Origem: Livro: Breves Meditações

Samaria e Galileia

Quão simples e importantes são as palavras encontradas nesta Escritura: “Queres ficar são?” (Jo 5:6).

Mas seu valor não será devidamente apreciado se não analisarmos cuidadosamente a ocasião em que foram expressadas.

O Senhor estava em Jerusalém. Ele estava no grande centro e representante da religiosidade humana, e cercado naquele momento por suas várias provisões. Era sábado. Era um tempo de festa na cidade das solenidades. A ordenança, ou ministério angélico de Betesda, estava diante d’Ele, e multidões jaziam ao redor. O templo estava próximo, e os fariseus estavam todos por perto.

O Senhor Se coloca em meio a tudo isso, falando a mesma língua e conclamando o homem à religiosidade,. Mas é como algo novo que Ele agora aparece, diferente de tudo o que já existia ali. Ele não Se importa com a festa, nem com o sábado, nem com o templo. Ele coloca de lado a ordenança, e provoca os fariseus. Suas palavras vinham para cancelar tudo e introduzir algo completamente diferente. “Queres ficar são?” O homem pode libertar-se imediatamente de toda rivalidade e resistência; pode deixar de procurar ajuda humana; não precisa mais esperar, nem duvidar da bênção tão desejada. Ela estava ali para ele em Jesus, sem rivalidade, sem ajuda humana, sem demora, sem dúvida, sem ordenança ou anjo. A única questão era: Ele aceitaria a bênção de Jesus? Seria devedor a Ele? Ficaria quieto vendo a salvação de Deus? Deixaria Deus, em graça, trabalhar por ele?

Que palavras, de fato, em meio a tal cena! Que palavras comoventes e de grande peso! Eram um chamado a sair da religiosidade e de suas provisões e dependências, para à fé e às provisões e soberania da graça.

Isso aconteceu na Judeia. Mas há Samaria e Galileia, além da Judeia, e precisamos analisar cada uma delas.

Essas regiões, moralmente, são muito diferentes. Samaria era a contaminada, Galileia a racional, e Judeia a religiosa. Essas são as diferenças características entre elas, como as vemos nestes capítulos.

Samaria era a profanada, a rejeitada, o lugar fora do arraial, por assim dizer. Era uma figura do mundo dos pecadores. Não tinha caráter a perder. Mas, sendo tal lugar, era justamente o lugar que o Filho, vindo do seio, tinha vindo visitar, e onde Ele podia exercitar-Se.

A Galileia era a racional, a orgulhosa e a intelectual. A experiência do Senhor em Nazaré já Lhe havia mostrado o caráter daquela região. Era um lugar onde o orgulho prevalecera sobre as convicções, e onde Ele fora rejeitado (por mais que lhes manifestasse Sua autoridade), por ser o Filho do carpinteiro. Ele havia provado ali que um profeta não tinha honra em sua própria terra (Lucas 4). Ele, portanto, prefere tentar outra cidade na Galileia nesta ocasião, e vai para Caná. Mas Caná não é Samaria para Ele. Havia pretensão ali. Os galileus O recebem porque tinham visto Seus milagres. Eles O credenciam para si mesmos, antes de O aceitarem. E aqui está o orgulho da pretensão mais detectado do que no mundo intelectual.

A Judeia era o mundo religioso. Se a Galileia era o mundo intelectual, a Judeia era o mundo religioso. Embora de um tipo diferente, nenhum dos dois servirá para o Filho do seio. Ele não veio entre os homens para defendê-los ou adotá-los como religiosos, nem para educá-los e cultivá-los como intelectuais. Sua ocupação era com o homem contaminado, com o homem como pecador; e a pretensão da parte do homem, sob qualquer forma, não servirá para Ele.

Há um maravilhoso conforto para a alma ao ver como o Senhor reagia de forma diferente nessas diferentes regiões.

