Origem: Livro: Os Evangelistas
Lucas 3-4
Lucas 3
Um longo intervalo passou agora antes de chegarmos ao tempo deste capítulo. Como o de Moisés em sua juventude, como posso chamá-lo, o curso de Jesus foi interrompido pelos raciocínios e trevas da natureza. Moisés supôs que seus irmãos teriam entendido como Deus, por sua mão, os livraria, mas eles não entenderam; e sua incredulidade o separou deles por quarenta anos.
Então Jesus, o Maior que Moisés, estava tratando dos negócios de Seu Pai no meio de Israel; mas Seus irmãos não entenderam, e Ele teve que descer para Nazaré, afastado de Israel por mais uma temporada. No entanto, somente Ele pode passar por isso na mesma perfeição diante de Deus. A incredulidade do homem pode mudar o cenário, mas nada tocou o coração deste Santo. Ele desceu para Nazaré para estar em sujeição ali, ainda como um bom Menino crescendo em sabedoria como em estatura, e em graça com Deus e com o homem.
Mas aqui, neste capítulo, entramos completamente em outras cenas e tempos. Os meninos cresceram e estão maduros para serem apresentados a Israel. E justamente neste momento solene nosso evangelista faz um levantamento completo do mundo. Era uma tarefa que pertencia propriamente a ele sob o Espírito, pois o Espírito por meio dele, como eu disse, olha para o homem e trata com o homem. Ele aqui nos que mostra toda a Terra estava quieta e sentada em repouso, pois a besta gentia tinha tudo em ordem, de acordo com sua mente (Zc 1:11). Tibério, o romano, era imperador, seus procônsules estavam em seus vários governos, a própria Judeia sendo um membro de sua força e parte de sua honra. Os sacerdotes também estavam em seu templo. Tudo na Terra, tanto quanto à sua religião quanto ao governo, era exatamente como o homem queria. Mas sob o olhar de Deus, tudo isso era um deserto; e, portanto, em vez de Ele tomar um lugar nele, e reconhecê-lo como repouso para Ele, a voz de Seu servo é enviada para despertar tudo, como Elias nos dias maus de Acabe, e para perturbar o sono do contentamento carnal no qual o homem e o mundo estavam envolvidos.
Os pensamentos de Deus não são de fato como os pensamentos do homem. O sábado do homem era agora um deserto para Ele, e Ele agirá nele como um deserto. A dispensação da lei tinha, a essa altura, testado o homem, e o encontrado irremediavelmente afastado da retidão; e João é agora, de acordo com isso, enviado para convocar o homem a tomar o lugar de um pecador convicto. Ele aponta para o remédio que estava em Deus para alguém assim, mas não o revela como já realizado e introduzido. Ele anunciou a vaidade de toda carne, descobrindo as próprias raízes dela; mas sua mão não carregou a semente de uma colheita melhor. Ele colocou a sentença de morte no homem, mas não lhe trouxe vida. Ele o colocou no pó, mas não lhe deu poder para se levantar. A vida e o poder viriam pelo Filho depois. “João não fez sinal [milagre – TB] algum”. Ele desafiou os violentos a tomar o reino pela força, mas não colocou diante deles uma porta aberta. “Não era ele a luz, mas veio para que testificasse da luz”. Ele se colocou entre Israel e seu Deus, dizendo a Israel, por um lado, que todos eram carne, e que a carne era como a erva; apontando para Jeová-Jesus, Deus de Israel, por outro, como alguém que trazia Sua recompensa com Ele e fazia Sua obra diante d’Ele.
