Origem: Livro: Breves Meditações

Rute

Os caminhos da graça e da fé, e o fundamento pela qual cada uma delas age, recebem ilustrações muito bonitas neste pequeno livro.

A fé tem duas características especiais – assim como a graça. A fé vence o mundo e retorna plena e intimamente a Deus. Ou, na linguagem conhecida na Escritura, ela toma um lugar “fora do arraial” e “dentro do véu”.

A graça encoraja a alma (inspirando confiança) e então a satisfaz. Estas são duas de suas brilhantes formas; e elas encontram expressão aqui nas relações de Boaz com Rute; assim como a fé ilustra suas duas propriedades (das quais falei acima) nas ações de Rute.

Rute, no princípio, lança sua sorte com Noemi na hora de sua viuvez, da sua estranheza e da sua pobreza. Por causa de Noemi, ela, agindo como uma filha de Abraão, deixará sua terra, sua parentela e a casa de seu pai; e tudo o que for dito para atemorizá-la de nada adiantará. Ela atravessará o mundo desconhecido, e o povo de Israel será o seu povo, e o Deus deles será o Deus dela. E esta era a fé que toma seu lugar fora do arraial, ou conquista vitórias sobre o mundo.

Mas a fé que abandona o mundo retorna a Deus. E assim acontece em Rute. As grandes coisas de Boaz não são grandes demais para ela. Quanto a possessões ou condição de vida, ela estava tão distante dele quanto podia estar, uma respigadora em seu campo, atrás de seus ceifeiros, indigna de ser colocada entre suas servas. Mas ela mira nele mesmo. Não é uma medida pequena que ela busca, mas a mais elevada e rica. A respigadora seria a esposa. E este também é o caminho da fé. Ela sai fora do arraial, mas entra dentro do véu. Ela deixa o mundo, mas retorna à plena presença de Deus; ocupando assim o lugar oposto àquele em que a queda colocou o homem. Pela queda, o homem se afasta de Deus e encontra seu lugar no mundo. Vemos isso em Caim. Ele saiu da presença do Senhor; mas lá ele construiu uma cidade e a encheu com todo tipo de proveito e prazer, com divertimento e com comércio. A fé retorna pelo mesmo caminho, fazendo a jornada oposta. Ela se despede do mundo e retorna plena, íntima e eternamente a Deus. E esse caminho e poder da fé são demonstrados em Rute, que primeiro se uniu à pobreza de Noemi e, em seguida, conquistou para si a riqueza e a dignidade de Boaz.

E a graça tem sua grandeza e excelência em seu modo e geração, tão certamente quanto tem a fé. Ela primeiro encoraja, como eu disse, inspirando confiança; e então recompensa a confiança que despertou:

O que o Senhor estava fazendo com Gideão em Juízes 6? O que Ele estava fazendo com Moisés em Êxodo 3? O que Ele estava fazendo com Jeremias, quando o chamou pela primeira vez para o seu ofício? (veja Jeremias 1). Ele encontrou corações lentos e relutantes ali; mas os preparou para a bênção que Sua graça havia preparado para eles. E qual era o caminho do Senhor Jesus nos dias de Seu ministério, senão o do Deus de Moisés, de Gideão e de Jeremias? Como Ele Se assentou junto ao poço de Sicar, convidando à confiança uma pobre samaritana distante! Como Ele repreendia, vez após vez, aquela “pequena fé” que não sabia e não podia dizer se poderia esperar d’Ele o bem ou não? E como Ele imediatamente tirou do coração do pobre leproso a única dúvida que pairava ali, oprimindo-o e obscurecendo-o.

E este é também o caminho do Espírito nos apóstolos. Quanto do ensino das epístolas, quanto da energia do Espírito são ali empregados para fortalecer a fé e encorajar o coração dos santos! Argumentos de divina persuasão, repreensões com temperamento cuidadoso e sincero e anseios de amor, todos são empregados para unir o débil coração com a graça e o evangelho de Deus.

E Boaz é levado a expressar isso. A delicadeza e, ao mesmo tempo, a sinceridade com que ele encoraja Rute no segundo capítulo são de uma beleza digna de se admirar. E então ele está pronto para responder a todas as exigências, que a confiança que ele havia assim despertado, coloca sobre ele. Ele não havia treinado o coração dela para a decepção; assim como a mão do Senhor está pronta para preencher a mão do pecador, que Seu Espírito já abriu para receber d’Ele.

