diz: “Já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim”. Não é que ele esteja se recusando a assumir responsabilidade pela pecaminosidade de sua natureza caída e se desculpando; ele está simplesmente identificando o princípio do mal que nele habita como sendo algo distinto. (Claro, se e quando a velha natureza age, devemos assumir a autoria dos pecados que cometemos e confessá-los como nossos pecados – 1 Jo 1:9). Ao fazer isso, o homem neste conflito chega a um ponto em que não mais chama a velha natureza de “eu”. Em vez disso, ele chama de “o pecado que habita em mim” (v. 20), “o mal está comigo” (V. 21), “vejo nos meus membros outra lei” (v. 23) e “a carne” (v. 25). Ao dizer essas coisas, continua a chamar a nova natureza de “eu”. Isso indica um progresso em seu entendimento que corresponde ao que Paulo ensinou no capítulo 6 em relação à nossa identificação com a morte de Cristo, nossa Cabeça federal. Em outras palavras, que temos o direito de não mais pensar sob o ponto de vista da posição de nosso velho Adão e na nossa velha natureza carnal, mas de nossa nova posição em Cristo e de nossa nova natureza.
4) ELE DESCOBRE QUE HÁ UMA PESSOA DIVINA FORA DELE QUE PODE LIVRÁ-LO (cap. 7:24-25)
Ao ver a carne como uma entidade separada de si mesmo, mas ainda estando atrelado a ela, temos uma imagem neste homem da nova vida e natureza que aborrece a velha, e desejando se livrar dela. Ele fala da velha natureza e sua corrupção como se tivesse um corpo humano em decomposição preso às costas. A nova vida nesse estado é qualquer coisa, menos feliz. Isso o leva a gritar: “Miserável homem que eu sou!”
Tendo aprendido que não pode haver ajuda vinda de dentro, ele olha para longe de si, para alguém que o livre dessa condição. Ele diz: “Quem me livrará do corpo desta morte?” Não é simplesmente que ele procure por libertação, mas procura por um libertador. Isto é importante, pois se simplesmente procurarmos a libertação, poderemos estar inclinados a tentar algum programa de autoajuda, ou procurar algum pensamento “chave” que achamos que nos dará uma vitória instantânea sobre a carne. Muitos crentes sinceros têm estado confusos a esse respeito, e têm buscado libertação da carne pelo ascetismo[14], legalismo, etc. Mas notemos que a questão não é: “Como serei livrado?” Mas “Quem me livrará?”.
[14]    N. do T.: Conjunto de rígidas normas disciplinares de conduta, pautadas pela austeridade e pela renúncia aos prazeres corporais e desejos mundanos, como forma de atingir a iluminação espiritual e a perfeição moral e religiosa. ↑
Quando são despedaçadas toda esperança e esforço próprios em busca de uma vida piedosa, e ele olha para “Jesus Cristo nosso Senhor” na fé, ele encontra a libertação. Consequentemente, exulta em agradecimento a Deus; “Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor”. Isso nos mostra que a libertação não vem de nossas orações, ou pelo nosso conhecimento das Escrituras, ou por tentar nos afastar dos maus pensamentos, repreendendo-nos a nós mesmos, etc., mas simplesmente desviando o olhar de nós mesmos para Cristo e sendo preenchidos por Ele e Seus interesses. No que diz respeito à vitória sobre este inimigo interior (a carne), precisamos entender que tudo o que precisa ser feito já foi feito pelo Senhor Jesus Cristo.
V. 25 – Tendo experimentado a libertação por olhar para Cristo, ele diz: “Assim que eu mesmo com o entendimento sirvo à Lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado”. Esta última afirmação no parêntese é mencionada para mostrar que a alma que recebe libertação ainda tem duas naturezas, e terá estes dois princípios conflitantes em si até que o Senhor venha, ou até que morra. Alguns Cristãos (o Movimento de Santidade do Exército da Salvação, o Metodismo, etc.) pensam erroneamente que, ao receber a libertação, a natureza pecaminosa é “reduzida a cinzas” no crente. No entanto, é um erro pensar que a carne é removida de nós quando obtemos a libertação do pecado. Este aspecto da libertação não é da presença do pecado, mas do poder do pecado. Note novamente: ele usa “eu” quando fala da nova natureza, mas se recusa a usá-lo em referência à velha natureza. Ele chama a sua velha natureza de “a carne”, mas não se apossará dela como sendo “eu”.
A velha natureza pecaminosa ainda pode nos atrair, mas temos o poder de não ceder a ela. Podemos ser surdos aos seus comandos, cegos às suas tentações e insensíveis ao seu poder. Uma alegoria foi usada para ilustrar isso: uma tripulação de barco à vela está no mar com seu capitão e, por alguma razão, o capitão perde a cabeça e fica furioso. A tripulação não pode tê-lo como seu capitão naquele estado, pois ele é capaz de tirar o navio do curso e afogá-los a todos. Assim, eles o tiram de seu posto e o trancam em sua cabine, e nomeiam outro capitão. Em seu estado enlouquecido, através da janela de sua cabine, o velho capitão ainda dá ordens para sua tripulação, mas ela não escuta porque não o considera mais como seu capitão, e não se apresenta às suas ordens. Eles se apresentaram de uma vez por todas ao novo capitão.
Quando uma Pessoa Passa por Essa Experiência em Sua História com Deus?
