Origem: Livro: Breves Meditações

Pedro em João 21

Não é tanto o senso do que éramos, quando em nossos pecados e não convertidos, mas a lembrança do que temos sido desde que conhecemos o Senhor, nossa frieza, nossas deficiências e nossos caminhos egoístas desde então, que interferem naquela plena e calorosa acolhida de Sua presença e da esperança de estarmos em breve com Ele, que deveríamos carregar. Mas tudo isso é legalista. Pertence à natureza. O argumento divino em Romanos 5 se opõe a isso (vs. 8-9). E Pedro, neste capítulo, ilustra uma repreensão a isso.

Muito do que havia em sua lembrança, como um santo, poderia tê-lo tornado um covarde, temendo a presença do Senhor. Mas ele não era covarde. Assim que ouviu que seu Mestre, embora negado por seus lábios mentirosos e profanos, estava na praia, ele se cobriu com seu manto de pescador e se lançou na água, para alcançá-Lo o mais rápido que pudesse. Pois, se ele tinha lembranças de si mesmo, também tinha conhecimento de seu Senhor; e este era o segredo de sua alma e a fonte de sua coragem.

Se Pedro fosse ignorante quanto a Cristo, ou O conhecesse simplesmente segundo os ditames da natureza, da carne e do sangue, teria fugido com medo; se O conhecesse apenas parcialmente, teria tido seus medos e suspeitas, e permitido que seus companheiros no barco alcançassem o Senhor antes dele, para que pudessem ser uma espécie de véu para quebrar a força de Sua presença em seu espírito. Mas Pedro conhecia bem a Cristo. Ele O conhecia em amor – e, portanto, não fugiu, nem se escondeu atrás de seus companheiros, mas encontrou Sua presença individualmente[21].
[21] Tal era o conhecimento de Adão sobre o Senhor Deus, quando ele saiu de seu esconderijo culpado em Gênesis 3 — com esta diferença: Adão o fez como um pecador, sob uma revelação do evangelho; Pedro, como um santo, sob o conhecimento do Senhor.

Pedro conhecia o Senhor. Isso era tudo para ele. Com certeza era. E ele, mesmo morto, ainda nos fala. Ele diz: “Apega-te, pois, a Ele, e tem paz”, como falam todas as Escrituras.

E assim, posso dizer, Maria Madalena do capítulo anterior, João 20, agiu com base no mesmo conhecimento de seu Senhor. Pois, pecadora como era, ela havia sido apresentada a Ele em seus pecados, sim, e por seus pecados, tendo tido sete demônios expulsos por Ele; e agora ela fala como se tivesse o direito de reivindicá-Lo e tomá-Lo inteiramente para si. Dize-me”, disse ela, como se fosse o jardineiro, “onde O puseste, e eu O levarei”. Ele era todo dela.

Que afeição preciosa! Que percepção de nosso título a Ele! Como deveria ser assim com cada um de nós; cada um de nós conhecendo nossa própria reivindicação e direito pessoal e individual a um Cristo completo em toda a Sua plenitude, nosso título a Ele mesmo!

E é a fé, e somente a fé, que faz isso. Pois a fé nos dá conhecimento d’Ele, a consciência, nos dá conhecimento de nós mesmos. Esta última nos torna covardes – e com razão; a outra nos dá uma santa e feliz ousadia. A consciência já havia lançado Pedro em uma jornada, quando ele saiu da casa do sumo sacerdote e, lá fora, envergonhado e solitário, chorou amargamente. A fé o lançou nesta presente jornada, quando ele deixou o barco para alcançar seu Senhor na praia. Nem o senso moral do homem, nem sua mente religiosa, nem um pensamento geral de misericórdia teriam sido capazes de colocá-lo em tal jornada. Era a fé – o conhecimento de Cristo em amor – e isso é fé. Fé em Deus, não como Juiz, mas como Salvador, é fé – fé n’Ele como dando, não como ordenando ou exigindo. A consciência pode agir, e de fato age, como a segurança da comunhão com Deus – pois não podemos, nem ousamos, caminhar com Ele, exceto em companhia de seu testemunho – mas a comunhão nunca é o poder ou a medida da fé. A comunhão deve ser fruto da fé, que toma o conhecimento de Deus segundo Sua revelação de Si mesmo em graça e salvação.