Em Samaria, Ele assentou-Se junto ao poço com alguém da nação contaminada; e depois permaneceu por dois dias no meio de vários deles. A consciência foi despertada ali, e Ele está, portanto, entre eles sem reservas. Não há peso em Seu espírito. Ele estava em Seu devido lugar, o lugar que Lhe dava oportunidade de agir como de Si mesmo, e de fazer com que se aprendesse Quem Ele era e para que tinha vindo a este mundo. Ele encontrou um lar em Samaria, pois ali encontrou consciências despertadas, ou corações contritos e abatidos. (Isaías 57:15)

Em direção à Galileia, Ele olhou com o peso em Seu espírito (4:44). A Galileia não era o cenário natural para o divino Estrangeiro servir, como era Samaria. Ele não veio para cá, como eu disse antes, para educar e cultivar o homem intelectual. E, portanto, enquanto O vemos tomando Seu lugar junto ao poço de Sicar com toda a facilidade, e então habitando por dois dias entre os samaritanos como se estivesse em casa, aqui na Galileia Ele não encontra lar, e entra nela com reserva. Ele ministra graça e poder ali, mas sem revigorar Seu espírito. Ele não tem alimento ali do qual Seus discípulos desconheçam. Samaria havia providenciado isso. A Judeia Ele tem que testar; ou melhor, cancelar. A Judeia era a religiosa, assim como a Galileia era a racional; Galileia tinha suas pretensões, a Judeia tinha suas preocupações; e à Judeia o Senhor tem que Se propor como o fim da lei, a substância de suas sombras, o Objeto de todas as suas ordenanças e Aquele que deveria tomar o lugar de tudo o que ali existia. Ele Se posiciona ao lado de Betesda e simplesmente diz ao homem impotente: “Queres ficar são?” Ele seria aceito como o fim de todas as ordenanças, a vida e o poder de todas as instituições da cidade das solenidades. Ele está pessoalmente fazendo o que o apóstolo faz doutrinariamente na Epístola aos Hebreus, substituindo-Se no lugar de todas as disposições da dispensação mosaica ou levítica. Ele entrou em Samaria livremente, na Galileia com reservas; mas na Judeia, Ele não encontrou lugar algum. O sábado, o tanque, o templo, as festas estavam ali diante d’Ele, e Ele é desafiado como um Intruso e tem que Se retirar.

Tudo isso redunda para nosso conforto. Aprendemos com isso o que Jesus é e O encontramos para nosso conforto. É quando nossas necessidades O acolhem, como em Samaria, que Ele nos concede Sua presença; é quando nossas pretensões são feitas, sejam elas intelectuais ou religiosas, que O perdemos, total ou parcialmente. O Senhor Se mostra de forma diferente no poço de Sicar e no tanque de Betesda.

E permitam-me acrescentar que, assim como começamos, devemos continuar com o Senhor, como pecadores, como samaritanos, com consciências exercitadas. Se abandonarmos a consciência e nos voltarmos para o intelecto, se nos separarmos de um coração quebrantado e nos voltarmos para a religiosidade, se deixarmos Samaria pela Galileia ou pela Judeia, a comunhão com Jesus fracassará. Pois Jesus partiu de casa quando deixou Samaria e não encontrou outra na Galileia ou na Judeia.

Certamente, então, vemos essas regiões como moralmente diversas, e o bendito Senhor relacionado a cada uma delas de maneiras diversas. A consciência foi despertada em Samaria, e nenhum milagre foi pedido; e lá Jesus estava em casa. A mente, em vez da consciência, foi exercida na Galileia, e os milagres eram o fundamento da fé; e lá Jesus realizou um ato de graça e poder, mas não permaneceu. A religião O excluiu da Judeia.

Acaso tudo isso não nos fala sobre Jesus para nosso consolo? O Filho de Deus Se aproximará de um miserável, autodestruído, corrompido filho da natureza, mas nenhuma pretensão, qualquer que seja sua forma, servirá para Ele. Pode ser pretensão intelectual que especula sobre Ele e O julga em sua própria balança; pode ser pretensão religiosa, que ainda confia em suas obras apesar das ofertas de Sua graça; mas nenhuma delas servirá para Aquele que veio a um cenário de ruínas, justamente porque eram ruínas, ruínas imundas, negras, leprosas e impuras. Que o pecador seja o pecador, e Jesus Se aproximará dele, pois Ele veio para buscá-lo e salvá-lo; mas, se o homem pretende ou presume, Jesus deve permanecer reservado.