J. N. Darby disse: “Alguns Cristãos constrangem as almas a terem a experiência do capítulo 7, para que a salvação do capítulo 5 seja verdadeira. A salvação pode vir antes. Quando isso acontece e a aceitação em Cristo é vista com simplicidade, toda a vida Cristã subsequente é de graça assegurada, salvo em casos de disciplina específica. Mas a aceitação do capítulo 5 pode ser conhecida espontaneamente primeiro (mas então a justificação e perdão aplica-se ao que fizemos e não em sermos a justiça de Deus em Cristo): mas se assim for, conhecimento próprio e nosso lugar em Cristo devem ser aprendidos depois.” (Collected Writings, vol. 26, pág. 145).
Ele também disse: “Eu não acredito que você saia de Romanos 7 até que esteja dentro dele; perfeccionistas dizem que você pode pular essa parte. O fato é que você não pode estar dentro da justificação e ser liberto do pecado até descobrir que não há esperança para você” (Collected Writings, vol. 34, pág. 407).
Três Conflitos Diferentes de Alma
Embora Romanos 7 não seja uma experiência Cristã, propriamente falando, muitos Cristãos a experimentam de maneira modificada. Muitas vezes eles estão experimentando o conflito mencionado em Gálatas 5:16-17, que é semelhante, e pensam que é a experiência de Romanos 7. Há, no entanto, uma diferença nesses dois conflitos de alma. Romanos 7 descreve um conflito entre as duas naturezas em um filho de Deus lutando uma com a outra. Isso é porque ele não tem a habitação do Espírito. Enquanto em Gálatas 5:16-17, a pessoa é vista como tendo o Espírito, e o conflito é entre a carne e o Espírito. Este conflito resulta de um crente não andar no Espírito, porque está em um mau estado de alma. Ambos os conflitos não é Cristianismo normal.
Efésios 6:10-18 descreve um terceiro conflito de alma que é normal ao Cristianismo. Retrata um crente, não apenas tendo o Espírito, mas também andando no Espírito – assim ele está em bom estado de alma e, portanto, desfrutando de sua porção celestial em Cristo. Sendo este o caso, Satanás e seus emissários estão armados contra ele em um esforço para estragar seu prazer nessas coisas.
OS RESULTADOS FELIZES QUE FLUEM DA APLICAÇÃO DA DOUTRINA DA LIBERTAÇÃO – Cap. 8:1-17
O Espírito Santo – O Poder para Libertação e Santificação Prática
A experiência do homem no capítulo anterior terminou com ele regozijando-se em sua libertação do pecado e dando graças a Deus por isso. Embora Paulo nos tenha dito como ele chegou a esse estado feliz – desviando o olhar de si mesmo e colocando-o no “Jesus Cristo nosso Senhor” – ele não explicou por que meio isso foi realizado. Isso é agora retomado no capítulo 8. Neste capítulo, Paulo explica que o poder de libertação vem pelo fato de o crente ter a habitação do Espírito Santo. Assim, ele agora entra em uma dissertação sobre a presença e a obra do Espírito Santo em um Cristão.
Imediatamente após entrar no capítulo, o leitor notará que os pronomes pessoais – “eu”, “me”, “meu”, “eu mesmo” – frequentemente usados no conflito descrito no capítulo 7, quase desaparecem. Isto é instrutivo e nos diz que a verdade no capítulo 8 é apresentada a partir da perspectiva de ter sido aprendida a lição do capítulo 7 – a saber, que o “eu” não é mais confiável como poder de se viver uma vida santa. Assim, o conflito com a carne é visto como encerrado neste capítulo. Há outra coisa que não podemos deixar de notar; o Espírito de Deus, que não é mencionado no capítulo 7, é mencionado muitas vezes aqui. Paulo usa várias expressões diferentes relacionadas ao Espírito para indicar vários aspectos da obra do Espírito em um crente.
A mais significativa dessas mudanças que percebemos, quando passamos do sétimo capítulo para o oitavo, é que o homem em conflito no capítulo 7 (embora tenha uma nova vida) não tem nem poder para viver essa vida, nem um objeto para seu coração. Mas no capítulo 8, temos ambos – Cristo no alto sendo o Objeto do crente e o Espírito Santo sendo o poder do crente. Essas duas coisas caracterizam o Cristianismo – um Homem glorificado (Cristo) no céu e o Espírito de Deus habitando na Terra nos crentes (Jo 7:39).
O Que Caracteriza a Posição e o Estado Normal do Cristão
O capítulo 8, portanto, esboça os traços característicos da posição e do estado do Cristão, resultantes de ele ser habitado pelo Espírito Santo e energizado por Seu poder. O crente é visto diante de Deus “em Cristo” fora da condenação, possuindo uma libertação presente do poder do pecado, e aguardando em esperança por um futuro e final livramento da presença do pecado, quando o Senhor vier e o glorificar e o levar para o céu. Assim, neste capítulo, temos uma tríplice libertação do Cristão:
- Uma libertação passada – que tem a ver com ser libertado da condenação em uma eternidade perdida (v. 1).
- Uma libertação presente – que tem a ver com ser libertado da lei do pecado e da morte, o princípio do mal na carne que impede o crente de viver uma vida santa (vs. 2-17).
- Uma libertação futura – que tem a ver com a natureza pecaminosa sendo erradicada do crente e seu corpo sendo glorificado no Arrebatamento (vs. 18-30).
