Origem: Livro: Os Evangelistas
Lucas 7
Este capítulo começa com outro exemplo, em nosso evangelista, de desconsideração de meras circunstâncias e ordem de tempo; pois o lugar que o caso do centurião preenche neste Evangelho não é de acordo com o que ocupa nos outros.
Há também, nesta narrativa, detalhes peculiares e característicos. Assim, aprendemos aqui sobre o fato de ele ter enviado os Judeus ao Senhor em seu favor, uma circunstância que Mateus não menciona. Isso ocorre porque Mateus, escrevendo mais diretamente para os convertidos Judeus, não registraria esse aspecto do caso, pois poderia alimentar o antigo orgulho nacional; ao passo que Lucas, escrevendo mais para os gentios, desejaria que eles se lembrassem do antigo favor em que os Judeus uma vez estiveram diante de Deus. Ambas essas abordagens tinham seu valor moral, que o Espírito certamente levaria em consideração. Então, com uma intenção moral semelhante, Lucas não menciona o comentário do Senhor sobre a fé deste gentio, como Mateus o faz – o evangelista Judeu menciona isso, pois poderia ajudar a conter o surgimento de um orgulho Judaico; já o outro não menciona, pois poderia ajudar a despertar um sentimento semelhante na mente de um gentio.
Essas distinções me parecem perfeitas em seu lugar. E então temos (e somente aqui) o caso da viúva de Naim, um caso que afeta tão ternamente o coração humano, que ele está apropriadamente sob o conhecimento do Espírito em Lucas. Pois no estilo de alguém que estava olhando para o homem, e suas tristezas e afeições, nosso evangelista nos diz que o jovem que havia morrido era “filho único de sua mãe, que era viúva”; e novamente, quando o Senhor o ressuscitou, que Ele “entregou-o à sua mãe”. Esses são traços e toques, bem de acordo com os tons humanos que têm sua corrente feliz e graciosa através da mente do Senhor neste Evangelho. E a pequena palavra “único” é peculiar a Lucas. Ela é usada no caso da filha de Jairo, e do homem cujo filho estava possuído por um espírito maligno, e aqui no caso da viúva de Naim. E tal palavra apelaria ao terno coração do Filho do Homem, e é amável e tocante em seu lugar. Quem dera pudéssemos captar mais do mesmo espírito terno, enquanto nos deleitássemos ao descobri-lo em Jesus!
E não posso deixar de notar, em conexão com este capítulo, o que me impressionou nos Evangelhos – a facilidade com que nosso Senhor permitiu que o véu d’Ele caísse diante da demanda da fé. Antigamente, quando foi solicitado a um rei de Israel que curasse um homem de sua lepra, ele rasgou suas roupas e disse: “Sou eu Deus, para matar e para vivificar?” Mas Jesus, o desprezado Galileu, em todo o repouso e certeza da glória consciente, vira-Se imediatamente para dizer: “Quero: sê limpo”. A glória do Deus de Israel resplandeceu então sem distração, quando a fé rasgou o véu. Então aqui – a fé de um gentio apela a Ele como o Senhor do céu e da Terra, que uma vez disse em uma palavra: “Haja luz, e houve luz” e agora poderia apenas dizer “uma palavra”, e o servo do centurião seria curado; e imediatamente, com a mesma facilidade, a glória divina irrompe novamente. Nenhuma perturbação, como se algo estranho estivesse sendo feito; era apenas olhar através da nuvem novamente, era apenas deixar o véu cair, para que “o Sol criador da vida”, o semblante do próprio Deus, pudesse aparecer em poder e graça. Qualquer coisa que pertencesse a Deus não era grande demais para Jesus, quando a fé O descobria. Mas, a não ser pela fé, Ele velou a Si mesmo; pois Ele veio, o esvaziado Filho de Deus, para expiar os pecados e nos levar para casa, para Aquele de quem havíamos nos afastado em orgulho. A fé, por assim dizer, O intitulava a Se conhecer novamente por um momento; e esse deve ter sido um momento bendito para Ele. Mas, de outra forma, por amor a nós, Ele Se recusou a Se conhecer neste mundo mau e apóstata, dizendo: “Minha bondade não se estende a Ti” (Sl 16:2 – JND).
Este capítulo então apresenta a missão de João Batista ao Senhor, o que acredito ser um assunto de grande interesse e significado.