Houve uma mistura de graça e justiça em seu ministério. Ele veio “no caminho de justiça”, afastando-se e recusando contato com o mundo, e assim, por sua luz, repreendendo as trevas. Ele lamentou sua geração, não comendo nem bebendo, porque ele chamava os homens para que se reconhecessem pecadores e tomassem seu lugar como tais. Mas então, ele também veio no caminho da graça, porque ele era o precursor de Jesus, e indo diante da face do Senhor para preparar o caminho da salvação e do reino. Assim, houve uma mistura de graça e justiça em seu ministério, e era claramente um grande avanço tanto sobre a lei quanto sobre os profetas. A lei havia buscado ordenar o homem na carne de acordo com a justiça; e os profetas foram enviados, em certo sentido, como um auxílio da lei, para chamar o povo de volta à obediência, para que toda ajuda e vantagem pudessem ser prestadas ao homem; e a paciência abundante de Deus foi demonstrada, na prova dessa questão, se o homem era ou não capaz de restaurar a si mesmo e permanecer em justiça. Mas o ministério de João assumiu a vaidade de todas as expectativas desse tipo, e tomou o homem como um pecador convicto. Mas então, tal é a ordem santa na sabedoria divina, não era um ministério tão elevado quanto aquele que foi agora introduzido. Os apóstolos, após a ressurreição, chamaram o homem para tomar pela fé o lugar de um pecador perdoado. E assim sobre nós a luz da graça e da salvação atingiu sua força como a luz do meio-dia, e estamos esperando apenas pela luz da glória e do reino.
Com nosso Deus, deixe-me dizer aqui, tem havido, desde o princípio, uma obra muito mais profunda e excelente do que a da velha criação. A velha criação foi, em certo sentido, deixada à disposição do homem. Sua fidelidade ou sua desobediência era o que determinaria sua história. Mas o conselho divino desde antes da criação havia planejado e estabelecido uma obra no Filho e pelo Filho, a qual nunca poderia falhar, ou ser dependente a qualquer força menor que a Sua própria. E é esse mistério que o Senhor tem diante de Si quando diz: “O céu e a Terra passarão, mas as Minhas palavras não hão de passar”. A criação era removível; a redenção (a obra do Verbo) é inamovível, porque o Deus vivo uniu-Se a ela. E assim o profeta, dirigindo-se a Jesus, o Filho, diz: “no princípio, fundaste a Terra, e os céus são obra de Tuas mãos; eles perecerão, mas Tu permanecerás”. E assim todas as coisas que são feitas, são abaláveis (Hb 12:27 – AIBB), pois o próprio Deus não está unido a elas; Ele não é seu fundamento. Mas o Verbo estava com Deus, e era Deus, e Se tornou carne, parte necessária (por assim dizer deste bendito mistério de bondade eterna) da própria obra. Ele é a Videira, a principal Pedra da esquina, cabeça do ângulo. Isso dá à redenção uma glória indizivelmente mais excelente do que a criação jamais teve. E assim o Batista, no ministério que temos nesse capítulo do nosso Evangelho, diz: “Seca-se a erva, e caem as flores, mas a Palavra de nosso Deus subsiste eternamente” (Isaias 40). Tudo nesta obra é incorruptível. A semente da vida que ela traz é incorruptível – o corpo com o qual será revestida essa vida é incorruptível – a herança à qual ela nos introduz é incorruptível (1 Coríntios 15; 1 Pedro 1). Deus entrou pela brecha que o pecado do homem produziu na velha criação e uniu-Se à grande ruína de uma tal forma e para um tal fim que será para o louvor eterno de Seu próprio mais bendito nome e também para a assegurada permanência e imperecibilidade de Sua nova criação.
O Salmo 90 parece ser a expressão de uma alma que aprendeu algo desse mistério. O profeta olha para o próprio Deus como acima de toda força criada; ele então traça a vaidade que acompanhou a velha criação; e finalmente encontra seu alívio de tal visão na obra de misericórdia de Deus, ou a obra de redenção pelo Verbo. E isso é assim conosco, amados. A obra do Verbo, ou de Deus manifestado em carne, é o alívio de nosso coração do doloroso senso da vaidade universal ao nosso redor. O ministério de João pode levar a alma a esse senso de vaidade, mas restou a Outro nos dar esse bendito e seguro alívio em Si mesmo, e em Sua obra que permanece para sempre.