O capítulo começa sem condenação e termina sem separação de Deus e do Seu amor. Ele vê o crente na Terra, e assim, o vê passando por dois tipos de provações – uma que decorre de ser parte da criação que geme (vs. 20-30), e outra que decorre de ser uma testemunha fiel de Cristo (vs. 31-39). Enquanto o crente aguarda em esperança pela sua libertação futura, ele é visto sob o apoio de dois intercessores divinos: Cristo no céu (v. 34) e o Espírito Santo na Terra (v. 26).
Nos versículos 1-11, Paulo delineia uma série de coisas novas que marcam a plena posição e condição Cristãs, que resultam de ele ser habitado pelo Espírito Santo. Vemos imediatamente que tudo mudou em relação ao que descrevera no capítulo 7, no que diz respeito ao estado da pessoa.
UMA NOVA POSIÇÃO DIANTE DE DEUS EM CRISTO (cap. 8:1)
A primeira coisa que marca o Cristianismo normal é que os crentes no Senhor Jesus Cristo conhecem sua aceitação diante de Deus em Cristo. Paulo indica isso em sua declaração inicial: “Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”. O grande ponto que Paulo enfatiza aqui é que, resultante de ser justificado, o crente é colocado em uma nova posição diante de Deus, onde não é possível que entre em condenação. Ele está no mesmo lugar de aceitação em que o próprio Cristo está! Este é o significado de estar “em Cristo” – é estar no lugar de Cristo diante de Deus. Essa certeza pertence ao crente como resultado de descansar em fé na obra consumada de Cristo, e de crer no que a Palavra de Deus diz sobre isso. O versículo 1 é essencialmente a conclusão da verdade que Paulo ensinou nos capítulos 1-5:11.
Note que Paulo não diz (como alguns supõem): “Agora não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus”. Isto implicaria em que os crentes estavam condenados antes da sua conversão, mas escaparam por virem a Cristo em fé para salvação. No entanto, isso não está correto. Como mencionado em nossos comentários no capítulo 5:16, os incrédulos estão atualmente sob julgamento, mas não estão sob condenação – pelo menos não ainda. A condenação é algo final e irrevogável, para onde os pecadores neste mundo estão indo, e onde permanecerão (em uma eternidade perdida), se não forem salvos.
Paulo diz que temos essa certeza de nunca entrar em condenação “agora” enquanto estamos aqui na Terra. Esta é uma das principais razões pelas quais o Espírito foi enviado a este mundo; é para dar ao crente saber com certeza seu lugar de aceitação diante de Deus (Jo 14:20; Ef 1:13, 4:30). Isto é Cristianismo normal.
As últimas dez palavras do versículo 1 (na KJV [também na ARC]) não estão na maioria dos manuscritos gregos, e não deveriam estar no texto. Se essas palavras estivessem no texto, então tornaria a justificação e aceitação do crente em Cristo, em algo que resultaria do seu caminhar de acordo com o Espírito. Isso não poderia estar certo, porque então a nossa salvação seria uma consequência das nossas obras! Isso é contrário a tudo o que Paulo ensinou nos capítulos 3 a 5, onde mostra que nossa salvação não é por obras, mas somente pela graça. Esta frase (as dez últimas palavras do versículo 1) pertence realmente ao versículo 4 onde lá é repetida.
J. N. Darby observa que a linha da verdade que o apóstolo desenvolve em Romanos não chega a apresentar o que é positivamente nosso “em Cristo”; ela dá apenas seu lado negativo. É dito que não há “nenhuma condenação” para aqueles que estão em Cristo Jesus. Enquanto em Efésios, Paulo apresenta a verdade mais elevada, declarando o que temos positivamente “em Cristo”, sendo abençoados “com todas as bênçãos espirituais” n’Ele (Ef 1:3).
UMA NOVA LEI (PRINCÍPIO) QUE GOVERNA NOSSO ANDAR (cap. 8:2-4)
A segunda coisa que marca o Cristianismo normal é que os crentes têm em si uma nova lei (princípio), pela habitação do Espírito, que capacita suas vidas e lhes permite que vivam acima das propensões da carne. Paulo diz: “Porque a lei do espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte”. Os versículos 2-4 resumem o que Paulo ensinou nos capítulos 5:12–7:25 – ou seja, libertação do poder do pecado. Por isso, no versículo 1, temos aceitação e no versículo 2, libertação. O fato de que a aceitação é mencionada antes, mostra que primeiro precisamos estar descansado na obra consumada de Cristo e conhecer nossa posição diante de Deus em Cristo (no momento em que o Espírito Santo é recebido – Ef 1:13), antes que possamos ter o poder prático de libertação em nossas vidas pelo Espírito.
É importante entender que a nova vida é dependente e precisa do poder do Espírito Santo para ser vivida de acordo com a vontade de Deus. Tendo recebido o Espírito, há agora um novo poder controlador no Cristão que é maior que aquele na natureza pecaminosa. Ele transcende a influência maligna da carne e capacita o crente a viver uma vida santa que a nova vida deseja.
A lei científica da gravidade ilustra isso. Como sabemos todo objeto está sendo puxado para baixo em direção ao centro da Terra pela força invisível da gravidade. É universal; isso acontece em toda a Terra. Se pegássemos um objeto sólido em nossas mãos – um livro, para nossa ilustração – e o segurássemos a certa altura do chão, e então o soltássemos, o livro cairia no chão. Independentemente de quantas vezes fizéssemos isso, ele sempre cairia no chão. Isto é como a nossa natureza pecaminosa; ela quer ir a uma direção – moral e espiritualmente para baixo, em direção ao pecado. Esse princípio do mal em nós é chamado de “lei do pecado e da morte”. É um princípio universal presente em todo ser humano, e seu fim é sempre a morte.
