Origem: Livro: O Evangelho Segundo Marcos

Marcos 10

A abertura deste capítulo nos aproxima das cenas finais da vida do Senhor. Ele estava do outro lado do Jordão, mas perto das fronteiras da Judéia, e os fariseus apareceram, opondo-se a Ele, tentando-O. Ao levantar questões quanto ao casamento e ao divórcio, esperavam envolvê-Lo em alguma contradição das coisas que Moisés havia ordenado, e assim encontrar um ponto de ataque. O Senhor não contradisse Moisés, mas retornou para além dele, ao pensamento original de Deus na criação do homem e da mulher. Os fariseus eram grandes defensores da lei de Moisés, mas Ele lhes mostrou que, neste caso, a lei não expressava o pensamento original de Deus. É importante perceber isso, pois nos fornece uma razão pela qual a lei não se torna a regra de vida para o Cristão.

A lei desceu abaixo da altura do pensamento de Deus, mas Cristo não: Ele o manteve totalmente. O versículo 9 eleva toda a questão do casamento desde o nível do homem e da conveniência humana até o nível de Deus e Sua ação. É uma instituição divina e não um arranjo humano e, portanto, não deve ser adulterado pelos homens. Se Deus une, não o separe o homem.

Este versículo afirma um grande princípio que é universalmente verdadeiro. O inverso também é verdadeiro – o homem não deve unir o que Deus separou. É um fato triste que desde que o pecado entrou, o homem tem sido consumido com o desejo de desfazer o que Deus fez. É assim nas coisas naturais, e muitos dos males que sofremos vêm da nossa adulteração das coisas dadas por Deus, mesmo em questões de comida, etc., e geralmente perturbando o equilíbrio das coisas que Ele estabeleceu. Certamente é assim nas coisas espirituais. Muitas dificuldades e muitos problemas desnecessários da alma nascem do mau entendimento quanto às coisas que Deus juntou em Sua Palavra, ou coisas que Ele separou.

Tendo estabelecido o casamento diante deles na luz correta, o Senhor trata, nos versículos 13 a 16, com as crianças. Quanto a estas, os discípulos compartilham os pensamentos comuns do mundo, que estão muito abaixo dos pensamentos de Deus. Os discípulos julgaram que elas eram demasiado insignificantes para a atenção do Mestre, mas Ele pensava de outra forma. Ele as recebeu com alegria, tomou-as em Seus braços, colocou as mãos sobre elas e as abençoou. Ele também mostrou que a única maneira de entrar no reino de Deus é ter o espírito e a mente de uma pequena criança. Se alguém se aproxima desse reino como alguém significante, ele encontra a entrada bloqueada. Se ele vier como um insignificante ninguém, ele poderá entrar.

Então, nos versículos 17-27, recebemos o ensinamento do Senhor em relação às possessões. É impressionante como casamento, filhos e posses se sucedem neste capítulo, pois muito de nossa vida neste mundo está ocupado com essas três coisas. Todas as três estão pervertidas e são mal-usadas nas mãos de homens pecadores; e todas as três são colocadas na posição correta nos ensinamentos de nosso Senhor.

Aquele que veio correndo para Jesus exibiu muitos aspectos louváveis. Mateus nos diz que ele era jovem e Lucas que ele era um príncipe. Ele era sincero e reverente e reconhecia n’Ele um grande Rabi[8], que podia dirigir os homens para a vida eterna. Ele tomou como certo que a vida deveria ser obtida por ações humanas, de acordo com a lei. Evidentemente ele não tinha ideia da Divindade de Jesus e, portanto, temos as palavras do Senhor no versículo 18. Ele repudiou a bondade à parte de ser Ele Deus, ao dizer, de fato: “Se Eu não Sou Deus, não Sou bom”.
[8] N. do T.: Rabi é um título de respeito entre os judeus, significando “mestre”, “instrutor”, mas não se sabe que tenha sido usado até a época de Herodes, o Grande. Foi aplicado ao Senhor, embora muitas vezes traduzido como “mestre” (Mc 9:5, 11:21, 14:45; Jo 1:38, 49, 3:2, 26, 4:31, 6:25, 9:2, 11:8. Jesus proibiu os discípulos de serem chamados de Rabi, pois um era seu Mestre (καθηγητής – instrutor), a saber, Cristo (Mt 23:8). De acordo com os judeus, as graduações de honra subiam de rabi a rabino, e daí para raban ou raboni (Jo 20:16) “Concise Bible Dictionary”, pág. 647.