João tinha, muito antes disso, testemunhado a Pessoa do Filho de Deus. Quanto a isso ele não tinha dúvidas. Mas parece que ele não estava preparado para todos os resultados de ser a testemunha do Senhor. Como Moisés em seus dias. Moisés era o ministro de Deus, e tinha a condução do arraial através do deserto. Mas ele ficou impaciente sob a acusação, e diz: “Concebi eu, porventura, todo este povo? Gerei-o eu para que me dissesses que o levasse ao colo?” A fraqueza de sua mão para segurar a glória se revela, e setenta outros são estabelecidos para compartilhá-la com ele. Mas embora ele seja assim repreendido no lugar secreto do Senhor, ainda assim diante dos outros seu Senhor o vindicará; de modo que, imediatamente depois, Arão e Miriã são colocados para sinalizar reprovação por não terem medo de falar contra ele (Números 11-12). Assim também aqui com João Batista. João revela a fraqueza comum, e é escandalizado em Cristo. Como Moisés, ele se torna impaciente, não estando preparado para todo o custo e encargo de ser prisioneiro do Senhor, bem como ministro. Ele sabia que Jesus era o Filho de Deus, assim como Moisés sabia que Jeová era o Redentor de Israel; mas como os murmúrios do acampamento tinham sido demais para um, assim a prisão e as injúrias de Herodes agora provam ser demais para o outro; e João, como Moisés, deve ouvir uma repreensão em segredo: “Bem-aventurado aquele que em Mim se não escandalizar”. Mas diante dos homens também, como Moisés, ele permanecerá graciosamente aprovado por seu divino Mestre. “Entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João Batista”.
Este é o caminho constante do Senhor. Ele feriu Israel repetidas vezes nos lugares secretos do deserto, mas diante de seus inimigos Ele era como Aquele que não tinha visto iniquidade neles. Muitas questões foram resolvidas entre o Senhor e o arraial quando estavam a sós, mas no julgamento dos ímpios eles não deveriam entrar. E assim estão os santos agora sob o julgamento do Pai, mas o julgamento futuro não os aguarda. Naquele dia eles devem ter ousadia.
Assim, João aqui prova a fidelidade e a graça de seu bendito Mestre. E depois que o Senhor assim o defendeu e honrou diante daquela geração, Ele Se volta para dar a eles o caráter que eles haviam conquistado pelo tratamento que deram a João e a Ele mesmo. E o que é isso, senão uma revelação de nós, de que o homem é uma criatura que Deus não pode curar? Deus agora estava fazendo prova completa dele, dirigindo-se a ele por diferentes ministérios, mas o homem não tinha resposta para Deus. Quando Ele lamentou para ele, o homem não tinha lágrimas; quando Ele tocou flauta para ele, o homem não tinha dança. O coração humano não foi encontrado como instrumento para o dedo de Deus. Tudo estava desafinado, quando Deus o experimentou. Inteligência, zelo e ação estão lá a mando e despertando outras influências, mas nada estava lá para Deus. Ele havia levantado um tom solene pelo Batista, que veio não comendo nem bebendo, e depois um tom mais alegre pelo sociável Filho do Homem; mas não havia música no coração do homem para Deus. Isso foi agora provado após o teste das mãos mais hábeis. Pois todas essas tentativas estavam provando a habilidade do tocador, de modo que a sabedoria permaneceu “justificada por todos os seus filhos”. O que poderia ter sido feito mais do que foi feito? “Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não chorastes”.
Depois dessa solene palavra, nosso evangelista nos leva a outra cena – a casa de um fariseu, onde o Senhor tinha ido, a convite, para jantar. Pois nosso Senhor neste Evangelho é eminentemente o Social – Social como um Homem, para conversar com os homens. Portanto, nós O encontramos aqui, como já observei, mais frequentemente do que nos outros Evangelhos, assentado para refeições nas casas de outros, sejam eles quem forem, pois ali Ele poderia encontrar a mente relaxada e livre para que ela se mostrasse.
Esta cena na casa do fariseu é de grande valor moral. Ela nos mostra que nada nos introduz correta ou realmente a Jesus, a não ser nossos pecados. Admirá-Lo como um Mestre, ou como um Fazedor de milagres, nunca nos lançará em Seu caminho de acordo com Deus. É somente o pecado e o senso dele que podem realmente nos introduzir ao Filho de Deus; pois Ele é um Salvador, e enviado a nós pelo Deus bendito como tal. Nicodemos foi levado a Ele como um Fazedor de obras poderosas; mas Nicodemos deve nascer de novo, deve ter outros pensamentos sobre Ele, antes que ele possa ir a Ele de maneira apropriada. Então, vemos aqui, este fariseu. E é claro que não foi como um pecador que ele O conheceu. Ele havia sido atraído, atraído amigavelmente também, por algo que ele tinha visto ou ouvido falar d’Ele, e ele prepara um banquete para Ele. Mas há outra pessoa na casa que O alcança por um caminho completamente diferente. Ela é uma mulher da cidade, uma pecadora, e seus pecados a trazem a Ele, e ela prepara outro banquete para Ele; e é no banquete dela, e não no do fariseu, que o Senhor realmente Se assenta. As lágrimas, unguento e beijos dela são o banquete ao qual o Filho de Deus Se assenta, enquanto toda a mais custosa provisão do anfitrião é ignorada.