E, oh, que coisa maravilhosa é conhecer a Deus em amor! Ter comunhão com Cristo como Aquele que ama nossa alma! Permanecer em amor e, assim, permanecer em Deus! Conhecer e crer no amor que Deus tem por nós! Quão bendito! E este é o estimado e precioso resultado do evangelho no coração; a paz é o resultado dele na consciência. Introduzir o coração e a consciência a estes seus direitos, pela graça, no evangelho, é um dos frutos e propósitos da revelação que Deus fez de Si mesmo.

E neste caso de Pedro em João 21, o Senhor, em um estágio posterior da ação, coloca-Se em companhia tanto da consciência quanto da de Seu santo. Ele age com a consciência de Pedro, submetendo-o a um amargo exercício de alma por meio de três desafios, e fazendo-o assim perceber que ele de fato havia pecado em suas repetidas negações quanto a Ele. Mas Ele também se coloca em companhia da fé de Pedro, concedendo-lhe o rico e abundante fruto dessa fé, trazendo-o novamente à comunhão próxima e plena Consigo (como a fé em Pedro já havia feito), e concedendo-lhe o favor de ser o único, entre todos eles, especialmente incumbido de alimentar e conduzir Seu rebanho.

A graça certamente sempre garante e sela as conclusões da fé dessa maneira. O Senhor não submete Pedro novamente ao processo de tomar sobre si a sentença de morte como pecador, como fizera com ele em Lucas 5, onde estiveram juntos pela primeira vez no mar da Galileia com uma pescaria milagrosa. Não. Ele simplesmente restaura sua alma, ou lava seus pés, e então lhe dá seu precioso lugar de proximidade com Ele, e mais do que a própria fé poderia imaginar.

E permitam-me apenas acrescentar: é desta comunhão de Pedro com seu Senhor que necessitamos mais abundantemente, se puder falar pelos outros. Não se trata de tomar conhecimento d’Ele em juízo e justiça – não é ter que se tratar com Ele em Seus conselhos e revelações, ou nas coisas que dizem respeito a Ele. Estas estarão corretas e não devem ser negligenciadas. Mas conhecê-Lo em Seu amor, isso é fé. E isso é de Deus, da obra interior e testemunho do Espírito. Está acima da natureza. Sim, está mais distante da comunhão com Ele em juízo e em justiça do que de um estado de descuido e incredulidade. A consciência, o senso moral, a mente religiosa, o pensamento geral de nossa necessidade de Sua misericórdia, como já disse, podem nos dar lugar diante d’Ele em juízo, e podemos ser justamente humilhados por isso; mas isso não está muito distante da natureza. Mas conhecê-Lo em amor, com um senso de nosso título a Ele próprio, isso é de Deus, e está longe da natureza. Pedro no quinto capítulo de Lucas não era o mesmo Pedro no vigésimo primeiro capítulo de João; embora eu certamente saiba que a atração do Espírito, por convicção divina, estava com ele então.

Rute era de coração aberto e abnegada no primeiro capítulo, quando lançou sua sorte com sua sogra aflita. Ela foi devidamente obediente a ela quando, no segundo capítulo, foi como uma respigadora no campo do homem rico; e lá, de maneira bela, como sob a mão de Deus, ela se comportou diante dele, aceitando sua generosidade com humildade e gratidão. Mas ela foi muito mais do que tudo isso no terceiro capítulo, quando consentiu em se deitar aos seus pés na eira e reivindicá-lo como seu marido. Isso era fé. Uma alma pode ser bondosa com os outros, humilde e reverente diante de Deus, e ainda estar na natureza; mas contar com o amor de Cristo, reivindicar esse amor, conhecer seu direito a ele, usá-lo e desfrutá-lo, encontrar um Objeto n’Ele e receber esse amor como verdade de que Ele encontrou um objeto em nós, isso está acima da natureza. Esta é bem-aventurança da ordem mais elevada, dada a nós pelo Espírito; glorificação de Deus e céu para nós mesmos.

Para Rute, passar da eira aos pés de Boaz para sua casa, sua mesa, seu lugar como senhora de seus servos e partilhando de seus bens e de si mesmo era fácil, natural e necessário; mas passar do campo de respiga para a eira foi uma jornada que só poderia ter sido empreendida (como a de Pedro em João 21) sob a condução do Espírito Santo, atraindo pelas cordas do amor. Chamar o Senhor não mais de “Baali”, mas de “Ishi”[22], isso é verdadeiramente fé.
[22] N. do T.: Oseias 2:16 – KJV: “E acontecerá naquele dia, diz o SENHOR Me chamarás Ishi (isto é, meu marido) e não Me chamarás mais Baali (isto é, meu senhor).

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