Mas isso apenas de passagem, à medida que avançamos, em conexão com o ministério do Batista que este capítulo nos dá. A genealogia do Senhor é então rastreada até as fontes da família humana; não apenas até Davi e Abraão, como em Mateus, mas até Adão. E isso, não preciso dizer, está de acordo com a mente geral do Espírito em Lucas, como já mencionei. E a ausência de todas essas genealogias em João é, da mesma forma, inteiramente consistente. Pois as genealogias reconhecem relações humanas ou nacionais; e a preservação delas, como é feito nas Escrituras Judaicas (veja 1 Crônicas, e assim por diante), mostra um zelo pela ordem e manutenção do sistema humano. Esse sistema será sustentado no reino, quando os corações dos filhos se voltarem para os pais, e os corações dos pais para os filhos (Zc 12:10-14). Mas somos instruídos a não nos importar com genealogias (1 Tm 1:4; Tt 3:9); pois a Igreja não deve ser a ministra que ordena e mantém o sistema humano, mas é tomada para relações celestiais.
Antes de entrar no capítulo seguinte, gostaria de observar que a filiação de nosso Senhor como Filho de Deus é aqui reconhecida no momento de Seu batismo, como havia sido feito no anúncio de Seu nascimento anteriormente, e estaria novamente em Sua transfiguração depois (Lucas 1:35; 9:35). Mas há valor distinto em cada um desses momentos. O Filho da virgem, concebido pela sombra do Espírito Santo, deveria ser chamado de “o Filho de Deus”. Sua Pessoa foi então reconhecida. Agora, em Seu batismo, a mesma atestação é feita uma segunda vez, com esta adição: “em Ti Me comprazo” (ARA).
Seu ministério agora é reconhecido (pois Seu batismo O estava introduzindo ao Seu ministério), reconhecido como aquilo que despertaria a plena complacência divina. E isso é abençoadamente reconfortante para nós pecadores. A lei nunca foi assim aprovada, pois a lei exigia justiça. João Batista nunca foi assim aprovado, pois ele convencia o homem de sua culpa sem aliviá-lo. Mas agora que o Filho estava surgindo com graça e cura para pecadores, a mente de Deus podia descansar, pois esta era a realização do propósito de Seu próprio amor; e assim agora poderia ser dito do Filho e Seu ministério, ou do Filho em Seu batismo, ou em Sua unção que imediatamente seguiu Seu batismo, “Tu és o Meu Filho amado, em ti Me comprazo”. E em breve, pela terceira vez, Ele será assim atestado, quando a glória ou reino resplandecer por um momento no monte santo. Então essa mesma atestação surgirá com esta adição, “a Ele ouvi”. Mas isso é igualmente perfeito em seu tempo, pois isso O reconheceu em Seu reino – todo joelho deve se dobrar a Ele, e a alma que não O ouvir será cortada do meio de Seu povo. Veja Atos 3:22-23. (Estas palavras, “a Ele ouvi”, foram uma repreensão a Pedro por colocar Moisés e Elias em igual comparação com Jesus.)
Assim, em três ocasiões – no anúncio de Seu nascimento, em Seu batismo e em Sua transfiguração, a Sua Filiação de Deus é divinamente atestada; em outras palavras, Sua Pessoa, Seu ministério e Seu domínio são todos reconhecidos pelo Pai; o pleno deleite de Deus repousando sobre Ele, e a plena sujeição da Terra a Ele é exigida. Deus tem todo o Seu deleite n’Ele, e a Terra deve ouvi-Lo. E depois dessas atestações pela voz do céu, a ressurreição, no devido tempo, vem para confirmar e fechar todas elas por ato e façanha, e para declarar que Jesus é o Filho de Deus “em poder” (Rm 1:4).
