Origem: Livro: As Três Manifestações de Cristo
A Mediação
Muitas almas estão propensas a confundir duas coisas que, embora inseparavelmente unidas, são perfeitamente distintas, a saber, a mediação e a expiação. Sem enxergar a divina plenitude da expiação, estão de certo modo procurando que a mediação faça por eles o que a expiação já fez. Devemos nos lembrar de que, apesar de, quanto à nossa posição, não estarmos na carne e sim no Espírito, ainda quanto ao estado atual de nossa condição nós continuamos em nosso corpo. Estamos em espírito e, pela fé, sentados nos lugares celestiais em Cristo; mas ainda estamos atualmente no deserto, sujeitos a toda sorte de enfermidades, sujeitos a cair e errar de mil maneiras. É para a provisão de nossa condição e necessidades atuais que a mediação, ou sacerdócio, de Cristo é designada. Louvado seja Deus por tão bendita provisão! Como pessoas que estão, no corpo, atravessando este mundo, nós necessitamos de um grande sumo sacerdote para manter o elo de comunhão, ou para restaurá-lo quando partido. Temos Um vivendo sempre para interceder por nós; e nem poderíamos passar sem Ele um momento sequer. A obra de expiação nunca é repetida; a obra do Mediador nunca é interrompida. O sangue de Cristo, uma vez aplicado à alma pelo poder do Espírito Santo, não é nunca aplicado novamente. Pensar numa repetição é duvidar de sua eficácia e reduzi-lo ao nível do sangue de bezerros e bodes. Sem dúvida as pessoas não veem assim, e certamente não iriam querer admitir isso, mas é isto o que realmente significa o pensamento de uma nova aplicação do sangue da aspersão. Pode ser que as pessoas que falam dessa maneira realmente desejem honrar o sangue de Cristo, e expressar seu próprio sentimento de indignidade; mas, na verdade, a melhor maneira de se honrar o sangue de Cristo é regozijar-se naquilo que o sangue fez por nossas almas; e a melhor maneira de demonstrar nossa própria indignidade é sentir e lembrar que éramos tão vis que nada além da morte de Cristo poderia resolver nosso caso. Éramos tão vis que nada além de Seu sangue poderia limpar-nos. Tão precioso é Seu sangue que não resta algo algum de nossas culpas. “O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado.” (1 Jo 1:7). Assim inalterável permanece o sangue para o mais débil filho de Deus cujos olhos perscrutam estas linhas. Todos os pecados perdoados. Nenhum vestígio de culpa permanece. Jesus está na presença de Deus por nós. Ele está lá como o Sumo Sacerdote diante de Deus – como um Mediador ou Advogado para com o Pai. Ele rasgou o véu com Sua morte expiatória – aniquilou o pecado – nos levou para junto de Deus em todo o valor e virtude de Seu sacrifício, e agora Ele vive para nos manter, por Sua mediação, no gozo do lugar e nos privilégios nos quais o Seu sangue nos introduziu. Por esta razão o apóstolo diz que “se alguém pecar, temos” – o que? O sangue? Não, mas “um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo” (1 Jo 2:1). O sangue efetuou a sua obra, e está para sempre diante de Deus em conformidade com seu completo valor às vistas d’Ele. Sua eficácia é sempre a mesma. Mas temos cometido pecado, ainda que seja apenas em pensamento, mas até mesmo esse pensamento é suficiente para interromper a nossa comunhão. É aqui que entra a mediação. Se não fosse pelo fato de Jesus Cristo estar sempre agindo por nós no santuário nas alturas, nossa fé iria certamente falhar em momentos em que não nos rendemos, em medida nenhuma, à voz de nossa natureza pecaminosa. Foi assim com Pedro naquela hora terrível de sua tentação e queda: “Simão; Simão, eis que Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo; mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres (no sentido de ser restaurado), confirma teus irmãos”. (Lc 22:31-32). Deixo que o leitor note isto. “Eu roguei por ti, para que…” – o que? Será que Pedro não poderia falhar? Não, mas que, tendo falhado, sua fé não se desfalecesse. Se Cristo não houvesse rogado por seu pobre e fraco servo, este teria ido de mal a pior, e de pior para “o pior”. Mas a intercessão de Cristo conseguiu para Pedro a graça do genuíno arrependimento, do juízo-próprio, do amargo pesar por seu pecado, e, finalmente, da completa restauração de seu coração e consciência, de maneira que sua corrente de comunhão – interrompida pelo pecado, porém restabelecida pela mediação – pudesse fluir como antes. Assim acontece conosco quando, devido à falta daquela sagrada vigilância que deveríamos exercitar, cometemos pecado: Jesus vai até o Pai por nós. Ele roga por nós; e é por meio da eficácia de Sua intercessão sacerdotal que somos convencidos da culpa e levados a um juízo próprio, confissão e restauração. Tudo está fundamentado na mediação, e a mediação está fundamentada na expiação. E pode-se muito bem afirmar aqui, do modo mais claro e incisivo possível, que não cometer pecado é o doce privilégio de