Levando nossa ilustração um pouco mais adiante, suponhamos que quiséssemos mudar as coisas para que, quando soltássemos o livro, ele não caísse no chão pela força da gravidade. Então, para conseguir isso, prendemos ao livro alguns balões cheios de gás hélio, que é mais leve que o ar. E, se tivéssemos balões o suficiente, de modo que a força de ascensão deles fosse maior que o peso do livro, quando soltássemos o livro, ele não cairia, mas subiria no ar. Todos entendemos o porquê; o princípio da gravidade não foi afastado ou desativado, mas um princípio mais poderoso e predominante foi aplicado sobre o livro.
Isso ilustra o que Deus fez com o crente ao dar-lhe o Espírito Santo. Como sabemos nossa natureza caída não foi tirada quando fomos salvos. Não estaremos livres deste inimigo até que o Senhor venha. Deus achou por bem deixar-nos aqui neste mundo com a natureza caída ainda em nós (e o estado de nossos corações é constantemente testado por ela), mas Ele fez provisão total para que vivamos acima do poder dessa coisa má, por meio de outra lei trabalhando em nós, que Paulo chama, “a lei do espírito de vida, em Cristo Jesus”.
Os versículos 3-4 indicam que, ao assegurar um meio para o crente viver uma vida santa, livre do poder do pecado, Deus não intentou fazê-lo por meio da reabilitação da carne. Este não é o caminho de santidade de Deus. O Cristianismo não é um melhoramento da carne. Desde a queda do homem até a cruz de Cristo, Deus manteve o homem na carne em provação. Isso foi por cerca de quatro mil anos, ou quarenta séculos. (Quarenta, nas Escrituras, significa provação.) Durante esse período, a carne foi testada no homem em todos os sentidos, e provou ser inútil. A provação chegou ao fim na cruz, onde Deus julgou toda a ordem de coisas que é segundo à carne (cap. 6:6). Assim, Deus “condenou o pecado na carne” e deixou-a de lado como inútil. Foi condenada porque – como alguém disse – “O que não pode ser consertado deve ser dado fim!” Assim, Deus não está mais buscando fruto do homem na carne, e a libertação do poder do pecado certamente não virá da carne, mas por meio do que Deus realizou na graça por Cristo.
Não obstante, muitos Cristãos pensam erroneamente que quando uma pessoa nasce de novo, Deus realiza um milagre nela, pelo qual sua natureza humana é renovada ou refeita. Eles erroneamente chamam isso de regeneração (Tt 3:5). Já que a palavra “regenerar” significa reiniciar algo, imaginam que o novo nascimento é uma regeneração da velha natureza, infundindo nova vida nela. Com base nessa crença equivocada, a maioria dos teólogos reformados e muitos pregadores evangélicos ensinam que os Cristãos não têm duas naturezas, mas sim uma “natureza regenerada!” No entanto, isso faz com que a regeneração e o novo nascimento sejam nada mais do que uma reabilitação da carne. A verdade é que a carne não pode ser melhorada. As Escrituras dizem que “pois não é sujeita à Lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser”. (Rm 8:7). O Senhor ensinou isso a Nicodemos. Ele disse: “O que é nascido da carne é carne” (Jo 3:6). Isto é, o que quer que os homens possam fazer para melhorar o homem na carne – seja para incutir influência da cultura, educação, religião, ou privar de comida, ou açoitar, etc. – o resultado final é que ainda nada mais é do que carne pecaminosa. Portanto, a única coisa a fazer com a carne é condená-la e colocá-la de lado, e é exatamente isso que Deus fez.
O ponto nos versículos 3-4 é que a graça teve êxito em fazer o que “o que era impossível à Lei (Mosaica)” – isto é, dar ao homem (o crente) o poder de andar em santidade. Paulo diz que a Lei estava “enferma [fraca – JND] pela carne”. Isso não quer dizer que há algo errado com a Lei, mas que ela não poderia produzir nada de bom a partir da carne porque o material (a natureza pecaminosa) era completamente mau. Note que diz que Deus condenou o pecado na carne; Ele não condenou a Lei. Não há nada de errado com a Lei; o problema é com a carne.
O versículo 4 mostra que por meio do que Deus realizou em graça, o crente é agora capaz de cumprir “os justos requisitos da Lei” (JND), sem estar formalmente sob a Lei (Tradução W. Kelly). Isso significa que o Cristão faz as coisas justas descritas na Lei, não porque tenha algum compromisso legal com a Lei, mas porque, em sua ocupação normal com Cristo, o Espírito de Deus produz santidade nele.
UMA NOVA ESFERA DE VIDA EM QUE VIVEMEMOS PARA DEUS (cap. 8:5-7)
A terceira coisa que Paulo menciona que marca o Cristianismo normal é que os crentes têm uma nova esfera de vida para viver, onde o Espírito de Deus ministra as coisas de Cristo para as suas almas, ao habitarem em comunhão com Deus (Jo 16:13-15). Nós somos realmente gratos que Deus proveu tal elemento para nele vivermos, ao qual nossa nova natureza está perfeitamente adequada. Se Ele não tivesse feito isso, Cristãos seriam como “peixes fora d’água”.