É uma doce meditação percorrer estes capítulos inestimáveis e fazer estas descobertas sobre o Filho de Deus. Podemos estudá-Lo, estudá-Lo profundamente, quando O temos assim diante de nós; pois são o coração e a consciência, e não apenas a mente, que então se assentarão diante da lição.

Com tudo isso, no entanto, devo destacar mais uma coisa: “o modo como o Senhor tratou a samaritana impura, para assim obter para Si um lar ali”. Assim como Ele veio tanto para buscar quanto para salvar, esta cena O mostra para nós tanto buscando quanto salvando.

Ela era uma filha da natureza, uma natureza arruinada e contaminada. Seu coração não conhecia nada além dos prazeres e ocupações comuns da vida cotidiana.

O Senhor começa convidando-a à confiança. E faz isso com a habilidade do amor, buscando um favor de sua mão.

Ele adquire a confiança que buscava. Ela se sente à vontade em Sua presença.

Ele então utiliza a confiança que havia conquistado para o bem dela. Ele desperta a curiosidade daquela cuja confiança havia conquistado. Ele usa uma linguagem que a faz sentir que não se trata de uma pessoa comum que ela encontrou. Ela usa a palavra “Senhor”, mostrando que sua alma havia sido aprisionada e fixada. E tendo assim conquistado tanto sua confiança quanto a atenção dela para Si mesmo como uma pessoa que não é comum, Ele ainda usa Suas vantagens para o bem dela, mas com fidelidade à sua condição atual. Ele Se dirige à consciência dela; e após um breve instante, consegue expô-la a si mesma, para sua confusão e espanto.

Assim, Ele conquistou a confiança dela, sua atenção e sua consciência. Mas há muito mais. Ela luta e gostaria de se esconder novamente – como Adão de outrora. Uma pergunta sobre adoração fará por ela o que as árvores do jardim fizeram por ele. Mas Ele a segue até seu esconderijo e responde à sua pergunta em tal forma de palavras que parece apenas fixar mais profundamente a atenção de sua alma n’Ele, despertando ainda mais intensamente sua admiração, de modo que ela quase O identifica com o Messias prometido.

Ele então Se revela a ela. Isso, porém, é para a satisfação dela; assim como antes ela se revelara a si mesma, por meio das palavras d’Ele, para sua confusão.

Ela O deixa, e os discípulos retornam; mas aprendem com Ele, e suas provisões agora eram desnecessárias. Ele havia mandado embora uma pobre pecadora feliz, e isso era comida, bebida e descanso para Ele.

Que segredos são revelados nessas coisas de Samaria, Galileia e Judeia, e que métodos de graça nesses tratamentos com a mulher!

Quanto a ela, o Senhor a busca e então a salva. Ele buscou a confiança de uma pecadora, então fixou a atenção da alma dela em Si mesmo, depois a expôs a si mesma e, finalmente, Se revelou a ela em luz, alegria e liberdade; e quando todo o processo termina, Ele Se alegra mais com o resultado do que ela mesma!

Este é o Jesus com Quem temos que tratar e a Quem temos o privilégio, assim como o dever, de estudar.

Ele só pode encontrar um lar entre nós, nesta Terra, no pobre pecador que trata com Ele com um coração quebrantado; e um lar como este Ele precisa obter para Si mesmo pelo poder operante do Seu Espírito. Encontramos um exemplo de tudo isso aqui. O profeta, posso dizer, havia esboçado ou antecipado isso em Isaías 57:15-19. Mas tudo isso nos fala do Salvador que encontramos. Suas diferentes experiências em Samaria, Galileia e Judeia nos diz que Ele só encontra um lar em meio a pecadores de coração quebrantado; e Seu tratamento com a mulher mostra como Ele obtém esse lar para Si mesmo.

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