todo crente. Não há porque ele deva fazê-lo. “Meus filhinhos”, diz o apóstolo, “estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (1 Jo 2:1). Esta é uma das mais preciosas verdades possuídas por todo aquele que ama a santidade: Nós não precisamos pecar. Vamos nos lembrar disso. “Qualquer que é nascido de Deus não comete (ou pratica pecado; porque a Sua semente permanece nele; e não pode pecar, porque é nascido de Deus.” (1 Jo 3:9). É esta a divina ideia do que seja um cristão. Ah, mas nem sempre a entendemos! Todavia, isto não toca, e nem pode tocar, a preciosa verdade. A natureza divina, o novo homem, a vida de Cristo no crente, não tem possibilidade de pecar, e este é o privilégio de todo crente: o de andar de um modo tal que nada mais que a vida de Cristo possa ser vista. O Espírito Santo habita no crente com base na redenção, para levar a cabo os desejos da nova natureza, de modo que a carne possa ser como se não existisse, e nada além de Cristo possa ser visto na vida do crente. É da maior importância que esta ideia divina da vida cristã possa ser abraçada e mantida. As pessoas costumam perguntar: É possível que um cristão viva sem cometer pecado? Respondemos na linguagem do apóstolo inspirado: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis” (1 Jo 2:1). E de novo, usando a linguagem de outro apóstolo inspirado, “nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rm 6:2). O cristão é visto por Deus como morto para o pecado, e assim, se ele se rende ao pecado, está desprezando, na prática, a sua posição em um Cristo exaltado. Oh, infelizmente nós pecamos, e por isso o apóstolo acrescenta que “se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2:1-2). Isto concede uma plenitude maravilhosa à obra sobre a qual nossas almas repousam. Tal é a perfeita eficácia da expiação de Cristo, que temos um Advogado conosco (o Espírito Santo) para que possamos não pecar, e outro Advogado com o Pai (Jesus Cristo), para o caso de pecarmos. A mesma palavra traduzida como “Consolador” em João 14:16 é traduzida “Advogado” em 1 João 2:1. Temos uma Pessoa divina cuidando de nós aqui, e temos outra Pessoa divina cuidando de nós no céu, e tudo isso com base na morte expiatória de Cristo. Será que isto quer dizer que, ao escrever assim estamos provendo uma concessão para que se cometa pecado? Deus nos livre! Já declaramos, e insistimos nisso, a bendita possibilidade de se viver em ininterrupta comunhão com Deus – de se andar assim no Espírito – de se estar tão preenchido e ocupado com Cristo – de modo que a carne, ou a velha natureza, não possa se manifestar. Mas sabemos que nem sempre é assim. Como diz Tiago 3:2, “todos tropeçamos em muitas coisas”. Mas nenhuma pessoa de sã consciência, nenhum amante da santidade, nenhum cristão espiritual, poderia ter qualquer simpatia para com os que dizem que devemos cometer pecado. Graças à Deus, não é assim. Mas que misericórdia é sabermos que quando falhamos há UM à direita de Deus para restaurar o elo partido de comunhão! Isto Ele faz ao produzir em nossas almas, pelo Seu Espírito que opera em nós – o “outro Advogado” – o sentimento do fracasso, nos levando a um juízo-próprio e a uma verdadeira confissão do erro, qualquer que seja ele. Dizemos verdadeira confissão, pois é assim que deve ser, se for o fruto do trabalho o Espírito no coração. Não é dizer leviana e frivolamente que pecamos, e depois, com a mesma leviandade e frivolidade, pecarmos novamente. Isto é algo demasiado triste e perigoso. Não conhecemos nada que seja mais endurecedor e desmoralizante do que algo assim. Certamente, isso leva às mais desastrosas consequências. Vimos casos de pessoas vivendo em pecado e se satisfazendo a si próprias com uma mera confissão oral de seu pecado, para então voltarem a cometer o pecado vezes e vezes seguidas, durante meses e anos, até que Deus, em Sua fidelidade, fizesse com que a coisa toda viesse à tona e ficasse notório a todos. Isso tudo é demasiado terrível. É a maneira de Satanás endurecer e iludir o coração. Oh, que possamos vigiar, e manter sempre uma consciência pura! Podemos descansar certos de que quando um genuíno filho de Deus é enganado ao ponto de cair no pecado, o Espírito Santo irá produzir nele uma consciência apropriada acerca do mesmo – irá colocá-lo em uma repugnância tal para consigo mesmo, em uma aversão ao mal, em um minucioso juízo próprio na presença de Deus – de um modo tal que não poderá levianamente cometer o pecado outra vez. Isso nós podemos aprender das palavras do apóstolo, quando diz: “Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo, para nos perdoar os pecados, e…” – preste muita atenção nesta parte – “nos purificar de toda a injustiça” (1 Jo 1:9). Vemos aqui o precioso fruto da dupla mediação. E tudo isso é apresentado em sua plenitude nesta parte da primeira epístola de João. Se alguém pecar, o abençoado Paracleto nas alturas