V. 5 – Paulo menciona duas classes de homens: “os que são segundo [conforme] a carne” e “os que são segundo [conforme] o espírito”. Isso, é claro, seriam incrédulos e crentes. Essas duas classes de pessoas vivem em duas esferas diferentes de vida, onde buscam dois objetos de interesse diferentes. Paulo define esses diferentes interesses como: “as coisas da carne” e “as coisas do Espírito”. F. B. Hole disse: “O apóstolo [Paulo] está falando abstratamente. Ele está vendo toda a posição de acordo com a natureza interior das coisas, e não de indivíduos em particular, ou suas várias experiências” (Paul’s Epistles, vol. 1, pag. 1). As coisas da carne seriam coisas e atividades terrenas, naturais e mundanas que o homem, segundo a carne, procura e nem precisam ser enumeradas aqui. As coisas do Espírito, como mencionado em nossos comentários no capítulo 6, são coisas espirituais que têm a ver com os interesses de Cristo. São coisas como: ler as Escrituras, orar, participar de reuniões Cristãs para adoração e ministério, cantar hinos e cânticos espirituais, ler literatura Cristã, ouvir ministério Cristão gravado, ensinar a verdade, compartilhar o evangelho, meditar nas coisas espirituais ao ocupar-nos de nossas responsabilidades diárias, servindo ao Senhor com boas obras, visitando, etc.
O “corvo” e a “pomba” que foram soltos da arca de Noé ilustram o apetite das duas naturezas em um crente (Gn 8:6-12). O corvo, quando solto, não retornou à arca, mas se banqueteava com a carniça. Da mesma forma, a carne encontra seus objetos de interesse no mundo, que Deus julgou na cruz, e ela está bem à vontade nele. A pomba, quando solta, retornou à arca, pois não tinha apetite por aquelas coisas. Da mesma forma, a nova natureza, que encontra seu interesse em coisas divinas, não tem apetite pela morte moral e espiritual que marca as coisas deste mundo.
Vs. 6-7 – Paulo então nos mostra para aonde leva a ocupação com as coisas em cada uma dessas esferas – uma é para a “morte” e a outra é para a “vida e paz”. É desnecessário dizer que esses são finais muito diferentes. Paulo então explica por que o homem na carne nunca andará em santidade. Ele diz: “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus”. A carne odeia a Deus e é incapaz de estar “sujeita à Lei de Deus”, mesmo se quisesse ser! Assim, nunca viverá “segundo o Espírito”.
UM NOVO ESTADO EM QUE CRISTO É FORMADO EM NÓS (cap. 8:8-10)
Paulo também fala de dois estados diferentes em que os homens estão, enquanto vivem e se movem nessas esferas. O primeiro estado ele denomina como: “na carne”. Ele diz: “Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne”. Ao afirmar isso, ele deixa claro que, enquanto homens não salvos do mundo (“os que” [eles]) estão na carne, os crentes (“vós”) não estão. Tenhamos em mente que ele está falando do que é característico de incrédulos e de crentes. Ele não está levando em consideração que os crentes podem às vezes viver em um estado que é anormal ao Cristianismo. Às vezes os Cristãos podem agir na carne (de uma forma carnal), mas o que é característico deles é que não estão “na carne”. Assim, os Cristãos têm a carne neles, mas eles não estão na carne! Isso pode soar confuso, mas essas são duas coisas diferentes. Uma está se referindo à natureza pecaminosa que reside no crente (e será assim até que o Senhor venha, ou até que o crente morra), e a outra está falando de um estado ou condição carnal, a qual Paulo diz enfaticamente que o crente não está vivendo (caracteristicamente).
Continuando para completar seu pensamento, Paulo diz que os crentes estão “no Espírito” – que é o outro estado contrastante. Ele qualifica isto acrescentando, “se é que o Espírito de Deus habita em vós”, simplesmente porque não é possível viver no Espírito se a pessoa não tem o Espírito habitando nela. Assim, Paulo mostra que existe algo como o Espírito estando no crente, assim como o crente estando no Espírito. Mais uma vez, estas são duas coisas diferentes. O Espírito habitando no Cristão está ligado à nossa nova posição diante de Deus em Cristo. Todos os Cristãos têm essa habitação (Ef 1:13). Em relação a isto, Paulo diz: “se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é d’Ele”. Isso não significa que se alguém não tem o Espírito habitando nele, está perdido. Ele está simplesmente afirmando que sem o Espírito Santo habitando, o nascido de Deus não está na posição Cristã plena, da qual Paulo está dando um esboço neste capítulo. O homem em conflito no capítulo 7 seria um exemplo de alguém nesse estado anormal. Ele é nascido de Deus e, portanto, não está perdido; mas ele não tem o Espírito e, portanto, não está na posição Cristã plena. Note que Paulo não diz: “Ele não pertence a Cristo”, como algumas traduções afirmam erroneamente, pois todas as almas (salvas e perdidas) pertencem a Cristo, porque Ele as comprou na cruz (Mt 13:44 – “o campo”; Hb 2:9 – “por todos”). Esse não é o ponto que Paulo está tocando aqui. Ele está dizendo que tal pessoa, com quem Deus começou a obra do novo nascimento, não é “de” Cristo na nova ordem da criação, até que receba o Espírito Santo (Gl 3:29; Hb 2:11).
“No Espírito” refere-se a um novo estado ou condição espiritual que existe nos Cristãos, no qual o Espírito forma neles as características morais de Cristo. Paulo usa a expressão “o Espírito de Cristo” quando se refere a essa obra especial do Espírito. Assim, sendo possuídos pelo Espírito de Cristo, os Cristãos se tornam como Cristo, em seu andar e em seus caminhos. Esse poder formador do Espírito opera em nós quando nossos corações estão ocupados com Cristo e Suas coisas (2 Co 3:18), mas Paulo não está falando aqui de como isso é realizado. Ele está simplesmente afirmando que essa obra do Espírito nos crentes é uma característica do Cristianismo normal.