Isto é muito abençoado. É o pecador que realmente proporciona o banquete e a companhia para Jesus. Nem a mesa nem os amigos do fariseu eram adequados para Ele. É somente a fé que O apreende como o Salvador que pode preparar uma mesa para o Filho de Deus neste mundo desértico. E observo em cada lugar onde a conversão de Levi, o publicano, é registrada, que somos informados imediatamente depois que ele preparou uma refeição para o Senhor em sua própria casa. Pois ele era um daqueles a quem Jesus desceu dos céus resplandecentes para encontrar. Ele era um publicano, um pecador reconhecido e declarado no mundo; e Jesus era o Salvador. A fé de tais, portanto, abriu a porta e O entreteve, fez com que Ele fosse bem-vindo em Seu próprio caráter, enquanto todo o resto apenas O manteve do lado de fora.
É nossa alegria saber disso e crer nisso. E quando começamos como pecadores com um Salvador, nossa jornada é maravilhosa e gloriosa além de todo pensamento; pois nossos pecados nos levam a Cristo, e então Cristo nos leva ao Pai. E que caminho é esse! Ele se estende desde os lugares mais tenebrosos e distantes da criação, onde o pecado e a morte reinam, até os céus mais altos, onde o amor e a glória habitam e brilham para sempre. Os anjos têm sua própria esfera imaculada para se mover, mas eles nunca trilharam um tal caminho como este. A Igreja passa das trevas de um pecador para a luz maravilhosa de Deus, e não houve nada parecido com isso; e ninguém, a não ser um pecador consciente do valor do Filho de Deus, pode entender isso. E vejo, a partir dessa cena impressionante, que esse caráter de um pecador salvo pela graça do Filho de Deus, é lembrado até o fim. Esta mulher amou muito, mas seu amor não serviu para ela como pecadora; pois no final o Senhor lhe diz: “A tua fé (não teu amor) te salvou; vai-te em paz”. Isso deve ser muito observado por todos nós, pois é muito reconfortante. O fruto do nosso amor pode ser honrado diante dos outros, como aqui as lágrimas e o unguento desta pobre mulher são reconhecidos diante do fariseu. Um copo de água fria não perderá sua recompensa, se dado por amor a Cristo. Mas diante da consciência do pecador nada é reconhecido, a não ser o sangue e a fé que nele repousa. É a fé, e não o amor, que nos envia em nosso caminho com o eunuco regozijando, ou nos ordena, com esta pobre mulher, a ir em paz. E é doce, portanto, ser lançado em Jesus, e sobre Ele somente. Que a alma seja tão elevada, o andar tão brilhante e imaculado, e o amor tão brilhante, quanto eles possam ser, que a experiência seja tão rica e variada quanto a de Davi ou Paulo, ainda assim Jesus, Jesus, é o único Salvador. Jesus primeiro envia em paz, e a primeira confiança e gozo devem ser mantidos firmes até o fim.
Não posso, no entanto, fechar esta parte do nosso Evangelho, ou abandonar esta casa do fariseu, lugar frutífero como é, sem dar outra olhada nela. Pois me parece ter sido um lugar onde o grande conflito que tem sido frequentemente travado, o conflito entre a carne e o Espírito, ou entre as duas esposas, a escrava e a livre, foi novamente testemunhado.
Por transgressões, como a de Adão, a criatura assumiu força independente de Deus; e, portanto, ao restaurá-la, Deus deve ensiná-la que somente Ele é soberano, e que toda força da criatura precisa falhar. E esta é a lição que a lei e o evangelho juntos ensinam; pois a lei, testando o homem, mostra a vaidade da confiança na carne; o evangelho, revelando Deus, mostra a segurança da confiança n’Ele. E o mistério das duas esposas ensina o mesmo. Agar tinha força na carne, mas sua semente não era a herdeira. Leia tinha força e título na carne, mas seu filho não se destacou, mas perdeu o direito de primogenitura. Penina tinha força na carne, mas nenhum filho dela livrou Israel de sua miséria e opressão. Por outro lado, toda bênção e honra estavam com os filhos da promessa. Isaque causou risos, e foi ele em quem a casa de Abraão foi estabelecida. José obteve o direito de primogenitura, e, assim que José nasceu, Jacó falou em retornar à sua herança, pois “se… filhos… logo, herdeiros também”. Samuel encheu o coração e os lábios da mãe com um cântico, e foi nutrido até que levantou Israel do pó, recuperou a glória das mãos do inimigo e levantou a pedra de ajuda no meio do arraial. E todas essas coisas nos ensinam, assim como a lei e o evangelho nos ensinam, que pela força nenhum homem prevalecerá. “Despediu vazios os ricos”, o arco dos fortes foi quebrado, mas a pobre serva é lembrada, e aquela que era estéril dá à luz sete filhos.
