Origem: Livro: Os Evangelistas
Lucas 5 – 9:50
Lucas 5
Entramos agora no capítulo 5, cujos materiais, geralmente, encontramos em outros Evangelhos. Eu notaria especialmente apenas o que é característico.
Posso observar novamente que nosso evangelista não está muito ocupado com meras circunstâncias (como a ordem do tempo e coisas semelhantes), porque ele trata mais com homens e com princípios. E assim seria entre nós. Se alguém estivesse narrando a outro alguns acontecimentos para familiarizá-lo com os eventos, ele teria o cuidado de anotar com precisão os detalhes de tempo e lugar; mas se ele estivesse usando os eventos apenas com o propósito de ilustrar princípios ou reforçar verdades, ele seria menos cuidadoso quanto a tais coisas. Assim, temos uma cena neste capítulo que, em termos de tempo, precedeu muito do que já tivemos no capítulo anterior. O chamado de Simão para ser um pescador de homens, por exemplo, na verdade precedeu a cura da sua sogra; mas aqui o chamado vem depois (veja Mateus 4; 8; Marcos 1). Mas isso não importa para Lucas. Seu propósito não é determinar o que veio primeiro, mas nos dar princípios; dar-nos Deus e o homem. E, consequentemente, embora ele seja indiferente às circunstâncias, revela, no chamado de Simão, grandes princípios morais que os outros evangelistas não registraram.
E realmente essa revelação é impressionante. Ela nos dá uma visão do homem sendo realmente trazido sob o poder de Deus. Não havia nada em uma pesca abundante, mesmo que fosse tão grande e inesperada quanto pudesse ser, que naturalmente se conectasse com a convicção do pecado. Mas no caminho de Deus havia. Pois é sempre a descoberta de Deus que leva ao arrependimento ou à verdadeira convicção do pecado. É somente na luz de Deus que podemos nos conhecer devidamente. Era o julgamento comum de todos aqueles que, antigamente, possuíam o temor de Deus, que não podiam vê-Lo e viver. Eles carregavam essa consciência com eles desde que Adão se retirou da presença de Deus entre as árvores do jardim. Manoá julgou que ele deveria morrer porque tinha visto Deus. Gideão esperava o mesmo. Ezequiel caiu prostrado no chão, e a formosura de Daniel foi transformada em corrupção quando eles entraram em contato com a glória. Isaías aprendeu a impureza de seus lábios, quando viu o Rei, o Senhor dos exércitos. Isso era conhecerem a si mesmos corretamente, não por si mesmos nem entre si mesmos, mas por Deus. Eles descobriram que estavam aquém ou destituídos da Sua glória (Rm 3:23).
Assim acontece agora com Pedro. A glória tinha chegado muito perto dele. Outros poderiam não tê-la percebido. O que era uma grande pescaria para pescadores comuns senão um arremesso de sorte? Mas um pequeno assunto falará grandes coisas no ouvido de uma alma que Deus está guiando. Um buraco na parede é o suficiente para mostrar a um profeta grandes abominações; e para tal uma nuvem não maior que a mão de um homem está cheia das obras e louvores de Deus. Aquele que podia comandar a plenitude do mar estava agora diante de Pedro. Uma pesca abundante é agora a glória para um pecador guiado pelo céu; e assim que a glória está ao seu lado, como esteve em outros no passado, Pedro aprende sobre si mesmo. Seus olhos veem Deus, e Pedro abomina a si mesmo no pó e nas cinzas.
Este conhecimento de nós mesmos pela luz de Deus forma o princípio do arrependimento. Podemos ler muitas páginas manchadas em nossa história, e ficar tristes e envergonhados disso; mas ler a nós mesmos à luz da glória e presença de Deus leva àquele arrependimento que o Espírito opera. Aprendemos que somos morenos, quando o Sol resplandece sobre nós (Cantares 1), quando o resplendor ardente da glória se levanta sobre nós, como aqui sobre Pedro.
E deixe-me acrescentar que, assim como aprendemos a nós mesmos dessa maneira, também aprendemos a Deus. Assim como minhas transgressões e loucuras podem me dizer muito sobre mim mesmo, mas não me conhecerei devidamente e completamente até que me veja na luz da glória de Deus, assim as obras de Deus podem me dizer muito sobre Ele, Seu poder e Divindade, mas não O conhecerei realmente como Ele é até que O veja pelas trevas da minha própria iniquidade. Então é que aprendo Deus de fato, quando O vejo na face de Jesus Cristo, provendo para mim, um pecador, e removendo minhas trevas e vergonha para sempre nas abundantes riquezas de Sua graça. Foi assim que Adão aprendeu a Deus. Os seis dias de trabalho da mão de Deus não deram a Adão tudo o que Deus tinha para ele, nem disseram a Adão tudo o que Deus era para ele. Foi sua transgressão que extraiu todo o tesouro. “Ele esmagará tua cabeça, e tu Lhe esmagará o calcanhar” (JND), era a palavra que contava o que Deus era. A Semente da mulher era um segredo que a criação não havia declarado; era um tesouro mais rico do que todo o fruto do Éden, o qual, a graça abundante sobre o pecado e não o trabalho das mãos criadoras, havia tornado de Adão. Adão então aprendeu Deus de fato, e o pecador assim O aprende agora. E esta é a sequência do mistério da morte e da vida – aprendemos a nós mesmos, todas as trevas que somos, na luz da glória divina; aprendemos a Deus, toda bondade que Ele é, pelo mal do nosso próprio pecado.