V. 10 – Então, resultante desta obra, Paulo diz: “E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça”. Aqui, ele usa a palavra “se” de forma diferente da que usou no versículo anterior. No versículo 9, é um se de condição; aqui é um se de argumento. “Se”, usado condicionalmente, tem a ver com a questão de saber se algo é assim ou não. Ao passo que, quando “se” é usado na construção de um argumento, ele poderia ser substituído por “já que”. O ponto de Paulo aqui é que já que o Espírito de Cristo tem Sua legítima influência no crente, e o caráter de Cristo é formado nele pelo Espírito, ele não é mais governado por seus apetites carnais e concupiscência. O corpo do crente é considerado “morto” quando o Espírito lhe ministra o que é realmente “vida”, energizando-o para viver em “justiça” prática. Ele nos faz viver no bem da vida ressurreta em comunhão com Deus, e quando atua nessa qualidade, Ele é chamado de “o Espírito vida” – JND. Lembremo-nos de que Paulo está falando do que caracteriza o estado Cristão normal, e não do que certos crentes podem experimentar em suas vidas quando seu estado deixa a desejar.
UMA NOVA EXPECTATIVA DE SER GLORIFICADO (cap. 8:11)
Paulo prossegue para um ponto final que marca a vida Cristã normal. Ele diz que, uma vez que temos “o Espírito daqu’Ele que ressuscitou a Jesus” habitando em nós, Sua presença é um penhor do que nos está por vir (2 Co 5:5). O mesmo poder, que “dos mortos ressuscitou a Jesus” há muito tempo, “vivificará” nossos “corpos mortais”. Nossos corpos serão transformados para uma condição glorificada (1 Co 15:51-56; Fp 3:21). Este poder vivificador erradicará a carne de nossos seres de uma vez por todas! Note que ele não diz que nossos corpos serão ressuscitados dentre os mortos, porque a esperança Cristã normal é estar vivo na Terra quando o Senhor vier. É claro que, se morrermos antes que o Senhor venha, nossos corpos serão ressuscitados em um estado glorificado naquele momento.
Um Resumo do Estado Cristão Normal
Assim, nos primeiros onze versículos de Romanos 8, vemos o crente colocado em uma nova posição (“em Cristo”), com um novo poder (“a lei do espírito de vida”), em uma nova esfera de vida que tem uma nova série de objetivos (“as coisas do Espírito”), com as quais são formadas nele características semelhantes a Cristo (“Cristo está em vós”). Além disso, o crente é visto com uma esperança diante de sua alma, de ter seu corpo glorificado (“vivificado”) como o corpo de glória de Cristo, para que ele seja capaz de viver e reinar com Cristo no céu. Isto é o que é um Cristão!
Os Resultados Práticos que Fluem de Andar no Espírito
Cap. 8:12-17 – Tendo apresentado a posição e condição dos crentes no Cristianismo normal, Paulo continua falando do lado prático dessas coisas, trazendo nossa responsabilidade.
Cap. 8:12 – Ele nos diz que, em vista do que Deus fez por nós por meio da morte e ressurreição de Cristo, o crente não tem obrigação alguma para com a carne para viver segundo a carne. Ele diz: “De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo [conforme] a carne”. Isso, como Paulo já explicou, é porque Cristo, nossa Cabeça federal, agiu por nós ao separar-Se Ele mesmo de todo o sistema do pecado por meio da morte, e nós (sendo parte de Sua nova raça de criação) temos o direito de nos considerarmos mortos com Ele (cap. 6:10). Mas, mais do que isso, temos o poder para viver acima da má inclinação da carne por nos ter sido dada “a lei do espírito de vida, em Cristo Jesus” em nós (cap. 8:2). Portanto, não podemos ser justos ao dizer que não conseguimos deixar de viver segundo as concupiscências da carne, porque toda provisão foi feita para que vivêssemos livres dela.
Cap. 8:13 – Paulo então nos adverte do desastre que resultará em nossas vidas se escolhermos viver na esfera da carne. Ele diz: “Porque, se viverdes segundo [conforme] a carne, morrereis”. O aspecto da morte aqui é uma separação moral e espiritual de uma vida de comunhão com Deus (1 Tm 5:6). (Não poderia significar que o crente perde sua salvação, porque isso é uma impossibilidade – Jo 10:28-29, etc.). Assim, Paulo está dizendo que haverá um fracasso total em nossas vidas Cristãs. O crente que escolhe viver “segundo a carne” não somente terá rompido seu cinto de segurança da comunhão com Deus, mas também incorrerá em juízos disciplinares (governamentais) de Deus, o Pai (1 Pe 1:16-17, 3:10-12, 4:17-18). Estes são enviados para corrigir a atitude errada do crente para com o pecado (Hb 12:5-11).