intercede junto ao Pai, pleiteia os plenos méritos de Sua obra expiatória, roga pelo que errou, com base em haver Ele carregado o juízo por aquele mesmo pecado. Então o outro Paracleto atua na consciência, produz o arrependimento e a confissão, e leva a alma de volta à luz na doce consciência de que o pecado está perdoado, a injustiça purificada, e a comunhão perfeitamente restaurada. “Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome.” (Sl 23:3). Cremos que o leitor será capaz de entender esta grande verdade fundamental. Estamos cientes de que há muitos que encontram dificuldade em conciliar a ideia da intercessão com a verdade e uma perfeita expiação. Eles argumentam que, se a expiação é perfeita, que necessidade há de intercessão? Se o crente é tornado tão alvo como a neve pelo sangue e Cristo – tão branco que o Espírito e Deus possa habitar em seu coração – então o que pode ele desejar de um sacerdote? Se por uma oferta Cristo aperfeiçoou para sempre todos aqueles que são santificados, então que necessidade têm, de um Advogado, esses que estão perfeitos e santificados? Seria o caso de termos que, ou admitir a ideia de uma expiação imperfeita ou recusar a necessidade de um advogado? Tais são os raciocínios da mente humana, mas não é esta a fé dos cristãos. As Escrituras nos ensinam com a maior precisão que o crente é lavado e está tão branco como a neve; que é feito agradável no Amado – completo em Cristo – perfeitamente perdoado e perfeitamente justificado por meio da morte e ressurreição de Cristo; que ele nunca entrará em juízo, mas passou da morte para a vida; que não está na carne, mas no Espírito – não na velha criação, mas na nova – não um membro do primeiro Adão, mas do último; que ele está morto para o pecado, morto para o mundo, morto para a lei, porque Cristo morreu, e o crente morreu n’Ele. Tudo isso é amplamente desvendado e constantemente inculcado pelos escritores inspirados. Diversas passagens podem ser facilmente utilizadas como prova, se fosse necessário. Mas há, então, um outro aspecto do cristão que deve ser levado em conta. Ele não está na carne quanto à sua posição, mas está em seu corpo quanto à sua condição. Ele está em Cristo quanto à sua posição, mas está também no mundo quanto à sua existência. Ele está cercado por toda a sorte de tentações e dificuldades, e é, em si mesmo, uma pobre e débil criatura repleta de debilidades, insuficiente até mesmo para pensar em algo por si mesma. E não só isso, mas cada verdadeiro cristão está sempre pronto a reconhecer que nele, isto é, em sua carne, não habita bem algum. Ele está salvo, graças a Deus, e tudo está eternamente estabelecido; mas então ele tem, como um que foi salvo, que passar pelo deserto; ele tem que trabalhar para entrar no descanso de Deus, e é aqui que entra o sacerdócio. O objetivo do sacerdócio não é completar a obra da expiação, visto que esta obra é tão perfeita quanto Aquele que a efetuou. Mas temos que ser levados através do deserto e introduzidos no descanso que está reservado para o povo de Deus, e para esse fim temos um grande Sumo Sacerdote que já passou para o céu, Jesus, o Filho de Deus. Sua simpatia e Seu auxílio são nossos, e não poderíamos viver um momento sequer sem eles. Ele vive para interceder por nós, e, por meio de Seu ministério no santuário celestial, nos sustenta dia após dia na completa eficácia e valor de Sua obra expiatória. Ele nos levanta quando caímos, nos restaura quando nos desviamos, repara o elo de comunhão quando rompido pelo nosso descuido. Em suma, Ele comparece na presença e Deus por nós, e efetua ali um ininterrupto serviço em nosso favor, em virtude do qual somos mantidos na integridade do parentesco no qual a Sua morte expiatória nos introduziu. O mesmo ocorre tanto com respeito à expiação quanto à mediação. Só nos resta tratar do advento. Desejamos recordar em especial o leitor que, em se tratando da morte de Cristo, temos deixado totalmente intocado um ponto de grande importância, a saber, nossa morte n’Ele. Nós o faremos, se Deus o permitir, em outra ocasião. Trata-se de algo imensamente importante no que diz respeito ao poder de libertação, tanto do pecado que habita em nós, como do presente mundo mau e da lei. Há muitos que olham para a morte de Cristo apenas para perdão e justificação, mas não veem a preciosa e emancipadora verdade de haverem morrido n’Ele e sua consequente libertação do poder do pecado neles. Esta última é o segredo da vitória sorte???? o “eu” e o mundo, e da libertação de toda forma de legalismo e mera piedade carnal. Vimos, assim, de relance, dois dos importantes assuntos que nos são apresentados nos versículos finais de Hebreus 9, a saber, primeiro, a preciosa morte expiatória de nosso Senhor Jesus Cristo em seus dois aspectos, e, segundo, Sua plena eficaz mediação por nós à destra de Deus. Só nos resta considerar, em terceiro lugar, Seu Advento