Essa é a lição que Deus está nos ensinando; a lição necessária em um mundo como o nosso, onde a criatura se afastou de Deus em orgulho, na presunção de força querendo ser Deus. Portanto, o Senhor Deus está sempre dizendo: “Não por força, nem por violência, mas pelo meu Espírito”.
Esse é o conflito neste nosso mundo, e aquilo que é da carne ou do homem sempre lutou com o que é de Deus ou do Espírito, e esta luta nós temos exibido desde tempos muito antigos, e ainda a temos. A casa das duas esposas, à qual me referi, constantemente a apresentou. A de Abraão testemunhou muito especialmente. Ali Agar e Sara por um tempo moraram juntas, mas em discórdia e conflito. A família de Jacó apresentou o mesmo. Leia tinha o direito da carne ou do primogênito, mas Raquel era o objeto de eleição e deleite; e elas duas, as esposas do mesmo marido, moravam juntas, mas não conseguiam concordar. Na casa de Elcana era o mesmo. Penina e Ana eram Agar e Sara, Leia e Raquel novamente – orgulho e provocações com uma, e tristeza constante de coração com a outra. E todas essas cenas eram as expressões da maneira como a carne persegue o Espírito. A Igreja na Galácia foi outra cena da mesma luta. E o coração de cada crente é, em medida, o mesmo. E nada cura a casa, a Igreja ou o coração, senão fortalecer a mulher livre, dando frutificação à semente de Deus, ao espírito de adoção, ao princípio do “como crianças”, a liberdade santa em nós e entre nós. Dê à luz Isaque, e mande Ismael embora, e habite numa casa indivisa. “Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou e não torneis a meter-vos debaixo do jugo da servidão [escravidão – ARA]”.
Agora o Senhor encontrou Israel muito parecido. O que nasceu segundo a carne perseguiu o que nasceu segundo o Espírito. A pobre mulher estéril foi encontrada lá novamente, a pecadora contaminada e a publicana, fraca e perdida em si mesma, recebendo a visitação graciosa do Deus de todo poder e amor, mas sofrendo o desprezo e a perseguição daqueles que tinham força em si mesmos, como eles julgavam – os fariseus, as Agares e as Peninas daquele dia. Tudo isso era, em princípio, a carne e o Espírito novamente, a escrava e a livre; e esta casa que agora visitamos foi uma amostra disso.
Que nossa fé seja fortalecida para fazer justiça ao amor de Deus! Esse amor reivindica nossa plena e feliz confiança. Dar-lhe apenas uma confiança hesitante e suspeitosa é tratá-lo indignamente. Que todo esse espírito de medo e escravidão se vá! Que a verdadeira Sara em nosso coração clame, e clame até que prevaleça: “Lança fora a escrava e seu filho”. Pois quando o Senhor faz Sua obra, Ele a faz de uma forma digna de Si mesmo. Quando Israel saiu do Egito, eles saíram, não como se estivessem envergonhados de si mesmos, mas arregimentados e de mãos cheias. Eles saíram como o exército de Deus deveria sair. Nenhum cão ousou mover sua língua contra eles, nem havia uma pessoa fraca entre suas tribos. E assim é conosco; pecadores, saindo de debaixo do poder das trevas com nosso Redentor. Não devemos prosseguir com medo e desconfiança, como se dificilmente pudéssemos confiar no braço que nos estava salvando, mas de uma maneira que declare claramente que a obra é a obra d’Aquele cujo “amor é tão grande quanto o Seu poder, e não conhece medida nem fim”.
Devemos deixar a casa do fariseu para trás de nós, como esta pobre pecadora, sem nos importar com o que o grupo ali diz, mas ainda carregando em nosso coração e ouvido o doce eco da voz do Senhor, que nos fala de paz. Então, sairemos, como Israel do Egito, como os redimidos do Senhor devem sair, deixando o inferno e a Terra saberem, em nossa jubilosa e perfeita certeza de Sua salvação, que Aquele que é mais elevado do que o mais elevado está do nosso lado, e que estamos nos alimentando do “pão dos poderosos”.