Quando o jovem fez sua pergunta com a lei em mente, o Senhor o remeteu à lei, particularmente aos mandamentos relacionados ao dever do homem para com o próximo. Ele poderia alegar ter observado esses mandamentos, pelo menos no que diz respeito a seus atos, e Jesus, olhando para ele, o amou. Isso mostra que sua alegação, de corretamente observar essas coisas que a lei impunha, era verdadeira. Ele tinha um caráter excepcionalmente bom, com características que em si eram prazerosas a Deus. O Senhor não menosprezou essas amáveis características. Ele as admitiu e olhou para ele com um olhar amoroso.

Ainda assim, Ele o provou. Uma coisa ele não tinha, e isso era a fé dada por Deus, que teria tomado posse de Quem era Jesus, e o levaria a tomar a cruz e segui-Lo; a fé que teria preferido o tesouro no céu ao tesouro na Terra. Ele esperava que o Senhor o direcionasse a alguma obra da lei pela qual a vida deveria ser alcançada; em vez disso, ele foi direcionado a uma obra de fé. Entristecido em seu coração, ele foi embora. Ele não possuía fé; então era impossível para ele mostrar sua fé por suas obras. A mesma prova nos vem. Como respondemos a isso?

Esta é uma questão tremenda. Quão lentos todos nós somos para desistir da lei em favor de Cristo e da Terra em favor do o céu! Não é de se admirar que o Senhor fale da dificuldade com que os ricos entram no reino. O versículo 23 fala daqueles “que têm riquezas”, e versículo 24 daqueles “que confiam nas riquezas”. O fato é que, é claro, é muito difícil ter riquezas sem confiar nelas. Naturalmente nos apegamos às riquezas e à Terra. Cristo oferece a cruz e o céu.

Os discípulos, acostumados a considerar as riquezas como um sinal do favor de Deus, ficaram muito surpresos com essas palavras; eles sentiram que elas completamente lhes tiraram o chão debaixo de seus pés. De fato, elas fazem isso. “Quem poderá, pois, salvar-se?” é uma significativa questão. O versículo 27 dá a resposta definitiva. A salvação é impossível por meio dos homens, embora seja possível por meio de Deus. Em outras palavras, era como se o Senhor dissesse: “Se for uma questão do que o homem pode fazer, ninguém pode ser salvo; mas se for uma questão sobre o que Deus pode fazer, qualquer um pode ser salvo”.

Enfatizamos essa palavra. Salvação conseguida pelos homens não é improvável, mas IMPOSSÍVEL. A porta, no que diz respeito aos nossos próprios esforços, está trancada para nós. Deus abriu outra porta, porém, é pela morte e ressurreição, para a qual o Senhor agora estava dirigindo os pensamentos de Seus discípulos.

Embora a morte e ressurreição estivesse diante da mente do Senhor, glória terrena ainda estava diante da mente de Pedro, e ele demonstrou isso por sua observação registrada no versículo 28. Ele se referia, certamente, para a prova que o Senhor tinha acabado de apresentar ao príncipe jovem e rico. Pedro achava que, embora o príncipe tivesse falhado diante da prova, ele e seus companheiros no discipulado não falhariam; na verdade, ele realmente acrescenta, como Mateus registra: “que recompensa, pois, teremos nós?” (Mt 29:27 – AIBB). Sua mente, investigativa e impetuosa, desejava antecipar as boas coisas que viriam. A resposta do Senhor indicava que na época atual deveria haver um grande ganho, embora com perseguições e, na era vindoura, a vida eterna.

Esta declaração de nosso Senhor é ilustrada pela vida de serviço de Paulo, como visto em Escrituras como Atos 16:15, 18:3, 21:8; Romanos 16:3-4, 23; 1 Coríntios 16:17; Filipenses 4:18; Filemon 22. Casas estavam à sua disposição em muitas cidades, e muitos consideravam uma honra cumprir a parte de irmão, irmã, mãe ou filho em relação a ele. As perseguições certamente pertenciam a ele. A vida eterna no mundo vindouro estavam diante dele. Tal é a porção daqueles que seguem e servem este perfeito Servo de Deus.

O versículo 31 foi evidentemente proclamado como um aviso e uma correção para Pedro. O ímpeto aqui pode não significar o primeiro lugar lá. Tudo depende do motivo por trás do serviço. Se Pedro quisesse fazer uma barganha – seguir tanto para receber tanto – isso por si só se mostraria um motivo incorreto. Ainda assim, não diz que todos os que são os primeiros, serão os últimos e que todos os últimos serão os primeiros. Paulo foi à frente de todos em seu dia, e quem pode desafiar a pureza de seu motivo, ou a realidade de sua devoção ao seu Senhor?