Benditas verdades são estas às quais nosso evangelista aqui nos conduz. A cena é peculiar a ele, mas totalmente no caminho do Espírito, que por ele traça nosso Senhor como o Grande Mestre, lidando com os corações e consciências dos homens, e com verdades e princípios. E sobre esta cena eu observaria ainda, que o fato de os barcos quase irem a pique aqui não foi motivo para Pedro ficar alarmado, como foi depois (Mt 14). Aqui ele não sente, ou pensa sobre isso, pois sua alma estava cheia de outros pensamentos, e seus olhos completamente com outros objetos, de modo que ele não tinha lugar para pensamentos de si mesmo, ou para o medo. Pois esta é a verdadeira cura da dúvida e do medo e de toda confusão. E que pena que este novo senso da plenitude que está em Jesus deva sempre esfriar. Foi depois disto que Pedro temeu as águas, porque foi depois disto que sua visão estava menos ocupada com Cristo. Oh, a vergonha e a tristeza de tudo isto! Mas também não falharam os mais brilhantes dos nossos companheiros, queridos irmãos? Até mesmo Davi, que está entre nós (os redimidos do Senhor) em um lugar tão querido e honrado, quando um jovem na batalha, podia dizer até mesmo a um gigante: “Hoje mesmo o SENHOR te entregará na minha mão”; mas depois disse em seu coração: “Ora, ainda algum dia perecerei pela mão de Saul”. Que bom para nós, de fato, que Alguém permaneceu na vida e na morte para o perfeito agrado e louvor de Deus. A mão de Saul, que Davi temia, não era tão grande quanto a mão de Golias, que Davi desprezava; mas então, Cristo não era tão grande e pleno diante dos olhos da fé de Davi depois, como Ele tinha sido antes no vale de Elá.
Mas não entro nos detalhes adicionais deste capítulo. Nós os temos de forma geral em outros Evangelhos. Há, no entanto, no final dele, algumas palavras que são peculiares ao nosso evangelista, e que eu, portanto, gostaria de observar. “Ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo, porque diz: Melhor é o velho”.
Isto ainda está no caráter deste Evangelho, pois ele revela outro grande segredo na natureza humana, o poder dos hábitos e associações do homem, que, humanamente, tanto impede a operação de Deus em sua alma. Temos bebido o vinho velho (aquele que a carne tem nos fornecido desde o nosso nascimento), e nosso apetite pelo vinho novo (aquele que o Filho de Deus trouxe Consigo) está estragado. Todos nós estamos conscientes disto. “Pode o etíope mudar a sua pele ou o leopardo as suas manchas?” diz o profeta. “Nesse caso também vós podereis fazer o bem, sendo ensinados [acostumados – ARA] a fazer o mal”. E aqui o Grande Profeta, em sabedoria semelhante, nos adverte, que “ninguém, tendo bebido o velho, quer logo o novo”.
E essa é, amados, uma solene advertência. Que todas as coisas são possíveis para Deus, é a coisa mais verdadeira, e Ele dá mais graça. Mas ainda assim fazemos bem em tomar cuidado para não nos deleitarmos no vinho velho. Cada pensamento que permitimos, cada desejo que nos concedemos, tem o sabor do velho ou do novo. É um gole (por menor que seja), mas ainda assim é um gole de um ou de outro. E isso deixa uma palavra solene atrás de si no coração e na consciência de cada um de nós. Em que você está pensando? O que você está saboreando agora? Podemos dizer à nossa alma ao longo do dia. É provisão para a carne que você está fazendo? Ou é uma caminhada no santuário? Vem do céu ou do inferno? E muitas vezes o santo tem que aprender, para sua tristeza e vergonha, no final, o tipo de provisão que ele estava fazendo pelo caminho. O patriarca não estava embriagado inicialmente, mas ele se tornou um lavrador, plantou uma vinha e então bebeu do vinho. A alma pode responder indignada “É teu servo um cão, para fazer essa… coisa?” (JND); mas se os temperamentos ocultos do cão forem permitidos, sua fúria ativa irromperá com o tempo. “Andai no Espírito”, é a segurança divina, “e não cumprireis a concupiscência da carne”. E certamente, amados, um pouco dessa caminhada deve nos capacitar a mudar o discurso e dizer: O novo é melhor. É isso que nosso bendito Senhor deseja. O hábito santo e vigilante de negar a carne, seus temperamentos e suas concupiscências, manterá o apetite fresco e pronto para este vinho novo e melhor; e que a mão gentil e forte do Espírito conduza nossa alma diariamente a tudo isso!