E aqui eu poderia dizer que foi um momento bendito na alma de Noemi, quando ela despertou para a lembrança, ou para o conhecimento deste simples fato, de que Boaz era um parente. “Bendito”, diz ela, “seja ele do SENHOR, que ainda não tem deixado a sua beneficência nem para com os vivos nem para com os mortos” (cap. 2:20). Isso foi como quando uma alma é levada à descoberta não apenas da graça que há em Deus, mas do direito de um pecador a essa graça, por causa de Jesus, o Parente.

E assim, ao descobrir este fato bendito, Noemi imediatamente ordena a Rute que permaneça firme com suas servas e não seja encontrada em nenhum outro campo. Pois este é o caminho da fé na plena descoberta de Cristo. Exige uma longa despedida, uma despedida para sempre, e todas as outras confianças.

Boaz era um parente – e um parente tem seus deveres e obrigações, de acordo com as leis e ordenanças de Israel. Noemi sabia disso e instrui Rute, a estrangeira, nesses segredos seletos e maravilhosos. E ela é ousada e encoraja Rute. E a fé permanece assim. Ela conta com as maiores coisas – perdão, aceitação, adoção, herança, glória. Mas, embora ousada, tem fundamento. Os costumes e ordenanças do lugar onde a fé é introduzida, os conselhos do Deus de Israel, os segredos da graça abundante, são o fundamento da fé. Ela mira alto; mas seu intento é guiado pelo Espírito de Deus; pois Deus, desde a antiguidade, aconselhou essas coisas elevadas para a fé.

E quando Rute seguiu a palavra de Noemi, e se deitou aos pés do parente e o reivindicou como senhor e marido, ao retornar a Noemi, Noemi, em belas palavras, lhe disse: “Quem és tu, minha filha?” (cap. 3:16 – ARC). Perfeitamente bela, isso sim. Noemi olhou para Rute como a noiva eleita. Ela sabia o que o fiel parente faria dela. Ela brilhou em toda a sua dignidade e alegria, aos olhos de Noemi, naquele momento – assim como deveríamos nos examinar com igual poder de fé e dizer: “agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele; porque assim como é O veremos”.

O que se segue é a experiência de uma alma, quando o parente é descoberto pela fé.

A graça do parente é também uma grande cena a contemplar. Havia obstáculos no caminho. Um parente mais próximo tinha seus direitos, e Boaz precisa reconhecê-los e satisfazê-los. Assim como no grande Original, o pecado resiste aos propósitos do amor – a culpa do homem se interpõe no caminho de sua bênção vinda d’Aquele que é santo, assim como gracioso. Mas Ele encontrou uma maneira de vindicar a justiça e colocar de lado o pecado, enquanto satisfaz Seu próprio amor e atende a todas as reivindicações que a fé faz à graça.

Boaz vai até “a porta”, o local do julgamento, e lá encontra “os anciãos”, que eram os guardiões e vindicadores da justiça. E lá, na presença deles, e para a plena satisfação deles, ele afasta o parente mais próximo, e assim remove do caminho o obstáculo que o impedia de tomar Rute para si mesmo e todos os seus fardos. A fé contava com isso, que “o homem não descansará até que conclua hoje este negócio” (cap. 3:18); e assim aconteceu. Boaz resolve todo o assunto, Rute só precisa “esperar”, como Noemi a instruíra, e seu parente é fiel e seu redentor é poderoso.

Um parente em Israel era alguém que, como Noemi havia dito a Rute, não se esquecia de sua bondade para com os mortos ou para com os vivos (cap. 2:20). Não, mas para com os pobres e oprimidos, podemos acrescentar. Ele deveria resgatar a herança, a herança vendida, de seu irmão pobre – ele deveria vingar o sangue de seu irmão morto – ele deveria suscitar o nome de seu irmão morto e sem filhos. Belos serviços, demonstrando a graça em suas riquezas, sua profundidade e sua variedade. E Boaz é apresentado para representar isso.