Paulo então diz: “mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis” – (TB). Isso mostra que o poder de restringir a carne vem do Espírito Santo, e que esse poder só estará ativo em nossas vidas, se vivemos na esfera correta de vida. Portanto, para vivermos vitoriosamente acima da carne, devemos viver na nova esfera de vida (não apenas visitá-la ocasionalmente) onde Cristo vive para Deus e estar ocupados com “as coisas do Espírito” que ali estão. Quando vivemos nesta esfera, o Espírito Santo estará livre para tomar as coisas de Cristo e mostrá-las para nós (Jo 16:13-15), e Ele também trabalhará para manter a carne controlada, como mencionado no versículo 2. Só então poderemos “mortificar as obras do corpo” pelo Seu poder. Este é o princípio do deslocamento que Paulo mencionou no capítulo 6. É essencialmente a mesma coisa que ele disse aos gálatas: “Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne” (Gl 5:16). Isso é Cristianismo normal.
Olhando para nossas vidas, podemos dizer: “Não é exatamente assim comigo. Não posso dizer que tenho conhecido a vitória sobre a carne na proporção em que Paulo descreve”. Podemos nos perguntar por que isso acontece, já que sabemos que somos salvos e, portanto, temos o Espírito habitando em nós. No entanto, uma coisa é ter o Espírito de Deus presente em nós como o poder para a libertação, e outra coisa é tê-Lo ali realmente trabalhando por nós em uma libertação diária contínua. Isso mostra que, para que o Cristão tenha o poder do Espírito em sua vida, o Espírito não deve apenas ser residente, mas também deve ser presidente. Isso equivale ao que a Bíblia se refere quando diz que devemos nos “encher do Espírito” (Ef 5:18).
O caso com muitos de nós é que o poder do Espírito é extinto porque não estamos ocupados com “as coisas do Espírito” (os interesses de Cristo). O Espírito de Deus deseja trabalhar por meio de nós, mas muitas vezes Ele é impedido em vários níveis, dependendo de um Cristão para outro. Isso nos lembra do que o servo de Abraão (que é um tipo do Espírito Santo) disse à mãe e ao irmão de Rebeca – “não me detenhais” (Gn 24:56). É triste dizer que muitas vezes impedimos a obra do Espírito “extinguindo” e “entristecendo” a Ele. Simplificando: extinguir o Espírito é não fazer algo que o Espírito está nos conduzindo a fazer (1 Ts 5:19), e entristecer o Espírito é fazer algo que Ele não nos levou a fazer (Ef 4:30).
Nosso problema é que queremos nos cercar das coisas terrenas, naturais e mundanas, e segui-las, e esperar ter o benefício da libertação prática, do poder do pecado, que o Espírito dá. Mas não podemos viver na sombra e aproveitar o Sol ao mesmo tempo. Se mimarmos a carne, vamos obstruir o Espírito! Alguém pode ler isso e dizer: “Ah, agora entendo; o que eu preciso é mais do Espírito em minha vida!” Mas isso não é o que Paulo está ensinando aqui. Nós não precisamos de mais do Espírito, porque Deus não dá o Espírito em medidas (Jo 3:34). Na verdade, é o contrário – o Espírito precisa ter mais de nós! Mas se tivermos nossas vidas cheias dessas coisas estranhas, sobrará pouco espaço na prática para o Espírito trabalhar. Isso nos lembra novamente do servo de Abraão. Ele disse a Rebeca: “há também em casa de teu pai lugar para nós pousarmos?” (Gn 24:23) Podemos ver a partir disso que a vida Cristã prática realmente só é efetiva quando vivemos vidas consagradas. Consagração significa “encher as mãos” ou “ambas as mãos cheias” (Êx 29:22-24). Em nosso caso, é ter nossas vidas cheias de Cristo e dos Seus interesses (cap. 12:6-8). Se fizermos isso, não nos faltará o poder do Espírito.
Assim, dizendo “se” neste versículo (13), Paulo mostra que o encargo está agora com o crente. Deus quer que sejamos responsavelmente exercitados quanto a termos uma vitória prática sobre a carne. Temos que fazer uma escolha consciente para viver na esfera correta de vida. Isso realmente se resume a uma questão de nossas vontades – em que esfera eu quero viver e com o que eu quero estar ocupado? F. B. Hole disse: “É possível negligenciarmos as coisas do Espírito, para nos importar com as coisas da carne. E, na medida em que o fazemos, entramos em contato com a morte ao invés de com a vida e a paz. Mas não nos enganemos sobre isso; se formos para as coisas da carne, não estaremos buscando coisas que são propriamente características do Cristão, mas sim o que é totalmente anormal e impróprio”.
Notemos também que Paulo não diz: “Mortificar o corpo”. Isso seria ascetismo. Foi o que os monges fizeram ao se flagelarem, dormindo em camas de pregos, etc., em sua tentativa de conter e controlar a carne – mas não funcionou. Toda essa atividade não é o caminho de Deus para a santificação prática. Paulo diz: “mortificardes as obras do corpo”. Não são nossos corpos que devem ser mortificados, mas as “obras” – as coisas pecaminosas que podemos estar inclinados a fazer.
Conduzido pelo Espírito
Cap. 8:14 – Paulo mostra que a vida Cristã normal de andar “segundo o Espírito” resulta em ser “guiado pelo Espírito”. Esta condução do Espírito é evidenciada de várias maneiras – em adoração, em serviço, em questões práticas de vida, etc. É triste dizer, mas os Cristãos nem sempre estão em comunhão com o Senhor, e assim, às vezes não serão guiados pelo Espírito, mas isso é uma anomalia.