A coisa que Pedro e o resto mais precisavam era perceber e entender a morte e ressurreição do seu Mestre que se aproximava rapidamente. Não há nada que nós, hoje, dezenove séculos após o evento, mais profundamente precisamos perceber e entender. Não é apenas a base de toda a nossa bênção, mas transmite o seu próprio caráter para toda a vida e serviço Cristãos. Nenhum serviço inteligente pode ser prestado, exceto à luz disso.

Os versículos 32 a 34 nos dão a quarta ocasião em que o Senhor instruiu Seus discípulos a esse respeito; e o pedido de Tiago e João, registrado no versículo 37, forneceu ao Senhor uma quinta ocasião. A mente deles ainda estava cheia de expectativas relativas a um reino glorioso na Terra, e eles desejavam promover seus próprios interesses naquele reino. Agora o Senhor Jesus estava aqui como o perfeito Servo da vontade de Deus, e isto significava para Ele o cálice do sofrimento e o batismo da morte. Posições de honra no reino vindouro serão concedidas para aqueles que serviram este maravilhoso Servo, de acordo com a medida que aceitaram o sofrimento e a morte em Seu nome. Ainda assim, Ele não designa essas posições de distinção. Tudo isso fica a critério do Pai, pois Ele permanece fiel ao lugar de Servo que Ele tomou. A não ser que permaneçamos fiéis à posição em que fomos colocados – o lugar de identificação com nosso Senhor rejeitado – não podemos esperar nenhum lugar de reconhecimento especial na glória do reino.

Essa descarada caça por posição por parte de Tiago e João pode nos inclinar a culpá-los acima de todos os outros, se não fosse pelo versículo 41, que mostra que os mesmos desejos egoístas eram cogitados por todos, e que se opuseram, não por causa do pedido que os dois haviam feito, mas porque haviam sido postos para trás pela maneira como os dois agiram. O aborrecimento deles, porém, só deu mais ocasião para a manifestação da graça perfeita do Senhor deles.

Quão fácil era, e é, que os discípulos de Jesus aceitem e adotem os padrões e costumes do mundo em sua volta, para supor que, porque todos parecem estar fazendo algo, então essa é a coisa certa a se fazer. Repetidamente o Senhor nos diria: “Mas entre vós não será assim”. As nações têm seus grandes homens, que exercem sua autoridade de um modo arrogante. Entre os discípulos do Senhor, a grandeza se manifesta de uma maneira completamente diferente. Entre eles a verdadeira grandeza é manifestada ao se tomar a humilde posição de servir aos outros – servindo ao Senhor ao servir a outros.

O Filho do Homem é o brilhante exemplo de serviço deste tipo. Quem era tão grande como Ele em Seu estado original? Então “milhares de milhares O serviam” (Dn 7:10). Quem tomou um lugar tão humilde, ministrando aos outros? Quem prestou serviço a tal ponto de “dar a Sua vida em resgate de muitos”? Somente por essa razão, além de outras considerações, o lugar de preeminência deve ser d’Ele. Aqueles que O seguem mais de perto no serviço humilde neste dia, serão os mais importantes naquele dia.

No versículo 45, o Senhor não apenas traz a morte diante de Seus discípulos pela quinta vez, mas explica seu significado. Anteriormente, Ele havia evidenciado o fato de Sua morte, para que as mentes dos discípulos não mais estivessem obcecadas pelas expectativas de um reino visível chegando. Agora o significado do fato aparece. Ele iria morrer para pagar o preço do resgate de muitos. Aqui, então, vinda de Seus próprios lábios, temos uma afirmação clara quanto ao caráter substitutivo e expiatório de Sua morte. É por “muitos”, pois o ponto aqui é o efeito verdadeiro e percebido de Sua morte redentora. Em 1 Timóteo 2:6, onde a abrangência e o alcance dela estão em questão, a palavra é “todos”.

Esses tratamentos com os Seus discípulos aconteceram “no caminho subindo para Jerusalém” (v. 32). No versículo 46 eles chegam a Jericó, e as cenas finais de Sua vida começam. Bartimeu, o mendigo cego, forneceu-lhe uma notável oportunidade de manifestar a misericórdia de Deus. Misericórdia era o que o cego ansiava, embora o povo, que não entendia a misericórdia divina, o tivesse silenciado. No entanto, ele conseguiu misericórdia, e isso foi além de seus pensamentos, pois não só lhe deu a visão, mas o alistou como um seguidor daqu’Ele que lhe estendeu a misericórdia. A fé de Bartimeu foi mostrada ao se dirigir a Jesus como o Filho de Davi, embora outros falassem d’Ele apenas como Jesus, o Nazareno. Sua fé pode ter sido apenas uma pequena fé, pois não chegou ao apogeu de chamá-Lo de Filho de Deus; mas pouca fé recebe uma resposta abundante, tanto quanto, certamente, recebe a grande fé. Sejamos gratos por isso.

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