Ele agiu, ao tomar Rute e abençoá-la com a mais rica bênção que ele pôde conceder, sob o fundamento das leis de Israel. Ele agiu com retidão, ao mesmo tempo em que honrava generosamente as reivindicações do trono do julgamento, ao tomar uma respigadora do campo para assentá-la ao seu lado. Bela sombra d’Aquele que é Justo e também Justificador.

A fé pode almejar alto e contar com grandes coisas, pois a graça de Deus, os conselhos de Deus, a lei do parente e a fidelidade do Redentor garantem tudo isso. A ousadia da fé não excederá o título da fé. O coração que se encoraja em Deus será abençoado; é bendito dizer isso!

E a graça tem tão claro direito de satisfazer a si mesma, quanto a fé tem de encorajar a si mesma. A cruz foi, por assim dizer, levantada “à porta”, ou no lugar do julgamento. Deus nunca é mais santo do que quando perdoa pecados sob o direito da cruz de Cristo. Ali, a glória de Deus nas alturas é novamente proclamada, assim como a paz na Terra. Sua justiça é ali apresentada, tão brilhantemente quanto Seu amor. É na misericórdia entronizada que nos apoiamos – um propiciatório sobre a arca da aliança, onde se encontram as tábuas do testemunho. Se o sangue da aspersão está ali, a lei guardada, honrada e magnificada também está ali; a justiça de Deus é ali declarada, para que “Ele seja Justo e Justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3:26). É glória a Deus nas alturas, enquanto é paz na Terra, boa vontade para com os homens, que ainda será cantada por toda alma que aprende o mistério e o fruto da missão do Filho do seio do Pai para um mundo de pecadores.

E ainda há um belo ponto nas instruções de Noemi a Rute que eu gostaria de observar.

Enquanto Rute, no estado anterior, ainda era aquela que suplicava, Noemi lhe diz para se lavar, se ungir, se vestir com suas vestes e, em seguida, descer à eira, onde Boaz havia de estar. Mas, assim que Boaz a aceita, Noemi muda de tom e lhe diz para ficar “quieta” (cap. 3:3, 18 – TB).

Assim é na jornada da alma. No início, ocupamo-nos conosco mesmos. Temos muitos pensamentos sobre nossa impureza e nudez, nossa condição como pecadores convictos e em nossa vergonha – mas quando conhecemos o grande segredo da graça, que nosso Redentor está fazendo de nossa causa a Sua própria, então o silêncio, a quietude, a abstração de si mesmo e a ocupação apenas com Cristo nos convêm. Temos então que permanecer aquietados e ver a salvação de Deus. Temos então, como Josué em Zacarias 3, que ficar em silêncio, enquanto o Senhor realiza Sua obra em nós e por nós. Temos que deixá-Lo responder aos nossos acusadores e não abrir nossos próprios lábios, como a mulher em João 8. Podemos, de antemão ou durante a jornada, como o filho pródigo, pensar em nós mesmos, mas assim que entramos na casa e vemos que o Pai fez de nossa bênção o Seu cuidado, então, como o filho pródigo novamente, só nos resta nos assentar e comer.

E permita-me dizer ainda, Noemi, colocando-se entre Boaz e Rute, o testemunho de Boaz para Rute é como uma escritura entre Deus e nós. Ela testemunha Deus para nós. Ela até mesmo O promete – e a função da fé é ouvir, receber e desfrutar com confiança. Assim fez Rute. A modesta respigadora torna-se a suplicante segura e, se preferir, ousada, sob a palavra de Noemi. Isso foi o suficiente para Rute, mais do que o suficiente, que Noemi a tivesse instruído. Ela não pediu mais nada, nem hesitou.

E é muito bendito acrescentar que a palavra de Noemi foi suficiente para Boaz, assim como foi suficiente para Rute. Tudo o que Noemi havia prometido a Boaz em favor da respigadora, Boaz cumpriu para ela. Foi suficiente para Boaz que Noemi o tivesse comprometido. E assim, bendito seja dizer, foi suficiente que a Escritura tenha falado e feito promessas em nome do Senhor aos pecadores. Tudo será cumprido. Nem um jota falhará. O céu e a Terra passarão, antes que isso pudesse acontecer. Jesus estava cumprindo a Escritura durante todo o Seu ministério aqui, e Ele não descansará até que tenha cumprido tudo, em todas as Suas ricas e maravilhosas promessas de graça e glória.

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