Filhos de Deus
Cap. 8:15 – Uma das coisas à qual o Espírito de Deus particularmente deseja nos conduzir é o gozo de nossos privilégios como “filhos de Deus”. Paulo diz que nós não recebemos “o espírito de escravidão” para temer – como pode sentir-se um escravo sob o domínio de seu senhor – mas, ao contrário, recebemos “o Espírito de adoção”, que nos dá a liberdade de “filiação” (nota de margem na Bíblia JND). Assim, temos confiança e liberdade na presença de Deus para nos dirigir a Ele como “Aba, Pai”, que é um privilégio que só o Senhor tinha! (Mc 14:36). Nenhum anjo ou santo do Velho Testamento jamais teve conhecimento dessa liberdade. “Aba” sugere intimidade sem familiaridade, e “Pai” indica inteligência de comunhão.
Há quatro passagens principais nas Escrituras onde a filiação dos crentes é mencionada, cada uma enfatizando um aspecto diferente de sua bem-aventurança. Essas são:
- Uma posição privilegiada (Gl 4:1-7). Como filhos de Deus, os Cristãos foram colocados em um lugar de favor na família de Deus, o qual todas as outras pessoas abençoadas na família não têm; é o mesmo lugar em que está o próprio Filho, diante de Deus! Por isso, eles são chamados de “Igreja dos primogênitos” (Hb 12:23).
- Liberdade especial (Rm 8:14-15). Como filhos de Deus, os Cristãos têm livre acesso à presença de Deus, pelo qual se dirigem a Ele como seu Pai; e fazem isso com uma intimidade que nenhuma outra criatura abençoada jamais conheceu, clamando: “Aba, Pai”.
- Bênçãos e discernimento superiores (Ef 1:3-10). Como filhos de Deus, os Cristãos receberam bênçãos especiais e inteligência, no propósito de Deus, que até hoje fora mantido em segredo no “Mistério” (Ef 3:4-5, 9).
- Dignidade. Como filhos de Deus, eles são identificados com Cristo como Seus “irmãos” na raça da nova criação de homens – Cristo sendo a Cabeça da raça como o “Primogênito” (Hb 2:10-13; Ap 3:14; Rm 8:29; Cl 1:18).
Enquanto os santos do Velho Testamento são abençoados por Deus e fazem parte de Sua família como Suas crianças, eles não estão na posição de filhos. Estas coisas relacionadas com a adoção pertencem apenas àqueles que estão neste lugar favorecido de filhos. Nem os anjos têm esse lugar grandioso! É a maior bênção concedida, que uma criatura poderia ter em relação ao Pai.
Crianças de Deus
Cap. 8:16 – O “testemunho” do Espírito também trabalha para nos tornar conscientes de nosso relacionamento com Deus como “as crianças de Deus”. Assim, somos tanto filhos como crianças. Não se trata de alguns bons sentimentos que temos em nossos corações, mas a certeza de que somos Suas crianças porque estamos em comunhão com Ele
Herdeiros de Deus
Cap. 8:17 – Visto que o Espírito testifica que somos nascidos de Deus, sabemos, portanto, que somos também “herdeiros de Deus”. Isso coloca em vista a herança, pois um herdeiro é aquele que tem a expectativa de uma herança (Ef 1:11). A herança do Cristão é tudo o que foi criado. Que vasta é esta herança! Paulo acrescenta que somos “co-herdeiros com Cristo” (ARA) sobre a herança. Nós vamos reinar com Ele sobre tudo isso no dia de Sua manifestação pública, que começará na Sua Aparição (Ef 1:14, 18).
Sofrendo com e por Cristo
Nesse meio tempo, enquanto esperamos que o Senhor venha, “com Ele padecemos”. Esse é um aspecto do sofrimento que é resultado direto de se ter o Espírito de Cristo (v. 9). Como mencionado anteriormente, essa função especial do Espírito forma Cristo em nós. E, uma das características semelhantes a Cristo que está sendo formada em nós é a dos sentimentos de Cristo. Ao Cristo olhar para a cena do pecado e seus efeitos, Ele sofre de compaixão por Suas criaturas, que sofrem sob a escravidão da corrupção (vs. 20-23). Como filhos de Deus e crianças de Deus, fomos feitos vasos das compaixões de Deus. Tendo um vínculo em nossos corpos com a criação que sofre e tendo o Espírito de Cristo em nós, em nossa pequena medida, nós sofremos “com” Cristo compassivamente.
Este aspecto do sofrimento não é o mesmo que sofrer “por” Cristo (Fp 1:29; At 5:41, 9:16, etc.). Sofrer por Cristo tem a ver com suportar a reprovação e perseguição por causa do testemunho do evangelho. Podemos evitar esse tipo de sofrimento recusando-nos a confessar Cristo diante dos homens. Há um exemplo deste tipo de sofrimento na história de Davi e Jônatas. Davi é um tipo de Cristo e Jônatas é um tipo do crente. Quando Jônatas se identificou publicamente com Davi, Saul e os que o seguiam se enfureceram, e Saul atirou uma lança contra Jônatas – seu próprio filho! (1 Sm 20:30-34; 2 Tm 3:12) Portanto, sofrer por Cristo é uma coisa eletiva, ao passo que o sofrimento com Cristo não é.
Paulo nos conforta com o fato de que podemos ter certeza que nosso sofrimento terminará um dia quando “com Ele seremos glorificados”. Como mencionado em nossos comentários no versículo 11, a glorificação envolve não apenas uma mudança em nossos corpos, mas também inclui a erradicação de nossas naturezas pecaminosas. Isso mostra que há algo como o Cristão alcançar a perfeição sem pecado, mas isso não ocorrerá até que o Senhor venha (o Arrebatamento).
